Sadowikipedismo: Sem relevância aparente!

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Design sem nome (24)

Por JORGE BARCELLOS*

A Wikipédia é um órgão de memória. A primeira tentativa de meu técnico foi por uma simples menção. E foi sumariamente deletada.

“A neutralidade é uma força de violência.”
 Slavoj Žižek

Semana passada, contratei um técnico em informática para fazer minha página na Wikipédia. Ele é ótimo de preço, cobrou R$ 150, um valor simbólico, considerando que o seu objetivo não era ficar rico, mas só me fazer um favor.  Isso não é recomendado pela própria Wikipédia, que defende que as páginas sejam voluntárias e produto de trabalho coletivo e nem que os próprios colaboradores proponham autobiografias, pela dificuldade de ser neutro, o que me colocava numa sinuca de bico: eu não podia pedir para alguém ou eu mesmo fazer minha página. Resultado: ele fez a página e ela foi deletada duas vezes. Se eu, com 25 livros publicados, segundo seus critérios, não tenho o direito de colocar minha contribuição ao mundo intelectual, e nem conto com a esperança de um ser humano em algum lugar do mundo reconhecer o meu valor e tomar a iniciativa porque iniciar um debate ali é difícil, arrastado, leva tempo, então estou condenado de antemão a nunca ter um cantinho para chamar de meu na Wikipédia. Pelo que já escrevi, acho isso injusto. Olho o corpo editorial de Sler e tenho certeza de que, por sua produção, cada um de meus colegas merecia estar ali mais do que eu. É como a sentença dita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek: no capitalismo, você pode escolher, desde que as escolhas sejam dadas de antemão, como entre tomar Coca-Cola ou Pepsi. Eu sinto que as regras da Wikipédia me fazem o mesmo.

Por isso, gostaria de compartilhar com meu leitor o que refleti sobre essa experiência, porque ela é cheia de significados. Para quem está fora, a Wikipédia funciona como a velha Enciclopédia Barsa: é um lugar que consultamos para ter a primeira ideia para uma pesquisa. Ainda nos anos 2000, quando foi fundada a Wikipédia, eu me lembro da crítica universitária à pretensão de uma obra de conhecimento coletivo, as cópias deslavadas que alunos faziam de suas páginas para fazer seus trabalhos, mas entendo impossível de negar o fato de que é uma obra de referência como o próprio Google é, onde pesquisamos para nossos estudos. Cada escritor tem seu próprio método para escrever: eu conto com minha biblioteca particular para aprofundar qualquer tema, mas, em segundo lugar, é claro, uso o Google e a Wikipédia para dar início às minhas pesquisas que originam artigos como este que você está lendo.

Temer a morte das ideias

Como no filme O Sétimo Selo (Ingmar Bergman, 1957), sou como o cavaleiro templário Antonius Block.  Hoje, eu tenho 60 anos e, como ele, que combateu as cruzadas, eu combati o capitalismo e a má política. E, como ele, como aposentado, retornei à minha casa. Eu não temo a morte, mas temo a morte do que escrevi. É o medo natural de todo escritor. Por isso, como ele, desafio a morte escrevendo, como o protagonista a desafia com um duelo de xadrez.  A luta dele por liberdade é como a minha luta contra o esquecimento: se a cena mais célebre do cinema é ele jogando xadrez com a morte, a minha é essa espécie de variação que faço com a internet. Imagine a cena: eu diante de um computador jogando com a internet porque acredito que ela terá mais vida do que eu, e talvez por isso, seja uma boa lápide. Enquanto Block segue seu caminho tentando enganá-la e conhece outros personagens, eu sigo o meu caminho na internet tentando enganá-la da mesma forma: meu jogo é ter meia dúzia de páginas on-line, como Medium, páginas em plataformas jornalísticas, páginas de redes sociais, página no Lattes, minha própria página pessoal e, é claro, com muito orgulho, minha página em Sler. Eu sei que as páginas na internet também um dia morrem, eu apenas tenho esperança de que elas vivam um pouco mais do que eu. Eu tenho amigos falecidos que ainda têm redes sociais, como se de alguma forma ali sobrevivessem. Posso ver suas fotos ali, suas mensagens e as dos que registram sua partida. Se eu desaparecer, sei que meu pensamento estará aqui em Sler. Como Bruck, faço minhas confissões em meus textos e em minha coluna, como ele ao padre de uma igreja, sem saber que era a própria morte, enganando-o. Eu sei que a internet faz a mesma coisa comigo, que mesmo ali meus escritos não serão para sempre, como Brock e seus amigos sabem de sua breve vida na Terra, da mesma forma que eu sei, como ele, que meu tempo na Terra já passou dos 2/3, tema sobre o qual já relatei aqui em artigo. Não nos enganemos com o fato de o filme passar na Idade Média: já mostrei (disponível aqui) que não estamos tão distantes dela assim.

Desde que me aposentei, o conceito de Memento Mori, que em latim significa “Lembre-se de que vai morrer”, faz parte de meu pensamento. Coisas de aposentado de primeira viagem. Sei que daqui a pouco nem vou pensar nisso, mas a verdade é que, para mim e muitos outros escritores, a escrita é uma saída, e como no filme, onde somente os artistas mambembes conseguem livrar-se do final trágico, para mim, apenas pela escrita vejo uma forma de salvação. Por isso, ter uma página na Wikipédia seria essa tentativa a mais de sobreviver. Minha estratégia, semelhante às jogadas de xadrez de Bruck, é essa, a de espalhar referências e registros na internet mundo afora, mesmo sabendo que ela se modifica. Imagino um dia no futuro, um viajante encontrando enterrado na areia um pen-drive com artigos meus, como o astronauta George Taylor encontra a icônica Estátua da Liberdade no filme Planeta dos Macacos (Franklin J. Schaffner, 1968). Sei que a memória morre também na Internet porque vi não apenas páginas minhas, mas de sites governamentais simplesmente desaparecerem do ar, com seus arquivos e documentos, e nunca vi setores da memória, documentação ou partidos políticos derrotados lutarem por sua preservação. Poucos se deram conta de que, quando a direita assumiu o poder, a primeira coisa que fez foi deletar as milhares de páginas de história da esquerda armazenada nos servidores de órgãos públicos. Você acha isso certo? A própria Câmara Municipal, quando fez uma reforma nos anos 2000 de seu site, retirou do ar tudo o que estava antes registrado, com inúmeras informações. É como se cada órgão público ou governo fizesse sua própria Wikipédia e, num simples clicar de uma tecla, essa memória desaparecesse, exatamente como minha página na Wikipédia. Não há apenas uma guerra por narrativas no ar, há uma guerra pela memória.

A Wikipédia como memória

A Wikipédia é um órgão de memória. A primeira tentativa de meu técnico foi por uma simples menção na Wikipédia, praticamente um único parágrafo, que foi sumariamente deletado. A segunda tentativa foi uma página mais elaborada. Ele havia programado uma IA para fazer o currículo seguindo rigidamente todas as regras e procedimentos dados pela Wikipédia a partir do currículo documentado que lhe mandei (disponível aqui). A página foi sumariamente deletada também. Foi aí que me bateu o estalo. Se a Wikipédia exclui inclusive páginas que foram feitas por IA a partir de suas próprias regras, é porque algo a mais pode estar ocorrendo em seu interior. Comecei a estudar a forma de organização da Wikipédia e, provavelmente, meus colegas autores aqui mesmo da Sler, como Carlos André Moreira ou Flávio Kiefer, por sua experiência, tenham uma noção melhor que a minha, mas o que eu encontrei e gostaria de compartilhar é o seguinte.

Primeiro, a dificuldade de acesso para a produção de um registro. Eu preciso dizer antes que não tinha certeza se era certo ou não contratar um prestador de serviço, mas achava justo. Se não via que minha trajetória fizesse alguém fazer de boa vontade uma página com meu nome, e se eu mesmo não poderia fazer ou pedir isso a alguém, eu entendia que fazer sem retribuição pecuniária era injusto – meu técnico e amigo poderia fazê-lo – porque acredito que as pessoas não deveriam trabalhar sem receber, exceto se estivessem dispostas a isso. Eu até pensei que podia ser ilegal, mas depois que vi diversas empresas fazendo o mesmo no mercado, pensei: “Bom, a Wikipédia deve saber, e se não fez nada, é porque aceita.” Por isso, ela diz: “não recomenda”. Há quem faça. Ela sabe que conta com filtros e barreiras interiores que fazem esse trabalho ser hercúleo e, por isso, nem todos se aventuram. Para meu técnico, era uma coisa nova, daí sua disposição. Ele até pensou em profissionalizar o serviço, mas depois da segunda derrota, acho que desistiu. Eu não sabia que o meu problema era “como” ela era feita.

Segundo quem é competente para avaliar. Tento localizar a página de suposta justificativa de eliminação de minhas páginas, sem sucesso. Encontro apenas o responsável chamado “Little Sunshine”. Encontro em seu registro para me deletar um “sem indicação de importância”. Quem é Little Sunshine? Penso, e em seguida na página encontro “Prazer, meu nome é Bruno. Eu anteriormente editava sob o nome “BraunOBruno”. Edito ativamente desde 10 de outubro de 2021; há 3 anos, 9 meses e 23 dias.”   Eu trabalho ativamente em Educação para Cidadania há 37 anos, mas “Bruno”, com sua experiência de 3 anos na Wikipedia, já me deleta sem pensar. “Sou sem indicação de importância.” Aparecem outras páginas de discussão sua com outros proponentes de páginas. Vejo autores de páginas com muitas referências que têm sua página deletada. Um caso de uma banda de música citada e com mais de um milhão de ouvintes no Spotify é deletado. Como resposta, o crítico inicia uma discussão para eliminação do proponente. Isso não parece autoritário para você? Para mim, sim. Começo a desconfiar que há algo de podre no reino da Wikipédia. Sim, estou chateado.

Discordâncias com o método

O terceiro é que descubro que não estou sozinho na luta por um lugar na Wikipédia.  A professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mariana de Moraes Silveira, defende que historiadoras e historiadores se apropriem da Wikipédia como espaço de construção coletiva do conhecimento e divulgação científica, exatamente como me proponho a fazer. Afirma que o modo como são construídos os conteúdos tem criado algumas distorções. “Esses momentos em que a quantidade de conhecimento disponível se tornou subitamente muito maior, eles são momentos de muita incerteza e de muita insegurança”, reflete Mariana. Ela aponta que uma delas é o viés de gênero presente no site. “Em 2021, em meio às comemorações dos 20 anos da Wikipédia em língua portuguesa, uma pesquisa realizada pela plataforma apontou que apenas cerca de 11% das pessoas que editavam na enciclopédia virtual eram mulheres. Além disso, somente cerca de 20% das 265.764 biografias disponíveis na Wikipédia em português são sobre mulheres, de acordo com a Humaniki – projeto que compila um conjunto de dados abertos sobre humanos em todos os projetos da Wikimedia.” Para Silveira, a explicação dessa assimetria é relacionada à “assimetria histórica das profissões ligadas à tecnologia”, explica Mariana.

Para Mariana, “existe uma assimetria extra, pelo fato de que normalmente as pessoas que editam na Wikipédia são pessoas que têm um certo conhecimento de tecnologia, pessoas que têm tempo e interesse para fazer essa edição.” Silveira diz que existem os vandalismos das edições quando propositadamente editores deturpam biografias. “Eu acho que a Wikipédia está em disputa e é um espaço de disputa. É curioso porque a Wikipédia, desde o começo, se pauta por uma certa flexibilidade das regras, mas ela tem os tais cinco pilares, que são diretrizes bastante gerais pelas quais o funcionamento da Wikipédia se rege. Um deles, que certamente é um dos que causa mais estranheza para nós que chegamos da academia para a Wikipédia, é o pilar da neutralidade do ponto de vista”. Concordo com Silveira, pois, como ela, eu também passei pelas disciplinas de Teoria da História da UFRGS discutindo que não existe neutralidade. “Mas a preocupação desse pilar da neutralidade do ponto de vista tem a ver, justamente, com que a Wikipédia seja o mais informativa possível, o que significa uma pluralidade de pontos de vista. Então, a Wikipédia é pautada por essa preocupação em trazer diferentes perspectivas sobre uma mesma questão. É claro que isso pode gerar tensões e situações um pouco delicadas em alguns momentos. Eu concordo plenamente que nós podemos e devemos ocupar um espaço como esse, porque se nós não o fizermos, outras pessoas vão fazer”, argumenta.

Silveira entende que a hierarquia das fontes da Wikipédia está baseada na necessidade de todo um processo de monitoramento do conteúdo das páginas pela própria comunidade, onde editores experientes têm um peso maior. “Edições consideradas nocivas podem, inclusive, levar à exclusão e ao bloqueio, em alguns casos automático, dos usuários. Sobretudo em verbetes com grande visibilidade, esse processo costuma garantir que vandalismos ou equívocos sejam rapidamente revertidos. Cada verbete tem uma página de discussão e um histórico de edições, que permitem acompanhar todas as alterações.” Mas isso não significa que o método de construção por editores voluntários não tenha problemas. Ela dá como exemplo o fato de que inexiste na Wikipédia a biografia de uma notável historiadora, Ângela de Castro Gomes. Ela cita também o caso de Marielle Franco, que, como o meu, chegou a ter um verbete na Wikipedia, mas que logo em seguida foi deletado, e só reestabelecido depois de assassinada (disponível aqui). Pronto, já sei que não estou sozinho na minha exclusão. Espero também não ter de morrer para virar verbete nela.

Outra autora que faz críticas à metodologia da Wikipédia é Christine Mui, em artigo ao Jornal Fortune (disponível aqui). Ela dá como exemplo o caso em que editores da Wikipédia resolveram bloquear os acessos à definição da página Recessão, transformando a sua definição em uma guerra de posição, entre editores que apoiam a posição do National Bureau of Economic Research e os proponentes que se opõem. “Na quarta-feira, um administrador do site da Wikipédia chamado Anarchyte moveu a página de recessão para o status de semi-proteção. Novos usuários têm que esperar quatro dias e fazer 10 edições em outras páginas antes de poderem alterar qualquer redação no artigo de recessão, de acordo com a política da Wikipédia. Quando a pausa for suspensa em 3 de agosto, eles poderão fazer edições novamente, mas elas serão revisadas por editores voluntários.” A matéria continua afirmando que “A mudança até chamou a atenção de Elon Musk, que marcou o cofundador da Wikipedia, Jimmy Wales, em um tweet, escrevendo: ‘A Wikipédia está perdendo sua objetividade’. Um usuário acrescentou a frase: “Não há consenso global sobre a definição de recessão”, que outra pessoa removeu posteriormente por parecer “muito vaga”. Outras edições discordaram sobre a possibilidade de colocar uma definição popular para recessão – dois trimestres consecutivos de crescimento negativo do PIB – mais alto no artigo ou mais abaixo. Nas redes sociais, as pessoas acusaram a página da Wikipédia de recessão de tentar apagar essa definição popular para se alinhar com o presidente Biden. Na quinta-feira, depois que os dados do PIB foram divulgados, Biden rejeitou a ideia de que os EUA estão em recessão e, em vez disso, elogiou o crescimento contínuo do emprego, o baixo desemprego e o crescente investimento dos fabricantes. “Isso não soa como uma recessão para mim”, disse ele. (Fortune, 29 de julho de 2022).

A vulnerabilidade do método

Outra crítica à metodologia da Wikipédia partiu de Pisana Ferrari, Embaixadora do cApStAn na Global Village, que publicou artigo em que afirma que “as entradas da Wikipédia geralmente estão na vanguarda da pesquisa preliminar na web sobre quase todos os tópicos.” O próprio recurso que o tornou tão bem-sucedido, ou seja, que é administrado por voluntários e qualquer pessoa pode contribuir ou editar conteúdo, é o que o torna muito vulnerável. A própria Wikipédia alerta que não é possível monitorar tudo e que “não deve ser considerada uma fonte definitiva por si só”. Ela lembra que “a Wikipédia foi acusada de deficiências na abrangência por causa de sua natureza voluntária e de refletir os preconceitos sistêmicos de seus colaboradores.” Encontrei, inclusive, uma ferramenta que verifica quais são os artigos mais controversos, a Contropédia, resultado da constatação de que a metodologia colaborativa leva a conflitos no interior do projeto. Lucas Carvalho, em artigo à Tilt (disponível aqui), encerra as críticas dizendo que até “em um episódio da série de comédia ‘The Office’, o gerente incompetente Michael Scott (Steve Carell) diz que ama a Wikipédia porque ‘qualquer um pode escrever o que quiser sobre qualquer assunto, então você sempre sai com a melhor informação possível’”. Para mim, a piada vale também para os revisores anônimos (disponível aqui).

A Wikipédia tem mais de 55 milhões de artigos, mas a mania de perseguição que herdei de minha mãe me diz que é somente a mim que ela deleta sem piscar. Bobagem, descubro depois de olhar os debates internos: essa é a regra geral. Se antes qualquer pessoa podia sugerir alterações anonimamente, simplesmente agora a Wikipédia pede um crachá, quer dizer, um nome de usuário e senha para mexer nos arquivos, e nem sequer é obrigatório e-mail, tudo para respeitar a privacidade dos colaboradores. Isso é a tentativa da Wikipédia de dificultar o trabalho dos vândalos, mas e se os vândalos já estiverem entre os voluntários? Alexis C. Madrigal, em artigo ao The Atlantic (disponível aqui), cita como exemplo o caso do tweet de Sarah Jeong, cuja edição da biografia foi uma guerra brutal entre os revisores de esquerda e direita. E um outro artigo, o Oxford Internet Institute (disponível aqui), mapeou as guerras culturais na Wikipédia e constatou que há “alguns padrões interessantes: Religião e Política são debatidas em persa, árabe e hebraico ainda mais do que os outros. As Wikipédias em espanhol e português estão cheias de guerras contra clubes de futebol. As Wikipédias francesa e tcheca têm artigos relativamente mais disputados sobre tópicos relacionados à ciência e tecnologia. A Wikipédia chinesa e japonesa são campos de batalha para fãs de mangá, anime, série de TV e entretenimento. O produto TVB aparece com bastante frequência na lista chinesa e, bem, o artigo número 19 mais disputado na Wikipedia japonesa é “Pênis”! E a jornalista Ayelén Bonino (disponível aqui) afirma que na “Argentina, a polêmica foi revivida nos últimos meses, depois que usuários e meios de comunicação denunciaram o “uso político” de seus artigos, especialmente aqueles relacionados a líderes políticos e eventos atuais. Com o título “Militantes K entraram na Wikipédia e reescreveram artigos sobre Cristina Kirchner para favorecê-la”, relata que Alejandro Alfie afirmou no Clarín que a enciclopédia virtual “é um território digital de disputa”. Lá, segundo o jornalista, “dezenas de ativistas políticos e profissionais pagos trabalham como ‘editores voluntários’ e reescrevem os perfis dos principais líderes políticos argentinos ‘para fazê-los coincidir com seus interesses políticos ou de quem os contrata’.” Alfie garante que haveria um “viés acentuado”; ele aponta como exemplo dois wikipedistas conhecidos que costumam editar conteúdo; e aponta contra as notas de Mauricio Macri e Cristina Fernández de Kirchner, que “nos permitem ver o duplo padrão com que a enciclopédia mais consultada da Argentina é tratada”. Volta minha paranoia: e se fui excluído por ser notoriamente anticapitalista?

Eu, humilhado

De minha parte, só fui descobrir na confusão que estava me metendo depois de ver meu currículo destruído pela Wikipédia e, sentir-me depois disso, humilhado – “sem indicação de importância”.  Foi aí que me veio o segundo estalo do que poderia estar ocorrendo. Se os verbetes são estabelecidos pelo poder de cavaleiros anônimos, cujas credenciais não podem ser estabelecidas, é possível que a hipótese de Thomas Leitch esteja correta. Ele diz em seu livro Wikipedia U: knowledge and liberal education in the digital age (Johns Hopkins University Press, 2014) que, apesar da força do termo Wikipedia, seu assunto central é a autoridade. Para ele, a Wikipédia é mais um instrumento da educação liberal, aliando-se ao notável esforço de seus colaboradores em filiar-se verbetes com viés nesse campo. Eu não tinha pensado nisso.

Mas voltemos ao ponto central. Quando a Wikipédia diz que eu sou insignificante, ela está praticando uma ação. Eu sinto como humilhação, mas ao mesmo tempo, ela afirma um poder. Eu sou deletado porque um editor tem esse poder. Foi o primeiro-ministro português José Sócrates, em artigo sobre o tarifaço do governo Trump (disponível aqui), que apontou que hoje “a humilhação está por todo o lado, na mídia, na política, nas redes sociais”. Sim, ela está por todo o lado e já falei nas páginas de Sler que ela também está presente na periferia das grandes cidades (disponível aqui), presente nos sentimentos dos catadores de papel que tiveram seus carrinhos destruídos pelos poderes públicos. Nesse mundo dominado pelo capitalismo dos mais fortes, os mais fracos não têm como se defender. Para mim, a humilhação passa por todos os níveis, inclusive pela Wikipedia. Esse “você é insignificante” é tão destrutivo quanto “você está demitido!” frase que tornou Trump conhecido em seu programa O Aprendiz e que parece reeditar nas ações de taxação ao Brasil. Por mais que você prove que os Estados Unidos têm muito a lucrar com suas importações do Brasil, por mais que eu justifique que tenho algum valor para constar como verbete da Wikipédia, você ainda assim é recusado com base num insulto gratuito que diz que não fui capaz de ser merecedor. A internet é americana, nasceu no contexto da Guerra Fria dos anos 60 do projeto ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network) do Departamento de Defesa Americano e talvez isso diga um pouco dos modos como a humilhação faz parte de seu imaginário, inclusive aqui.

Não posso negar que a humilhação produz ressentimento, o que me faz escrever aqui. Isso não é bom, é verdade. É claro que aqui se trata de tentar entender os sentidos da produção de uma amargura, de seu contexto, da caracterização de certo sofrimento moral. Se não há humilhação sem humilhados, só resta aos humilhados não se calarem, não se resignarem ao silêncio de que os humilhadores fazem-no vítimas, como diz o primeiro-ministro português. Por isso a reação de Lula. Por isso, minha escrita aqui. Penso que sou uma pessoa comum que leva o cachorro para passear, mas também sou incomum porque escrevo. Fico perplexo em ver tantas figuras na Wikipédia que fizeram menos do que eu e estão ali, e outras que fizeram mais, não. Mas a Wikipédia é uma boa régua?

Eu penso sobre o que aconteceu comigo e só posso a definir como uma situação de sadomasoquismo da Wikipédia, ou como prefiro definir, sadowikipedismo. Ela funciona assim: em vez de dar poder para editores valorizarem aqueles que produzem algo, a Wikipedia deliberadamente dá a eles a única coisa que pode oferecer por seus serviços gratuitos: o prazer de infligir a dor ao outro. Mesmo que alguém contribua para o pensamento, o editor deliberadamente tem o poder de usufruir do prazer do veto, que gera dor, ansiedade e medo, e por isso, é uma atitude sádica. O poder do veto é o recurso que resta ao editor para a geração de seu próprio prazer de editar. Ela é a sua dopamina, e os editores necessitam cada vez mais dela por estarem num fluxo de vetos por sua dedicação ao projeto por horas a fio. No fundo, o sadismo martela a seguinte mensagem na mente de seus editores: a Wikipedia é um vale de latrinas, eu estou autorizando vocês a fazerem outros sofrerem. Teu veto de editor é a forma de agressão a redatores respaldada em critérios que ambos aceitam. Para o editor, resta o prazer e o consolo de que outros, a quem nega sua página, sabem que sofrem mais do que ele. Isso não é exatamente a lógica descrita pelo psicanalista Ronald Laing em Laços (Vozes, 1985)? Para mim, sim.

Um problema de arquitetura

Se há efeitos negativos na metodologia, é porque em algum lugar há um erro de definição. A Wikipédia é uma imensa obra de arquitetura do conhecimento, mas como é construída? Peter Heisenmann, em Memória del Biocentro (disponível aqui), diz que “fazendo uma analogia entre a construção biológica e a arquitetura, é possível percorrer esta cadeia, de uma a outra, produzindo uma arquitetura cúmplice da disciplina que alberga”. Da mesma forma, eu penso que com os editores da Wikipédia deveria acontecer algo semelhante aos arquitetos.   Vitrúvio, no capítulo primeiro de seu tratado Los diez Libros de Arquitectura (Akal, 1992), diz que “a prática é o contínuo e eficiente uso, executado com as mãos, sobre a matéria correspondente à que se deseja formar… [a teoria] é aquela que sabe explicar e demonstrar com sutileza as leis da proporção, as obras executadas”.   Se o bom arquiteto deve dominar a teoria e a prática, entendo que os bons editores da Wikipédia deveriam também fazê-lo em relação aos temas que avaliam, deveriam ser habilidosos e aplicados em cada área. Por isso, diz Vitrúvio que o conhecimento do arquiteto deverá ser de certas características: “Terá que ser instruído nas Letras, destro no Desenho, competente na geometria, inteligente na ótica, instruído na Aritmética, versado em História, Filósofo, Médico, Jurisprudente e Astrólogo”. Por que os editores da Wikipédia não são algo assim?

Minha conclusão é que gostaria que estivessem vigentes as perspectivas romanas para a Wikipédia. Não basta conhecer regras para banir conteúdos; é preciso conhecer mais sobre os verbetes que se avaliam. A ideia de estabelecer regras supostamente neutras é uma falácia: não se pode negar que muitos personagens importantes continuam não sendo reconhecidos pela Wikipédia, como o contrário também acontece. Eu gostaria de uma Wikipédia mais justa, socialmente comprometida com aqueles que produzem algo melhor para o mundo. Pelo menos eu tento. Deveríamos ter uma Teoria da Wikipedia como temos uma Teoria da Arquitetura, pois o caráter fragmentário do processo de valoração de entradas parece estar contaminando o objetivo a que ela se propõe. Pronto, desabafei.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Montagem com Logo da Wikipedi | Reprodução

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Respostas de 2

  1. Vi o nascimento da Wikipedia e naqueles tempos evitei suas referências, buscando conteúdo no Google Academic. Mas a Wiki é um espaço de construção coletiva. Outrora sem muito controle Agora parecem exagerar. A cruzada do professor Jorge Barcellos é legitima, embora a maioria das obras não resista ao tempo. Isso cabe apenas aos clássicos. Mas o que é um clássico? A resposta cabe ao dono do tempo e as gerações futuras. Meu pai, Edson Conceição, morreu aos 48 anos; uma década antes compôs “Nao Deixe oo Samba Morrer”. Na época um desabafo, um grito de socorro, pois naqueles anos 1970 o samba perdeu espaço para a música das FMs. Tenho certeza de que ele não pretendia compor um clássico e ainda assim a música continua em evidência 40 anos após sua morte. Que o nobre professor tenha esperança pois o futuro a Deus pertence…

  2. Poxa!!!

    Caríssimo JORGE BARCELOS,

    Você disse tudo que tenho vontade de dizer desse “Capitalismo mentecapto”, onde as minhas alternativas são: bebo Coca-cola ou Pepsi-cola, sou contra ou favor do Wikipedia ou Barsa.

    Que diabos de dualismo sociopata????

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