Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
O futebol, paixão nacional e fenômeno global, está perdendo sua alma. O que já foi campo fértil de disputas improváveis, viradas históricas e identificação popular, hoje se rende cada vez mais ao peso de cifras astronômicas. O espetáculo que encantava pela incerteza agora se vê ameaçado pela previsibilidade: ganha quem tem mais. E quem tem mais, quase sempre, são os mesmos. Escrevo isso com tristeza. Como apaixonado por futebol e como autor do primeiro trabalho acadêmico brasileiro sobre torcidas organizadas (Os Gaviões da Fiel e a Águia do Capitalismo), vejo a paixão das arquibancadas se esvair.
1. O panorama global: dinheiro que decide campeonatos
O cenário internacional espelha o que vivemos em solo nacional: clubes médios e pequenos praticamente não conseguem competir com megainvestimentos estrangeiros. Nos últimos anos, um fenômeno se intensificou: a entrada massiva de emires árabes, fundos soberanos e grupos internacionais no futebol.
- O Abu Dhabi United Group comprou o Manchester City por cerca de US$ 360 milhões, dando início ao império do City Football Group, que hoje inclui clubes em várias partes do mundo.
- O Qatar Sports Investments assumiu o comando do Paris Saint-Germain em 2011. Desde então, passou a moldar o clube como protagonista global, com contratações milionárias.
- O Public Investment Fund da Arábia Saudita assumiu o Newcastle United F.C. (2021) e adquiriu participações majoritárias em quatro clubes da própria Saudi Pro League.
- Em apenas uma janela de transferências, os clubes sauditas gastaram cerca de US$ 875 milhões para atrair estrelas como Cristiano Ronaldo, Neymar e Benzema, com salários estratosféricos.
Esse movimento não é neutro: altera profundamente a lógica de competitividade em cada liga, reduzindo qualquer chance de clubes menores entrarem na briga.
2. A inflação salarial e o esvaziamento da disputa
Esse poder econômico inflaciona salários de forma vertiginosa e cria uma realidade em que apenas os clubes mais abastados conseguem atrair ou manter talentos, causando uma cascata de efeitos desastrosos para o futebol como disputa democrática.
Dois exemplos ilustram esse processo:
- Lionel Messi, no Inter Miami, recebe cerca de US$ 12 milhões de salário bruto anual, com ganhos totais estimados em até US$ 150 milhões ao longo de dois anos e meio.
- Neymar, ao retornar ao Santos em 2025, aceitou um corte drástico de cerca de 99% em seu salário, mas ainda assim recebe cerca de R$ 1 milhão por mês, mantendo-se entre os atletas mais bem pagos do futebol nacional.
Enquanto isso, clubes médios e pequenos tornam-se “celeiros de craques” — formam jogadores jovens que mal saem da adolescência antes de serem vendidos para clubes estrangeiros ou para os gigantes locais. O resultado é um desequilíbrio estrutural: os clubes que mais investem permanecem no topo, enquanto os demais servem apenas como fornecedores de mão de obra qualificada.
3. O retrato nacional: Palmeiras, Flamengo e o abismo
No Brasil, os sinais dessa distorção são escancarados. Segundo o Transfermarkt, o Palmeiras lidera entre os clubes nacionais com plantel estimado em 252,55 milhões de euros — cerca de R$ 1,62 bilhão — seguido de perto pelo Flamengo, com 221,35 milhões de euros (aproximadamente R$ 1,4 bilhão).
Essa diferença se torna ainda mais chocante quando comparada a clubes como o Internacional, que investiu apenas R$ 27 milhões em contratações na mesma janela em que o Flamengo desembolsou R$ 277 milhões. O presidente colorado, Alessandro Barcellos, foi enfático: “É o banco do Flamengo contra o Inter”. A metáfora sintetiza com precisão o desequilíbrio das forças em campo.
O resultado é previsível. Em campo, o Flamengo impôs um “baile” ao Internacional no Beira-Rio, vencendo por 2×0. Dias depois, aplicou uma impiedosa goleada de 8×0 sobre o Vitória. Numa lógica onde o orçamento define o placar, a imprevisibilidade — essência do futebol — desaparece.
Além disso, a diferença de faturamento reforça o quadro: em 2024, o Flamengo arrecadou R$ 1,334 bilhão; o Palmeiras, R$ 1,274 bilhão; e o Internacional, R$ 621 milhões. Essa desigualdade mina a possibilidade de alternância de poder nos campeonatos nacionais.
4. Os salários e o fosso entre clubes
A distorção não se dá apenas nas transferências, mas nos salários. Os maiores vencimentos do futebol brasileiro são comparáveis aos de elites europeias.
| Clube | Jogador mais bem pago | Salário semanal (US$) |
|---|---|---|
| Palmeiras | Gustavo Gómez | 36.990 |
| Flamengo | De Arrascaeta | 57.540 |
| Internacional | Enner Valencia | 73.980 |
| Bahia | Everton Ribeiro | 104.120 |
| Grêmio | Cristian Pavón | 32.880 |
| Atlético Mineiro | Hulk | 87.680 |
| Fluminense | Marcelo | 48.500 |
| Corinthians | Memphis Depay | 215.000 |
Há também jogadores menos midiáticos — como Pavón, Gómez ou Everton Ribeiro — que, mesmo sem o mesmo apelo internacional, recebem vencimentos milionários que fogem à realidade de 95% dos clubes do país.
5. Estádios novos, torcidas velhas do lado de fora
A elitização não está apenas dentro de campo. A preparação do Brasil para a Copa do Mundo de 2014 incluiu a construção e reforma de estádios modernos, transformados em arenas e “palácios”. Mas o que se vendeu como avanço estrutural se traduziu, na prática, em exclusão popular. Os ingressos dispararam, os planos de sócio-torcedor se tornaram inacessíveis para muitos, e o futebol, que sempre foi do povo, começou a ser jogado sem ele nas arquibancadas.
O Maracanã é talvez o exemplo mais simbólico: antes templo da diversidade e da cultura popular, hoje é palco de um público homogêneo, caro e distante das antigas gerais. O que se vê nas novas arenas do país — de Brasília a Salvador, de Recife a Porto Alegre — é a reprodução dessa lógica. O estádio virou shopping, e a emoção deu lugar à selfie.
6. Do espetáculo à monotonia: quando o resultado é previsível
O futebol perde, assim, sua alma de disputa. O que resta é uma competição previsível, enfeitada apenas por rótulos de “clássicos”. Clubes medianos ou pequenos são empurrados ao papel de coadjuvantes, suas ambições sufocadas pela lógica financeira.
A imprevisibilidade, elemento essencial da narrativa esportiva, desaparece. Títulos, confrontos e histórias passam a depender de balanços financeiros — não de rivalidade ou estratégia tática.
O torcedor, cada vez mais, consome um produto padronizado, formatado para agradar aos patrocinadores, mas distante da espontaneidade e da emoção genuína. Os campeonatos tornam-se meros desfiles de marcas e cifras, onde a surpresa é exceção e o domínio de poucos é a regra.
7. Um chamado por equilíbrio e reconquista
Se o futebol quiser sobreviver como paixão coletiva, e não apenas como ativo financeiro, é preciso reencontrar formas de equilíbrio competitivo — nacional e globalmente.
- Internamente, mecanismos como Fair Play financeiro, teto salarial, distribuição mais equitativa de receitas e regulação da formação de jogadores são urgentes.
- Externamente, é necessário conter os efeitos distorcidos dos investimentos desproporcionais de fundos soberanos e magnatas estrangeiros, que turbinam artificialmente certos clubes e esvaziam o restante.
Mais que uma moral, fica o desejo: que o futebol reencontre seu rumo. Que se descubra uma fórmula de tornar os campeonatos mais equilibrados e atraentes. Que o torcedor comum, o povão, possa voltar aos estádios — não como figurante esporádico, mas como protagonista das arquibancadas. Porque sem ele, o jogo perde sua razão de ser.
Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, é autor da primeira dissertação acadêmica realizado no Brasil sobre torcidas organizadas, com o trabalho de mestrado Os Gaviões da Fiel e a Águia do Capitalismo, defendida na UNICAMP em 1981. Integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Foto da capa: No Beira-Rio, antes do início do jogo Internacional 0 x 2 Flamengo, Copa Libertadores da América 2025 – Foto: acervo do autor
Tags: salários futebol, Messi, Neymar, Flamengo, Palmeiras, Internacional, Bahia, Atlético Mineiro, Grêmio, desigualdade esportiva, justiça competitiva.





Respostas de 2
O Inter como vários clubes se indignam agora porque ficaram por baixo. Esquecem que tudo isso começou em 88 com a virada de mesa que jogou o AmericaRJ na lama e que por se insurgir contra a virada foi castigado pra 2 divisão. Na época ninguém falou nada.
Longe de ser um antissemita; pois não só judeus notáveis como Marx, Rosa Luxemburgo, Eistein e Olga Benari, eu conhecí pessoalmente figuras judias extraordinárias. E um dos judeus-brasileiros ilustres foi o Dr. Havelange, que deu dignidade ao futebolista brasileiro. Mas ele foi o responsável por transformar o Futebol mundial em um show business internacional. E inclusuve, a ideia de transformar os estádios antigos em Arenas Esportivas com mais conforto e menor capacidade, eu assistí uma entrevista dele, após o Brasil tronar-se penta campeão mudial, na qual ele disse mais ou menos o seguinte: “ObFutebol é um espetáculo, e que artistas da bola como o goleiro paraguaio Chilaver, eram dígnos de um palco mais confortável”.