Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
A abertura do esperado julgamento da trama golpista que tem início hoje, representa um marco histórico de profunda relevância para o Brasil. Pela primeira vez em sua história, militares de alta patente — incluindo generais, almirante e tenente‑coronel — serão confrontados por crimes contra a democracia, julgados em tribunal civil por tentativa de golpe de Estado. Tal evento assume contornos inéditos e essenciais para a consolidação de nossa democracia.
1. Um passado de conciliações que preservaram impunidade
Desde a Primeira República, o Brasil tem recorrido, sistematicamente, à conciliação como resposta aos conflitos políticos, mesmo diante de tentativas ou consumação de golpes de Estado. Essa tradição, embora apresentada como esforço pacificador, historicamente serviu à impunidade e à manutenção de pactos de poder entre elites civis e militares.
- República Velha (1889–1930): A chamada Política dos Governadores operava como um sistema de conciliação “pelo alto”, articulando o poder central com as oligarquias estaduais, garantindo estabilidade entre as elites. Enquanto isso, movimentos populares que ameaçavam a ordem estabelecida, como Canudos (1896–1897), foram brutalmente reprimidos pelo Exército.
- Era Vargas (1930–1945 e 1950–1954): Getúlio Vargas ascendeu ao poder por meio de um golpe contra um sistema eleitoral viciado, que perpetuava as oligarquias no poder. Após vencer a Revolução Constitucionalista de 1932 — tentativa das oligarquias paulistas de retomar o controle — optou pela conciliação e fez nova Constituição, satisfazendo os golpistas e restabelecendo temporariamente a democracia. Deposto em 1945, ele e seus algozes foram anistiados, num pacto político que evitou confrontos. Vargas retornou em 1950 pelo voto, mas a tradição conciliatória permaneceu.
- Tentativas de golpe contra JK (1955 e 1956): As tentativas militares de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, e a nova revolta em 1956, foram contidas, mas os responsáveis foram anistiados.
- O mesmo padrão se repetiu em 1961, quando a posse de João Goulart só foi garantida com a adoção do parlamentarismo, após a resistência do governador Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, na Campanha da Legalidade, mas que acabou em mais uma solução negociada com os mesmos setores que ameaçavam a legalidade.
- Golpe de 1964 e seus desdobramentos: Foram os mesmos militares beneficiados por essas anistias — em 1955, 1956 e 1961 — que lideraram o golpe de 1964. Durante os 21 anos de ditadura civil-militar, o Estado praticou repressão sistemática, com tortura, desaparecimentos forçados e assassinatos. Ainda assim, ao final do regime, prevaleceu o pacto de silêncio e impunidade. A chamada “transição transada”, conceito do cientista político Edson Nunes, caracterizou esse processo como um acordo entre setores da ditadura e da oposição institucional, que resultou na anistia ampla, geral e irrestrita de 1979. Essa lei colocou torturadores e torturados no mesmo patamar jurídico, impedindo que a justiça de transição fosse plenamente realizada no Brasil.
Em contraste com países vizinhos, como Argentina e Chile, o Brasil jamais julgou ou puniu os responsáveis por seus golpes ou crimes de Estado. Na Argentina, o histórico Julgamento das Juntas, com a atuação firme do promotor-chefe Julio César Strassera, tornou-se símbolo da justiça pós-autoritarismo. Sua frase final — “Nunca mais” — ecoa até hoje como referência ética universal.
2. Por que é essencial julgar os responsáveis por golpes de Estado?
A decisão de levar à Justiça aqueles que atentaram contra a democracia tem valor simbólico, jurídico e político. O julgamento representa a ruptura com a tradição da impunidade e a afirmação do Estado Democrático de Direito.
- O jurista Eros Grau, ex-ministro do STF, lembra que a Lei de Anistia foi um pacto entre elites civis e militares “sem caráter de norma para o futuro”, que não pode blindar crimes contra a humanidade.
- Paulo Abrão, ex-presidente da Comissão de Anistia, afirmou que o Brasil falhou em aplicar plenamente os quatro pilares da justiça de transição: verdade, justiça, reparação e reformas institucionais.
- Glenda Mezarobba, cientista política e pesquisadora do CNPq, aponta que o Brasil “está fora dos padrões democráticos” ao manter impunes crimes de Estado.
- Leigh Payne, referência mundial em justiça de transição, reforça que “a responsabilização é essencial para evitar a repetição do autoritarismo”.
- Anthony Pereira, brasilianista e professor do King’s College, afirma que a ditadura brasileira criou uma “legalidade autoritária” institucionalizada, que dificulta a responsabilização posterior.
3. Declarações recentes sobre o julgamento de 2025
- Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), jurista: “Técnica e muito bem elaborada. Não é pouca coisa denunciar um presidente ainda forte como Bolsonaro e tantos militares de alto coturno. Generais quatro estrelas estão denunciados e um deles preso. Os crimes são gravíssimos”.
- Gisele Cittadino, jurista e professora da PUC-Rio: “O processo legal será respeitado e a PGR apresentará denúncia contra Bolsonaro pela tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.”
- Paulo Ribeiro da Cunha, cientista político da Unesp: “Se as investigações e punições forem até o fim, o Brasil pode alcançar uma mudança histórica nas relações civis-militares.”
- Pedro Fassoni Arruda, cientista político da PUC-SP: “Pela primeira vez, militares de alta patente estão sendo colocados no banco dos réus num tribunal civil. Mesmo não sendo consumada, a tentativa de golpe precisa ser punida com rigor.”
- Lênio Streck, jurista,“Nenhuma democracia sobrevive se não pune quem tentou matá-la”.
4. O julgamento de agora: um divisor de águas
O julgamento em curso, com generais, almirante e coronéis acusados de “abolição violenta do Estado democrático de direito” e “organização criminosa”, representa uma oportunidade histórica de romper com o padrão da impunidade. A Operação Lesa Pátria, conduzida pela Polícia Federal, forneceu robusto material probatório. O Supremo Tribunal Federal demonstrará se o Brasil, finalmente, será capaz de enfrentar suas próprias sombras institucionais.
5. Impacto futuro e compromisso com a democracia
Este julgamento exerce papel pedagógico e preventivo. Ao responsabilizar os arquitetos da tentativa de golpe, o Estado envia um recado inequívoco: o arbítrio militar e o golpismo civil não serão tolerados.
O desafio será garantir a coerência institucional. É preciso resistir a pressões eleitorais, mediáticas e militares. Que este processo inspire a consolidação de uma cultura democrática sólida, com controle civil efetivo sobre as Forças Armadas, educação cidadã e reformas estruturais no sistema de justiça e defesa.
O julgamento que se inicia hoje não é apenas jurídico — é histórico. Coloca o Brasil diante de possibilidade de romper o velho ciclo da conciliação que silencia crimes e inaugurar um novo paradigma em que os atos contra a democracia sejam punidos. Não se trata de vingança, mas de justiça. Não se trata de passado, mas de futuro. A soberania popular, expressa nas urnas, não pode mais ser ameaçada por conspirações de farda ou gravata. Que este seja o primeiro passo, ainda que tardio, rumo a uma democracia com memória, justiça e dignidade institucional.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
A Rede Estação Democracia (RED) transmite ao vivo do julgamento a partir de 2 de setembro, com cobertura em tempo real e análises especiais. ASSISTA AQUI AO JULGAMENTO DA TRAMA GOLPISTA
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Ilustração da capa: Julgamento histórico dos generais golpistas: Brasil rompe tradição com impunidade – Imagem gerada por IA ChatGPT
Tags: julgamento militares, juristas, cientistas políticos, golpe de Estado, impunidade, justiça de transição, República Velha, Vargas, JK, 1964, democracia brasileira, STF, Forças Armadas, Operação Lesa Pátria.





Respostas de 4
Agora vemos o MORAES como HITLER, a PF como uma GESTAPO onde qualquer um que falar mal do governo ou do judiciário, SERÁ SUMARIAMENTE INVESTIGADO (PERSEGUIDO), enquanto LULA -LADRÃO vai “a lá MUSSOLINI.
Engraçado, então a PF quando prendeu o Lula não era GESTAPO?
Cezar falou tudo, hoje temos esse ladrão de presidente, a anulação dos processos não inocentou esse ladrão sem vergonha.
O que mais me impresiona e ter um bando de políticos, que foram eleitos para defender o povo, brigando por uma família de pessoas com uma trajetória de vida nebulosa.