Puro, romance de Nara Vidal – que por ser ficcional é deveras verossímil

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Por CÁTIA CASTILHO SIMON*

Na noite de 12/08, o grupo de leitura de mulheres, Pororoka[1], se reuniu para conversar sobre a leitura do mês: o romance Puro, da escritora Nara Vidal. A romancista nasceu em Minas Gerais, mas atualmente reside em Londres. O livro foi lançado em 2023, recebeu o prêmio de melhor romance pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), em 2024. O romance traz o contexto histórico-social dos anos 30, a eugenia, em uma fictícia cidade mineira, Santa Graça.

Durante a Flip, deste ano, eu e a Dani Langer que integramos o Pororoka fomos tietar e ouvir a Nara em uma das mesas que a escritora participou. Ficamos sabendo que a pesquisa para o livro iniciou em meados de 2010 e surgiu da indignação da escritora por essa lacuna na história oficial brasileira bem como nos currículos escolares.

Ações desumanas legitimadas e incentivadas pelo poder público vigente foram jogadas para debaixo do tapete, mas com as digitais fascistas expostas a olhos e ouvidos atentos. Uma delas consta em meio às epígrafes que antecedem a narração, o artigo 138 da Constituição de 1934, “Incumbe à União, aos Estados e Municípios”, entre outras coisas, “estimular a educação eugênica;”. É assim que a população de Santa Graça faz o pacto para alcançar a cidade perfeita com os cidadãos à altura desse desejo.

A eugenia está inserida no projeto que pretende a raça perfeita. O nazismo e o fascismo pleitearam e foram fundo na eliminação do que era contrário aos seus postulados insanos. Puro, discorre sobre o desaparecimento de cinco crianças negras e a morte de outras que também não se enquadram no modelo físico e genético ambicionado pela alta cúpula da cidade fictícia. O livro nos leva a refletir sobre a gravidade e a atualidade desses pressupostos. Ainda que ambientado nos anos 30, o romance nos dá o choque de realidade uma vez que as ações confessadamente eugênicas também praticadas no nosso país jamais foram passadas a limpo, antes, dormitam e acordam ao sabor dos ventos políticos. O documentário, disponível no Youtube, “Menino 23 – infâncias perdidas no Brasil” – resultado da pesquisa do professor Sidney Aguillar Filho desencava a história de crianças negras escolhidas a dedo em orfanato do RJ para viverem em regime de escravidão no interior de SP, no período após a segunda guerra mundial.  O governo Bolsonaro, em 2019, através do gabinete da Casa Civil, comandado pelo General Braga Neto, divulgou a propaganda “Pátria amada Brasil – esperando um futuro melhor”, com crianças brancas ao fundo olhando para o céu. A peça publicitária gerou polêmica uma vez que ia de encontro à realidade das crianças brasileiras. O fôlego fascista é assombroso, na última eleição a presidência da França, a campanha da extrema direita de Marie Le Pen tinha como slogan – “vamos dar um futuro às crianças brancas”, angariando adesões a partir do indecente convite. E mais recentemente, a campanha de Trump surfou nessa onda. O mundo se revela cada vez mais um lugar perigoso aos divergentes. A conquista de direitos pelos menos favorecidos atiça a reação dos contrários.

Buenas, há muitas coisas em comum entre a fictícia Santa Graça e os exemplos referidos acima que nos deixam em alerta quanto a reiterada atuação fascista pelo viés da mal-disfarçada eugenia.

No romance a condução da história não acontece através de um narrador específico, mas pelo emprego de rubricas usadas no teatro, indicando as ações e pensamentos das personagens. É assim que Lázaro, o menino branco adotado por três velhas nada santas, grita, diz, pensa.  Íris, a empregada negra que além de fazer todo o serviço da casa cuidava do menino Ícaro, pensa, sente muito, sussurra. Ícaro com 13 anos é deficiente físico, corpo fragilizado e entorpecido por remédios para que seja desacreditado no que ouve e vê. Ele pensa, faz silêncio, escuta.

Ao longo do texto as conexões dos poderosos vão se revelando e mostrando que não estão e nunca estiveram para brincadeira. A população do bairro Mata-Cavalos é uma sombra a ser mantida e descartada quando necessária.  A cumplicidade de Íris e Ícaro não é suficiente para que tenham sucesso frente ao macabro plano de limpeza étnica e social empreendido pelos cidadãos ditos de bem entre eles, o padre, o médico, a avó e os pais do menino Ícaro. A escritora desvela cada um de seus personagens causando a sensação de risco que tínhamos quando antigamente apontávamos lápis com uma lâmina gilete. Cada rubrica é um corte que o leitor ou leitora acompanha como se fosse em tempo real, fere fundo e não pode ser remediado. E as lâminas aparecem sob novos nomes, como a personagem Delfina, órfã abandonada que se transforma em Helga, a tenaz enfermeira.

Puro é um romance que precisava ser escrito assim como a história brasileira urge ser reescrita. Nara Vidal, estudiosa da obra de Shakespeare, foi fundo na pesquisa, trouxe elementos inovadores e desconcertantes para o livro. Uma escritora corajosa que arriscou numa construção literária singular como a narrativa exigia. Levantou o tapete e revelou nuanças de uma história indigesta, para dizer o mínimo, que por ser ficcional é deveras verossímil.

Referências

[1] Pororoka – grupo de leitura de mulheres, curadoria minha, da Dani Langer, da Dione Detanico e da Liana Timm. Iniciou os encontros mensais presenciais em julho de 2024, na Livraria Macun, na Otávio Correa, em Porto Alegre.


*Cátia Castilho Simon é professora aposentada  RME/Porto Alegre,  escritora e poeta.

Foto de capa: Divulgação

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