Por JORGE BARCELLOS*
O Brasil abriga a terceira maior população do mundo de pets, com cerca de 160 milhões de animais de estimação.
“Estabilizou!”
Eu fiquei tranquilo, sem saber que o pior estava por vir. Nina, a poodle de 11 anos de minha família, estava tendo seu terceiro episódio de descompasso. Descobrimos, eu e minha esposa, um grave problema cardíaco em janeiro, no primeiro episódio. Respirava tão ofegante que a levamos para consultar. O veterinário a medicou em Cidreira, com a recomendação de exames médicos aprofundados, mas já suspeitava de problema cardíaco grave, já que ouvia seu coração bater irregularmente. Fomos então a Tramandaí para fazer um exame que confirmou a doença. Nina era uma cardiopata.
Tanto o veterinário como o especialista do exame, olhando as imagens, fizeram uma expressão de grande tristeza, seguida da expressão “está na tapa da gaita”. Esta expressão é uma gíria popular no Rio Grande do Sul que significa que era um coração muito grande e cansado, exausto, praticamente acabado, forma coloquial de descrever um coração que está no limite de suas forças físicas, e de certa forma, vi nessa hora que isso selou o seu destino. A expressão tem relação com o aspecto da capa de instrumentos musicais: se muitos os protegem, também sofrem pela ação do tempo. Nina usou demais seu pequeno coração: corria demasiado por nosso pátio, latia sem parar para o lixeiro, para o entregador de cartas. Corria muito, seja brincando ou discutindo com Paçoca, o cão de meu filho. Tinha uma vida livre de cachorro, o que acho que a fazia feliz. O médico havia dito para Nina parar de tanta agitação, mas você sabe como são os cachorros, eles são como as crianças, raramente nos ouvem.
Com o coração no focinho
A segunda vez foi em Porto Alegre. Ela ficou novamente com o coração na boca, ou no focinho, como poderíamos dizer. O descompasso havia retornado. Fomos a outro veterinário, que a medicou de forma emergencial. Ela retornou à normalidade, o que para nós foi um alívio. Fizemos novos exames, ela foi novamente medicada. Nina havia entrado para o regime farmacocanino, essa grande indústria de produção de medicações veterinárias que tem como objetivo reduzir os danos do estresse e da dor que sua situação promovia. Novos exames confirmaram o pior, nem com a medicação a situação cardíaca melhorava. Na última semana, ela estava em um estado oscilante, creio, com algumas intercorrências de tosse noturna indicando os sintomas do pior que estava por vir. Um retorno foi programado para outubro. Não deu tempo.
A terceira vez foi na semana passada. Na última quarta-feira, aconteceu o que muito temíamos em nossa família. O terceiro descompasso aconteceu à noite. Eu imediatamente sabia que precisava levá-la a um veterinário. Minha esposa temeu pelo pior. Pegamos, eu e meu filho, a estrada que leva de Cidreira a Tramandaí à noite. Na escuridão. Ela estava nitidamente em crise, descompassada. Eu a levei no meu colo, os últimos instantes de contato físico que tive com ela, que adorava. Meia hora em que eu a abraçava e ela me olhava atentamente. Pensava em algo? Será que pensava: é hoje que desencarno ou morro? Ou será que apenas via minha agonia e ficava triste? Um cão fica triste também, não?
Hospitalizar o pet
Estamos na clínica e começam os preparativos para a baixa. Nesses lugares com recursos, ainda assim predomina a força da burocracia: papéis têm de ser preenchidos, fichas com registros anotadas, termos de liberação de responsabilidade registrados. Não estamos confortáveis, ela oscila nos sintomas, entre o grave e o menos grave, enquanto a atendente de plantão nos recepciona. Queríamos ver logo atendida, mas isso precisou esperar. A atendente, no entanto, preparou o lugar para ela alojar-se, para preparar-se para os tratamentos intravenosos de emergência. Depois de olhar seu rosto temeroso no carro, voltei a vê-lo na entrega à emergência. Por mais que ali estivesse o melhor possível do aconchego, com os pequenos cobertores, era a proximidade minha que ela queria. Ela pressentia o fim que naquele instante eu negava: isso deve passar mais uma vez, eu pensava. Volto, vejo a mensagem de estabilidade e durmo. Não passou. Uma hora depois, a enfermagem comunica o óbito via mensagem de WhatsApp. Não vi, estava dormindo, pois a última era, justamente, a melhora. De manhã, a leio. Uma imensa tristeza toma conta de nossa família.
Isso acontece também com humanos. O ator Paulo Gustavo, que faleceu de covid em maio de 2021, apresentou uma súbita melhora antes de seu quadro se agravar. Zacarias, o ator e humorista, chegou a prever a própria morte, como o médium Chico Xavier, que disse querer morrer num dia de grande felicidade do país, o que aconteceu de fato, em 2002, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo. Nina poderia estar prevendo sua morte: ela recusou a alimentação úmida onde eu colocava a sua medicação naquele dia e à noite, quando tentei colocar a medicação, recusou com força ainda maior. Ela sabia que estava morrendo? Talvez, pois ela havia se afastado de nós por instantes à noite. Teria sido melhor esperar para ela morrer em casa? Não sei. Eu só sabia por orientação veterinária: em caso de descompassamento, ir à emergência canina com urgência. Foi o que fiz.
A melhora da morte
Esse “estabilizou” se assemelha a um fenômeno inexplicável para a ciência chamado de “melhora da morte”. Essa espécie de iluminação antes da morte, melhora do fim da vida, melhora para despedida, chamada também de “último raio de Sol” numa expressão chinesa, também recebeu o nome de “Lucidez terminal” pelo biólogo alemão Michael Nahn. Ele dá explicações ainda não comprovadas de reações químicas no corpo que funcionam como último instinto de sobrevivência, persistência da consciência da mente em vias de confirmação da morte (disponível aqui). Isso seria possível em animais? Essa melhoria súbita acontece entre humanos, variando de 1 a 7 dias. Poderia ser equivalente em horas para nossos animais de estimação? Em humanos, a explicação é relativa a “oscilações de consciência que podem refletir ajustes complexos em cascatas de sinalização (um evento desencadeia outro), modificações sinápticas, interações na rede neuronal e, talvez, compensação ou reversão temporária da inibição funcional crônica, devido a proteínas neurotóxicas”. Há também outra hipótese, de “o corpo emitir uma descarga de hormônios de estresse quando percebe que está próximo da morte, como uma situação conhecida como ‘luta ou fuga’, que é a resposta fisiológica que funciona como uma espécie de instinto de preservação”. E quando essa situação termina, o indivíduo vem a falecer. Mal sabemos isso sobre a morte de humanos, mas por que eu me preocupo se acontece com animais? Porque ainda sinto dor por sua morte e pelo momento de “melhora da morte” que suponho vivenciou.
No exato instante em que Nina morreu para minha família, ela nasceu como objeto de consumo para os algoritmos das redes sociais. Eu não sei exatamente como, mas você deve ter já tido essa sensação de que, após algo que o envolveu, imediatamente suas redes foram invadidas por propaganda. Funciona assim: você diz que queria viajar, e imediatamente entram propostas de viagens da Decolar, entre outras empresas. Você diz que precisa de uma torradeira, e de novo, inúmeras propagandas da Shopee e Amazon enchem seu feed de notícias. Foi o mesmo que aconteceu comigo com a morte de Nina. Inúmeras propagandas chegaram ao meu feed de notícias em instantes. Primeiro eu até achei isso normal, mas depois me dei conta de que era exatamente o contrário.
Converter luto em lucro
Para meu leitor de Sler, organizo-as em três grupos principais. O primeiro é o da venda de mercadorias associadas ao pet falecido. Guri Gurumins, Amigurumis e Tricotin me propõe fazer uma encomenda de uma bonequinha de tricot com o formato do pet falecido. Vejo o anúncio onde uma mulher chora com o boneco em mãos, como se fosse a saudade provocada pelo objeto, cena que busca me convencer de que a lembrança só trará alegrias. Seven dogs me oferece uma luminária 3D personalizada com o animal de estimação que faleceu. Apesar de ter diversos objetos com animais pré-prontos, eu posso mandar uma imagem e o nome para constar no seu interior. A peça, com 8 cm de altura por 6 de largura, custa módicos R$ 249,90.
Constato uma especialização de produtos voltados para lembranças de pets falecidos. O site Floreá oferece “um colar que está encantando a todos, o pingente York, ideal para os apaixonados por essa raça charmosa”. “Toque aqui e garanta o seu.” Yorks, ela diz, não Poodles. Talvez isso seja associado à decadência da raça poodle no Brasil, como fala uma reportagem da BBC (disponível aqui). A Shopee me oferece roupas da marca The Dog Face, da mesma forma que a Famous Breeds me oferece “camisetas divertidas e confortáveis, perfeitas para você mostrar seu amor pelos pets”. Finaliza o grupo com a Dog Hugs Co, que me oferece camisetas com estampas de cães, pois “Cão é família, né?”
Outro ramo em expansão é o de quadros com a foto do animal de estimação. A Blumiez.Oficial me promete quadros de vidro com fotos de meu animal de estimação morto e a Cusca Criativa me oferece kits de quadros de pets e me diz que, na compra de um kit, ganho um porta-chaves personalizado. Como ela se define: “a Custa criativa não é uma empresa para quem gosta de pets. É para quem coloca o pet na foto da família, chama de filho e conversa como se ele entendesse cada palavra (porque entende mesmo). É sobre amor de verdade.” Se é sobre amor de verdade, eles deveriam saber que nada substitui Nina, não? Melhor ainda é SoulBrick Br, que me oferece a possibilidade de reconstruir o cão e minha família como se fôssemos as peças de um jogo Lego. E talvez seja exatamente isso: nosso luto para as empresas por esta perda, outro modo de reproduzir pelo jogo de emoções, a rentabilidade do capital.
Autoajuda pré-morte
O segundo grupo eu denomino de autoajuda pré-morte. Esse campo divide-se entre sites que querem, de alguma forma, me prestar auxílio para compreender o meu pet. Há o Centro de Consciência Animal que me oferece o curso de Comunicação Intuitiva Animal, onde a modalidade iniciante já permite “compreender o que o animal sente e pensa; ajudar seu pet a superar traumas através da comunicação intuitiva” e o principal “se comunicar com animais e se conectar com a natureza”. Seria ótimo para compreender o que o olhar de Nina queria me dizer.
Peludinhos e Cia me falam das pesquisas em comportamento animal que mostram que os cães são sensíveis à ausência de seus tutores, o que se deve à liberação de menos ocitocina, o hormônio do bem-estar que também os animais têm. Ele quer me sugerir que o sentimento do luto também é similar nos animais. “Assim como os humanos sofrem com a perda de alguém querido, os cães também passam por uma dor emocional durante a separação.” Eles não têm a mesma percepção do tempo que nós, por isso cada ausência pode parecer interminável e profundamente dolorosa. A parte positiva é que essa forte ligação também representa um amor incondicional.”
O site Curiosidade Infinita fala que dormir ao lado de um cachorro pode ser mais benéfico do que dividir a cama com outra pessoa “ao menos para mulheres”. O site transcreve conclusões de suposto estudo da Universidade de Buffalo que analisou os hábitos de sono de 962 participantes do sexo feminino e concluiu que “dormir com pets não atrapalha, ao contrário, melhora a qualidade do sono”.
Também recebi propostas de planos de saúde como o da PET Love, que “cabem no bolso”, pois garante “que não há variação de preço independente do porte, idade ou condição de saúde”, além de promoções de quantos mais pets incluir, maior o desconto, “25% de desconto em produtos com frete grátis.” Ele apresenta credenciais de Melhores.com, de Melhor plano de saúde pet 2025, 24 e 23, ainda que não diga quem é que o concedeu. Ele não obriga a inserção de microchip, o que nem imaginava que pudesse ser exigido, não tem coparticipação nos serviços, apenas nas consultas com especialistas.
Ajuda pós-morte
O terceiro grupo denomino de “Ajuda pós-morte” e envolve todos os produtos oferecidos a mim após a morte de Nina. Patas Holísticas me propõe a compra do e-book “A espiritualidade dos animais”, uma resposta à pergunta sobre o que acontece com as almas dos cães após sua partida. Ele diz que vou entender como “é a alma dos animais e como ela se expressa, como os animais percebem a vida, a morte e a reencarnação, os sinais espirituais que indicam a presença de um animal desencarnado, as missões da alma, contratos espirituais e os propósitos de convivência com cada animal e como lidar com o luto de forma consciente e amorosa”. Sim, depois dos 60 entendo que tenha um mais de fé. Um pouco mais.
Nesse grupo, a Editora Dufaux, que tem 45 mil seguidores, me oferece o livro “Patas Sagradas”, que apresenta a forma espírita de ver a relação de tutores e seus animais e nas experiências de comunicação interespécies da autora, Ana Cristina Souza e Maria José da Costa. A primeira parte da obra reconstrói a visão espírita, e a segunda, as mensagens recebidas de animais desencarnados por meio do trabalho mediúnico. “Esta obra demonstra que o amor entre humanos e animais não se encerra com a morte.”
Amor Canino me diz que “Eles não partem, apenas mudam de plano. O seu filho de quatro patas continua ao seu lado, agora feito de luz e silêncio. Dos campos invisíveis, ele sente o seu carinho, ouve sua saudade e retribui com proteção. Quando você pensa nele, ele se aproxima. Quando você cora, ele lambe sua alma com amor. Porque o amor que vocês viveram não morre. Ele se transforma em cuidado, do lado de lá para o lado de cá.”
Despedida digna
Anjinhos Crematório Pet me promete “A despedida digna que todos merecem”. A empresa, de Cachoeirinha, me promete “como transformar a dor da perda em uma homenagem cheia de amor”. Cortel me oferece um plano funerário pet para “dar um adeus digno e cheio de amor quando a dor da perda bate à porta”. Me informa que o Plano Standart Cortel Pet garante uma cremação individual em urna padrão, com certificado e cerimônia com chuva de pétalas, dispondo-se a buscar o corpo em clínicas até 50 km, e o retorno das cinzas em dez dias, por apenas 9,90 mês ou 60 vezes no cartão.
Já Rest In Green Brasil me oferece caixões ecológicos para pets, “uma homenagem que floresce, assim como o amor que fica”. A empresa criou caixões funerários sustentáveis, produzidos em papel kraft biodegradável, sem plásticos ou metais, para dar um fim respeitoso e consciente. Como são leves e dobráveis, atendem todos os portes e com responsabilidade ambiental “um tributo consciente à vida que partiu.” Descubro o ramo do “óbito pet”, em ascensão, já que o Brasil abriga a terceira maior população do mundo de pets, com cerca de 160 milhões de animais de estimação, metade composta por cães e gatos, com 62,2 milhões, segundo o Portal Cães e Gatos. Urnas com uma estética clean, com caixões que, após a cremação, são passadas as cinzas para outro vaso com flores.
A página Keka & Kekin é o blog pessoal que tem 107 mil seguidores, localizado em São Paulo, que oferece o livro “Voltei!” Ele fala da “experiência de um tutor que perdeu o seu cão (Kekão), mas que logo após retorna em outro cachorro, que no caso é a Keka. É uma história que vai te fazer refletir, rir, chorar e, acima de tudo, se inspirar. É uma história real sobre o retorno de um cão para viver novas aventuras ao lado do seu tutor, contada do ponto de vista de um cachorro muito especial.” Às vezes, o algoritmo se engana e me envia algo como o site Gema Talento, que promove o livro de Renata Piza, autoficção sobre a morte de seu marido, Daniel Piza. Nada é perfeito. Nem no mundo dos algoritmos.
Algoritmos grotescos
Tudo isso é produto dos algoritmos, eu sei, e eu teria inúmeras observações sobre cada proposta, mas deixo o leitor imaginar quais. O que acho curioso e quis compartilhar com o leitor é que, em algum momento de minha triste experiência, o meu celular captou o que estava acontecendo ao meu redor e traduziu isso da única maneira que foi programado para fazer: encontrar mercado fornecedor de produtos e serviços. É para isso que os algoritmos servem, não? Mas, ao final, vendo a enxurrada de postagens, de alguma forma eu acho isso tudo muito grotesco, pois faz parte do lado absurdo de nossa realidade que absorvemos cada vez mais sem pensar, naturalizando-o. Penso que, como o jornalista argentino Elieser Budasof vê o absurdo esparramar-se na América Latina (disponível aqui), eu vejo o absurdo das redes sociais na sucessão dessa propaganda que aproveita meu momento de dor familiar para oferecer mercadorias. Isso também não é grotesco?
Eu assisti à passagem de uma época em que os cães deixaram de ser animais de estimação para se transformarem em parte da família. Eles saíram do pátio de nossas casas diretamente para as salas, sofás e camas num processo de humanização sem precedentes. Me lembro de Tegui, o cão de minha tia, um pequinês muito simpático que não ultrapassava, no entanto, a entrada da casa. Mas desde que me casei, os cães sempre ocuparam um espaço importante em minha casa, talvez pelo fato de que sejamos a primeira geração a demandar tanto amor em direção ao outro numa sociedade individualista.
Quando vejo a avalanche de propaganda que recebi, só posso pensar no quanto as redes sociais tendem a deformar nossa realidade e isso é o que chamo de grotesco. Esse exagero de propaganda para chamar nossa atenção, essa procura absurda que inclui nossos momentos de dor, me lembra que, mesmo neste instante, ainda sou um capital para as redes sociais. Da mesma forma que se fala nelas como ”ecossistemas da atenção”, entendo que é nestes momentos em que as redes se revelam exatamente o que são. O problema não é oferecer produtos e serviços, que eu querendo ou não posso adquirir, mas a forma invasiva e deliberada com a qual é feito. Se na política, o grotesco como artifício pode ser libertador, na vida cotidiana da dor, não. Você não pode querer lucrar quando coisas terríveis acontecem.
Tentando vender no momento de dor
Os algoritmos não estão de brincadeira: se eles podem ouvir o que faço com o objetivo de buscar minha atenção no momento de dor de minha família, eles são grotescos. Não podemos subestimar sua capacidade e seu poder de tentar nos domesticar e o fato de oferecerem produtos num momento em que desejo apenas estar sozinho e em paz, chorar, me faz pensar que seu sistema funciona de forma desequilibrada. É o que eles simbolizam para mim, querem chegar ao meu mundo como objeto de satisfação de uma falta – Nina – que é incapaz de ser solucionada.
Tentar vender com a morte só pode ser um símbolo grotesco do modo como funcionam os algoritmos. Se há algo que definitivamente eles não entendem, é a dor humana. É preciso mais uma vez dizer que, num mundo em que seres humanos estão cada vez mais sendo substituídos pela IA, precisamos ainda de seres humanos. Não há mercado que substitua um abraço de conforto pela partida de um animal querido. É preciso mostrar as consequências das redes e dos algoritmos que funcionam dessa forma. Essas propagandas pressupõem uma lógica de construção de uma imagem que é grotesca em si mesma: que uma mercadoria ou ideia seja capaz de apaziguar minha dor.
Deixem-me viver minha dor!
As propagandas são grotescas por seus elementos contraditórios: são peças bonitas, é verdade, mas tratam de um tema que queremos esconder, a morte; oferecem interpretações sublimes para imaginar o mundo pós-morte, mas também se tornam ridículas em certos casos e o leitor irá encontrar exemplos nos casos que descrevi; fazem de um tema sagrado, a morte, fonte de algo profano, a mercadoria. Sinto desconforto com tanta propaganda que me procura neste momento, é a ambiguidade de um mundo que me promete consolo enquanto seu objetivo é o lucro.
Minha conclusão é que não há um objeto que possa aplacar essa dor simplesmente porque preciso sentir o luto da partida de Nina. A propaganda de que sou vítima mente: nada pode substituir a dor da morte. Essas propagandas seguem as regras da publicidade para tentarem buscar impacto, são muito bem produzidas na maioria das vezes, mas querem é impor uma visão mítica que esconde a realidade: minha cachorrinha de estimação morreu e preciso aceitar isso. Talvez até pense, numa visão espírita, de reencontro, mas agora, deixe-me com minha dor. Esse estereótipo das redes sociais, de que é possível acalmar a dor da morte pelo consumo, só não é mais grotesco que a própria realidade latino-americana, pois é de uma ignorância assustadora, como diz o jornalista. Se eu ficar com o objeto ou aquilo que me oferecem, não serei mais nada além de consumidor. Agora, sou o testemunho da partida de um cão de estimação que, para minha família, teve valor e é isso que importa. Não comprar algo externo, mas cultivar uma memória interior.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Nina / Acervo do Autor.





Uma resposta
Achei que o texto TAMBÉM foi grotesco: reclama de animalização dizer humano mas faz hunanização de animal . Aí se aproxima da publicidade e do algoritmo que censura: um bicho (gente ou não) fora de seus lugar e tratamento, se descaracteriza tanto quanto a obra de algoritmo! Sério é não sermos DIONOS de computador, celular e, agora, também televisão: os aparelhos sabem mais da gente que nós e nosso psicanalista. E, como na advertência policial, pode E SERÁ) “usado contra a gente: Os manipuladores deles “É QUE SÃO NOSSOS DONOS”. JAMES BOND e o “espião que veio do frio” colocavam escutas e câmeras clandestinas para espionar alguns. Hoje compramos os aparelhos que fazem espionagem, lavagem cerebral, assédio moral! E mesmo sendo “nossos”, pagamos pra usá-los e eles nos condicionarem. Viva Pavlov!