Fraqueza e Torpeza em Cena

translate

381-jean-marc

Por JEAN MARK VON DER WEID*

Estamos assistindo os estertores de um projeto fadado a fracassar desde o início: o chamado presidencialismo de coalizão, nome que define uma forma de relação entre o Executivo Federal e o Congresso. O termo foi crismado nos tempos do governo de Fernando Henrique Cardoso e significava a necessidade de uma negociação entre o presidente da República e os partidos políticos, visando garantir apoio no Congresso que lhe permitisse governar, já que o seu partido não dispunha de maioria nas duas Casas.

No formato definido na constituição de 1988, o poder do executivo saiu bastante reduzido, seja qual for o período de referência utilizado na comparação, exceto o breve tempo de parlamentarismo após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. A preocupação dos legisladores foi garantir um controle maior dos processos decisórios de políticas e programas pelo Congresso contra a histórica hipertrofia do executivo, reforçada por 21 anos de ditadura e centralização do poder. Apesar de fortemente reduzido, o poder do executivo continuava bastante significativo, sobretudo frente a sucessivas legislaturas sem a formação de maiorias que pudessem pesar na balança.

Sarney governou na transição entre os sistemas (a ditadura e a nossa precária democracia) e perdeu a maior parte dos embates com o Congresso. Collor bateu de frente e tentou impor sua vontade na base de jogar o eleitorado (ou o “povo”) contra o Congresso. Usou a corrupção, mas não foi suficiente para impedir o seu impeachment. Itamar montou o primeiro governo apoiado por uma coalizão parlamentar envolvendo do centro esquerda à direita – do PSB ao PFL – com o eixo no PSDB e no MDB. Esta aliança foi escorregando mais para a direita se apoiando nos partidos de centro (PSDB), centro direita (PMDB) e direita (PFL) e elegeu FHC por duas vezes, com razoável folga no primeiro turno, sustentada pelo sucesso do Plano Real. Foram dois mandatos executando uma sequência de reformas com uma direção clara: dotar o país de um arcabouço legal que orientasse o desenvolvimento econômico para o rumo do neoliberalismo. Foram anos de privatizações e de desregulamentação e fragilização do aparato funcional do Estado.

O projeto neoliberal ficou no meio do caminho devido à resistência dos movimentos sociais e do PT, mas também pelas concessões intermináveis aos interesses particularistas de segmentos do poder econômico (como o agronegócio) e de grupos com poder de pressão crescente, como os evangélicos. Por outro lado, muitos penduricalhos de interesse de castas, como os militares, continuaram vigentes e o resultado foi um arcabouço legal hipertrofiado, ilógico e cheio de contradições e indefinições. Reformas como a tributária que interessavam a toda a sociedade (com orientações bem divergentes, é claro) nunca saíram do papel. A agrária, que implicaria em uma orientação diferente para o desenvolvimento econômico e social do país como um todo, nem sequer entrou na pauta da esquerda, que dirá do governo.

Quando Lula ganha a eleição de 2002, o PT tinha pouco mais de um décimo dos votos da Câmara e toda a esquerda e centro-esquerda tinham pouco mais de um quarto. Este resultado (ganhar a presidência e perder no voto proporcional) se repetiu em 2006, 2010, 2014 e, agora, em 2022.

Esta insistente dicotomia entre o voto majoritário e o proporcional marcou os limites do que era possível fazer uma vez na presidência. Ela exprimiu com clareza a contradição vivida pelos partidos de esquerda e a natureza do nosso sistema eleitoral. A maioria da Câmara ficou com partidos sem uma identidade ideológica e programática qualquer, salvo vagos discursos conservadores nos costumes e anti esquerda na política. Estes partidos tiveram origem na ARENA e no MDB, criados na porrada do AI-2 para servir o regime militar. Com a democratização eles foram se fragmentando em função de interesses locais e regionais, criando, por exigência legal, entes nacionais por adição de caciques agrupados em partidos amorfos programaticamente. A ala progressista que se abrigou no MDB no tempo da ditadura foi formar o PSDB, antes que este abraçasse o neoliberalismo.

Os rincões do país, onde o voto ainda era de cabresto, votaram pelos oligarcas locais e deram maioria, desde 1986, ao que ficou conhecido como Centrão, embora de fato fosse mais para direitão. Esta grande maioria, conhecida na Câmara como “baixo clero”, era definida como “fisiológica”, ou seja, apoiava quem lhe garantisse alguma vantagem pessoal.

Tudo isto foi possível devido à maior das “heranças malditas” dos militares: o nosso sistema eleitoral. A jabuticaba brasileira entre as ditaduras latino-americanas foi a coexistência entre o executivo dos generais e o legislativo eleito pelo povo. Entretanto, a cada vez que o povo votava “errado”, do ponto de vista do ditador de plantão, um Ato Institucional (um ucasse do poder militar) era editado para corrigir o deslize e para prevenir algum outro. Em casos mais escandalosos fechava-se o congresso e cassavam-se os mandatos daqueles eleitos mais criadores de problemas.

Alguns destes ajustes sucessivos para garantir o voto majoritário na ARENA nunca foram revogados totalmente, como o chamado senador “biônico”, escolhido fora das urnas por um colégio eleitoral criado sob medida para garantir o resultado. O preço pago na Constituinte para garantir o fim dos senadores biônicos foi a manutenção do terceiro senador, vigente até hoje. Cargos de eleição direta, como presidente, governadores, prefeitos de capitais e municípios de “segurança nacional” que também eram escolhidos em colégios eleitorais sob medida, voltaram para o voto direto, exercido pela primeira vez depois da ditadura em 1989.

Mas a distribuição dos deputados por Estado manteve a aberração do tempo dos militares. O princípio democrático da proporcionalidade entre eleitores e eleitos foi para o espaço e nele ficou. Resultado: São Paulo, com 22,16% do eleitorado do país tem 70 deputados federais e Roraima, que tem 0,23%, elege 8 deputados. Uma distribuição correta na proporcionalidade igual entre eleitores e eleitos levaria a bancada paulista para 115 deputados e a de Roraima para menos de dois. Este exemplo é para mostrar que o voto dos “rincões” foi inflado pelos militares para garantir o controle da direita.

Hoje esta equação mudou muito porque o controle dos recursos e programas federais levaram a uma forte adesão dos ditos rincões a Lula, muito embora ele não transmita a adesão para o voto proporcional ou para as prefeituras. Hoje o voto dos rincões só faz diferença nas eleições presidenciais e não é casual que Bolsonaro tenha mobilizado a Polícia Rodoviária Federal para dificultar o acesso dos eleitores aos centros de votação no nordeste, em 2022.

O argumento para manter esta aberração foi a necessidade de se equilibrar o poder entre os estados mais poderosos e os menores. No entanto, este é o papel do Senado, onde todos os Estados têm o mesmo número de senadores. Na realidade, o congresso constituinte foi eleito segundo a legislação anterior e a sua composição era avessa a qualquer mudança, por mais justa e democrática que fosse, que diminuísse o espaço do baixo clero.

Este sistema permitiu a perpetuação da dicotomia entre o voto majoritário e o voto proporcional, mantendo os presidentes eleitos reféns das maiorias congressuais. Alguns lidaram com esta situação sem maiores percalços, fazendo concessões ao baixo clero e cooptando os partidos mais fortes do Centrão. Foi o caso dos dois governos de FHC, mas é preciso lembrar que o programa neoliberal adotado pelo PSDB tinha um forte suporte da elite econômica, em particular o setor financeiro e que isto se refletia na orientação da grande mídia. FHC também inaugurou a era de apoio incondicional ao agronegócio, até porque as exportações deste setor tornaram-se o que se chamou de “âncora verde” do Plano Real. A bancada ruralista, por natureza localizada nos rincões, estava no começo apenas centrada na luta contra os direitos dos agricultores, em particular o acesso à terra, mas foi crescendo e se estruturando até tornar-se a bancada mais influente nas duas Casas do congresso, orientando o voto de seus afiliados em vários temas que lhes interessam, entre outros os relativos ao meio ambiente.

Com a eleição de Lula, em 2002, as condições para um acordo com o baixo clero ou o Centrão eram bem mais difíceis. O PT já tinha abandonado as propostas mais radicais do ponto de vista do projeto de país, sinteticamente simbolizadas pela proposta de uma economia socialista (contida no programa fundador em 1980) e vinha adotando paulatinamente uma proposta classificável como a defesa de um desenvolvimento capitalista de cunho nacionalista e de caráter distributivista no plano social. Mas este programa, construído por bases do partido e por movimentos sociais, foi “edulcorado” pelos dirigentes e largamente amaciado durante a campanha, culminando com a “Carta aos Brasileiros”, onde ficou garantida a manutenção dos elementos essenciais do modelo neoliberal de FHC.

A Carta, na verdade, não era endereçada aos brasileiros, eleitores ou não, mas aos magnatas da Avenida Faria Lima. Os primeiros não leram nem se interessaram pela Carta (os de esquerda a consideraram apenas como uma manobra tática eleitoral), mas os segundos assinalaram enfaticamente a recepção e baixaram o tom catastrofista adotado depois do primeiro turno com Lula à frente.

No fritar dos ovos, os sucessivos governos do PT adotaram um programa bastante moderado, a começar pela reforma da Previdência, onde mais uma vez, pagaram os do “meio”, em particular os servidores civis e a baixa classe média. O governo deu mais e mais concessões ao agronegócio, inclusive nos temas ambientais, enquanto a Reforma Agrária realizava menos da metade da meta (já bem diminuta) de assentamentos, repetindo a medíocre performance do governo FHC. Benesses também foram distribuídas para as igrejas, sobretudo evangélicas, dando mais e mais força para a bancada da Bíblia.

Mesmo sem defender um programa radical, os governos de Lula e de Dilma precisaram fazer maiorias no congresso. Operaram primeiro no varejo, comprando votos através do mecanismo que ficou conhecido como “Mensalão”, e depois no atacado, via o dito “Petrolão”. O PT “lambuzou-se”, como constatou (lamentando) um de seus líderes na época. Ao cair na vala comum de toda a política convencional brasileira, o PT abdicou de um de seus elementos de atração, a defesa da ética na política. Isto ajudou a afundar o segundo mandato de Dilma e levou ao golpe/impeachment.

Ao receber a notícia da derrota no voto do impeachment, Dilma comentou que não podia entender por que tinha sido abandonada pelo setor industrial e pelo agronegócio, ambos fortemente apoiados por seus governos. Pesou na balança o choque econômico das medidas de austeridade que Dilma tinha denunciado na campanha eleitoral contra Aécio e cuja aplicação a deixou sem base de apoio social. A Faria Lima e o Agronegócio tinham apoiado Aécio e é claro que preferiam ver o programa defendido por Aécio aplicado por ele e não por Dilma. Some-se a isso o ascenso da direita pós 2013 e o impacto brutal da campanha de mídia explorando o tema da corrupção. A meu ver, Dilma cai por não poder mais comprar apoios no congresso e por ter perdido suporte popular, tanto por causa da campanha do Petrolão quanto por causa da reversão de seu programa eleitoral e a adoção de medidas de austeridade. Quando a direita viu que ela estava sem retaguarda social tomou a decisão de dar o bote e colocar no governo um presidente a sua feição: Temer.

Este histórico poderia se estender muito, mas o elemento essencial a reter é a metamorfose do PT, de um partido radical, com setores revolucionários, centrado nos movimentos de massa e nas lutas de classe, em um partido reformista (entendido como mantenedor do sistema capitalista, mas com melhor distribuição de renda) e chegando agora a uma outra natureza: um partido eleitoreiro e populista, cujo objetivo maior é o de manter o próprio espaço político no executivo e no legislativo, reproduzindo mandatos e nomeações.

As eleições de 2022 são o espelho desta nova natureza. Após quatro anos catastróficos sob o energúmeno (cujo nome só deve ser mencionado quando for morador da cela número tal), Lula vence as eleições para a presidência, mas o PT, a esquerda e centro esquerda perdem as eleições para a Câmara e o Senado.

Lula não entendeu o significado deste voto, nem o PT. Ele não parece ter sacado que uma boa parte do voto que recebeu não era para ele, mas para afastar o golpista na presidência. E, apesar da força do movimento contra o energúmeno, a vitória foi por uma diferença de um por cento. Decisivos no fotochart foram os votos carreados por Simone Tebet e até os da minúscula Soraya Tronike.

É preciso lembrar que o voto nos deputados federais é o que dá o tamanho dos partidos eleitorais, e o do PT ficou abaixo dos 20% e o total da esquerda e centro esquerda abaixo dos 30% em 2022.

Qual a porcentagem de eleitores que votaram nas propostas de Lula e qual a dos que votaram nele contra a ameaça de Bolsonaro? Se houvesse uma correlação entre o voto nos deputados dos partidos da chapa de Lula e os do candidato a presidente a conta seria provavelmente dois terços dos que sufragaram Lula nas urnas, apoiaram a pessoa ou a mensagem por ela emanada, e os outros votaram para barrar o energúmeno. Mas essas correlações são muito disparatadas na vida real. É comum, por exemplo, achar eleitores de Lula que votam em caciques da direita no interior do nordeste ou do norte.

Um quarto dos eleitores votaram em Lula pela memória positiva dos seus governos anteriores e esta, aliás, foi a tônica da propaganda eleitoral de Lula. Em particular, os benefícios sociais criados ou melhorados por Lula foram muito enfatizados. Entretanto, o maior desses benefícios, o Bolsa Família, tinha que competir com a propaganda do Auxílio Brasil, criado pelo energúmeno. O segundo absorveu o primeiro, mas dobrou o número de beneficiários e triplicou o tamanho do benefício. Conclusão: a direita também pode ser populista e usar programas sociais para atrair o eleitorado.

E se Lula prometeu mais do mesmo em termos de políticas públicas, o que prometeram os eleitos para o Senado e a Câmara de Deputados? Na falta de um programa presidencial propositivo, a esquerda ficou mais no rechaço ao golpismo e direitismo do que em outros temas mais afirmativos. Os outros partidos tampouco tinham programas e seus candidatos adotaram propostas de maior impacto em suas bases de forma isolada de um contexto nacional.

O volume das emendas orçamentárias sob controle dos deputados e senadores pesou enormemente na reeleição de suas excelências. Nos últimos 10 a 15 anos, este esquema de regar a horta eleitoral de cada candidato à reeleição através das emendas vem sendo cada vez mais ampliado e hoje representa tanto ou mais do que captam os candidatos através do fundo eleitoral ou de aportes privados.

Há os candidatos de segmentos sociais como os garimpeiros da Amazônia ou os motoristas de caminhão em vários estados. Há as cada vez mais numerosas candidaturas “religiosas”, em particular entre as igrejas pentecostais. E há os candidatos apoiados pelo lobby do agronegócio, com atuação bem articulada em todo o país. O mesmo pode se dizer da bancada da bala, hoje com inúmeros ex-policiais, militares, bombeiros. Já as candidaturas dos movimentos sociais se apequenaram junto com o esvaziamento desta base político social.

As fortes bancadas temáticas (boi, bala, bíblia), além de seus temas específicos, têm uma agenda nos costumes e no meio ambiente, sempre regressiva. Também atuam em sintonia com o setor financeiro e com a pressão da mídia formal, mas tendem a reagir mais em interação com as redes sociais. A maioria do congresso tem como mote permanente a defesa da extrema direita, a busca da anistia para os golpistas do 8/1 e para o energúmeno. Esta briga com o executivo e o judiciário ocupou mais tempo que qualquer outro tema no Congresso nesta legislatura.

Já o governo tem apenas um mote, reconstruir os programas sociais do passado e criar alguns, se possível (até agora sem sucesso significativo). Passou muito tempo contornando decisões de governos passados, como o teto de gastos do governo Temer, inventando fórmulas embrulhadas como “arcabouço fiscal”, uma espécie de meia sola que não satisfaz nem quem é contra nem quem é a favor do teto de gastos. A peleia pela queda dos juros, correta em princípio, ficou restrita ao debate de especialistas e não chegou ao sentimento do povão.

O fato é que o governo não tem o mesmo contexto de expansão da economia global que dominou os primeiros 6 anos dos governos Lula. Falta dinheiro para os projetos do governo, mas o pior é que o governo está sem projetos atraentes para mobilizar a opinião pública e pressionar o congresso.

Para tornar o quadro ainda pior: o governo tenta ganhar bases no Congresso, atraindo os partidos do Centrão para ministérios, mas este presidencialismo de coalizão é um fiasco total. Os partidos do Centrão aceitam ministérios e outros cargos e pedem sempre mais, mas não dão suporte ao governo. A cada embate no Congresso a maioria dos deputados e senadores dos partidos com ministros no governo despeja a maioria de seus votos na oposição, chegando até à quase totalidade das suas bancadas em alguns momentos.

Com a maior cara de pau estas quadrilhas de sanguessugas do erário, que se intitulam partidos políticos, clamam contra a “gastança” do governo, esbravejam contra mais impostos … e aprovam, quase que no mesmo sopro, toda uma série de privilégios para si próprios, inclusive a ampliação do número de aproveitadores na Câmara.

Esta base “governista”, se alia à oposição para brecar qualquer corte nos subsídios e renúncias fiscais do agronegócio (bagatela de 200 bilhões por ano) ou de outros lobbies (chegando a um total de 750 bilhões), mutilando a reforma tributária.

Além de se banquetearem no espólio do governo, estes urubus do Centrão nem dissimulam a preparação para o desembarque do ministério que eles desprezam, apesar de estarem sempre querendo mais cargos e verbas para gastar. Estão de mala e cuia para abandonar o governo na beira da cova e pular no barco de Tarcísio, o queridinho da Faria Lima e da mídia convencional.

A extrapolação do poder do Congresso e invasão do espaço constitucionalmente definido para o Executivo não é novidade. Trata-se da usurpação (e desvio para outros fins) da responsabilidade do executivo de gerir o orçamento. O Congresso opera o abuso de forma velada, evitando ser cobrado nas urnas pelos resultados. Este processo vem num crescendo, começando com a ampliação paulatina e a multiplicação dos vários tipos de emendas, seguida pela adoção da obrigatoriedade do pagamento de mais de 80% do valor das emendas pelo executivo. Hoje isto significa para o governo a perda de perto de 25% dos recursos ditos discricionários sob controle do executivo.

Para onde vão estes recursos? Projetos executados por empresas, prefeituras ou ONGs vinculadas aos deputados e senadores ou prefeitos e vereadores fiéis são escolhidos segundo critérios dos próprios proponentes, ignorando prioridades de caráter mais amplo, territorial, estadual e regional, que só o executivo federal pode definir. Muitas obras aparecem como beneficiando os próprios senadores e deputados, como o asfaltamento de estradas passando por suas fazendas. Outros projetos são denunciados por desvio de recursos e obras sem sentido, como as chamadas “areninhas do Fufuca”, ministro dos esportes que está multiplicando estádios inúteis pelos pequenos municípios interioranos do Nordeste. Há ainda o patrocínio de shows de cantores sertanejos ou gospel, a preços inacreditáveis. Enquanto isso, faltam postos de saúde, escolas, professores, médicos e enfermeiros, transportes, saneamento etc. etc.

Todos os partidos, com raras exceções como o PSOL e o Novo, votaram a favor desta expansão das emendas e de sua obrigatoriedade. Os dois maiores beneficiários pelas emendas no ano de 2024 foram o PL e o PT. Não se sabe onde foram aplicados os recursos das emendas e seria bom investigar o que cada partido (ou cada deputado ou senador) fez e com que critérios. Este maior acesso aos recursos das emendas tem a ver, parcialmente, com o tamanho das bancadas, mas há outros fatores, em particular o domínio dos presidentes da Câmara e do Senado sobre a distribuição das emendas de relator, aquelas chamadas de secretas.

Além de usurpar e, muito provavelmente, desperdiçar recursos escassos do orçamento federal, as emendas têm outro efeito deletério: elas tornam os seus patronos mais do que favoritos a uma reeleição, já que bilhões de reais passam a ser utilizados em zonas eleitorais restritas onde suas excelências têm suas bases. Isto e mais a fortuna cada vez maior, votada pelo Congresso para financiar os partidos nas campanhas eleitorais, recursos estes distribuídos pelos caciques de cada agremiação, privilegiando, é claro, os já eleitos que buscam reeleição. Estamos criando uma casta de “representantes eternos” do povo, que ganha mais de um milhão por mês entre salários e vantagens várias.

Este não é um problema apenas do Lula ou do PT. Trata-se de um problema da democracia brasileira, que se defendeu mais ou menos bem contra as tentativas de um candidato a ditador sentado na cadeira de presidente, mas está perdendo a luta pelo direito de cada candidato a representante do povo no Senado e na Câmara ter condições materiais iguais no pleito. Se hoje clamamos contra um Congresso medíocre, corrupto, fisiológico, desprovido de propostas para o país e para o povo, defensor de seus lobbies, como vamos poder mudar este quadro sinistro? O processo eleitoral está viciado pelo peso gigantesco dos recursos disponíveis para os eleitos contra aqueles que querem entrar e mudar o jogo.

E o que poderia fazer o governo Lula frente a esta situação?

Não é possível avaliar o que o governo está fazendo e discutir alternativas sem ter claro o que o governo se propôs desde o início desta gestão e mesmo qual foi a proposta do PT desde a candidatura Lula em 2002 até estes estertores do governo Lula III.

Como já foi dito anteriormente, Lula, o PT e os partidos de esquerda aliados nos vários governos (PSB, PDT, PCdoB) tinham duas alternativas ao ganhar o governo em 2002: (1) gerir o modelo de capitalismo bizarro que a nossa história foi gerando, fazendo apenas mudanças cosméticas, visando uma melhor distribuição de renda; (2) usar o poder ainda significativo do executivo para mobilizar as massas, visando acumular forças para o futuro eleitoral, mesmo a custo de viver em crise com o legislativo e até o risco de um impeachment.

A fragilidade da base parlamentar do governo petista foi levando o governo a tentar aprovar algumas medidas mais favoráveis aos mais pobres ou a setores mais desfavorecidos (indígenas, sem-terra, mulheres, quilombolas, outros), comprando votos no varejo, mas a opção de mobilizar as massas para pressionar o Congresso foi sendo abandonada. Ao contrário, o governo foi tratando de desmobilizar os movimentos sociais envolvendo-os em intermináveis discussões nos inúmeros Conselhos temáticos criados pelo executivo.

A opção de politizar e polemizar publicamente temas que não encontrariam respaldo no Congresso buscando mobilizar a sociedade foi abandonada e o preço político foi muito caro. O governo ofereceu aos carentes benefícios promovidos pela ação do executivo e, com exceção dos movimentos identitários e os ambientalistas, as bases sociais adotaram a postura de esperar a iniciativa do governo.

Entendo que a estratégia de fazer um governo de minoria, travado sistematicamente pelo legislativo e apelando para as mobilizações sociais era muito arriscado em um país onde a agenda de esquerda ainda era muito minoritária e os movimentos sociais progressistas muito pouco enraizados. Seriam tempos de crise, mas politizar as opções do governo em debate com a sociedade era a única forma de fazer crescer a consciência dos problemas estruturais que nos afligem. Ao tentar se ater ao jogo clássico de queda de braço com o legislativo (e buscando apoios via o mensalão e o petrolão) o governo Lula (e o de Dilma) renunciou a tentar mudar, mesmo que parcialmente, a essência do nosso capitalismo ultra desigual no campo social e ultra devastador no campo ambiental.

O problema com este programa mínimo adotado pelos governos petistas desde 2003 é que ele era salpicado de discursos mais radicais para consumo da base social histórica do partido e isto assustava as classes dominantes, mesmo sendo elas as grandes beneficiárias das ações do governo. O verniz esquerdista dos governos petistas estava em contradição com as políticas essencialmente favoráveis ao status quo, mas a direita só viu a superfície, com raras exceções.

No governo Dilma, a ministra da agricultura era a presidente da Confederação Nacional da Agricultura e ela foi um dos raros aliados de direita que ficou fiel à presidente impichada. Caso raríssimo, mas a base do agronegócio nem ligou para as “bondades” de Dilma no Código Florestal, entre outras muitas benesses para o setor e votou em massa pelo impeachment.

Com o avanço da direita e de sua expressão neofascista, o bolsonarismo, o programa mínimo do governo Lula ficou ainda menor, praticamente uma estratégia para se manter no poder e evitando a volta do energúmeno, em 2026. Como este deverá estar preso na Papuda no próximo pleito, o objetivo do petismo é derrotar o bolsonarismo, seja na pessoa de um portador do mesmo sobrenome ou em um apaniguado como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Até duas semanas atrás, o governo e a esquerda pareciam estar já apanhando “nas cordas”, imagem roubada dos ringues de boxeadores, quando um deles fica contra elas, sem poder sair do castigo imposto por seu adversário e só esperando o round acabar ou o nocaute chegar.

A maioria esmagadora da Câmara e do Senado votou contra a taxação de ativos isentos de IOF, atingindo uma muito pequena minoria de rentistas, mas com muita bala na agulha em termos de influência econômica e política. Tentando buscar apoio na opinião pública em um raro movimento ofensivo, o governo lançou uma série de filmetes onde, de forma claríssima e didática, botava o dedo na ferida: o 1% mas rico dos contribuintes paga, em termos relativos, três vezes menos impostos do que os 50% mais pobres. E culminou a contraofensiva com um nocaute: o congresso está com os mais ricos e contra os mais pobres. Em três dias, Motta e Alcolumbre sentiram o golpe e procuraram o governo para “um acordo”, até porque o executivo tinha apelado para o STF para garantir seu direito de mexer no IOF.

Era hora de crescer no embate e levar o legislativo para as cordas, mas o governo Lula correu para buscar o acordo, recomendando às suas bases moderação na crítica a Alcolumbre e Motta.

As negociações foram se complicando com apenas pequenas concessões dos parlamentares e parecia que o governo ia acabar entubando mais uma, quando entrou em cena o outro Donald, o que está fora da Disneyworld, o presidente americano Trump.

Falar sobre a agressão contra o Brasil e as possíveis lógicas de Trump é algo para outro artigo. Neste momento basta constatar que o estilo elefante em loja de cristais de Trump, somado à estupidez do Zero 2, de todo o clã Bolsonaro e de toda a sua boiada levou 72% da opinião pública a condenar o tarifaço contra a posição destes últimos.

Ainda não sei o impacto deste terremoto político nas pesquisas que medem a opinião sobre o presidente e seu governo e sobre os presumíveis candidatos da oposição bolsonarista. Pode ser que a ultra polarização da opinião no país esteja tão consolidada que a mudança de posições não seja muito significativa. Entretanto, o que ocorreu já levou a um profundo racha interno no bolsonarismo. Bolsonaro pode tentar apaziguar o pega para capar público entre seu filho Eduardo e seu afilhado Tarcísio, mas o fato é que ambos, sobretudo o primeiro, explicitam uma diferença profunda de posições. Tarcísio sabe que precisa defender o “andar de cima” paulista e, portanto, se opor ao tarifaço de Trump, por mais que o faça tentando a mágica de não parecer estar contra ninguém. E Eduardo sabe que tem que manter a aparência de “influencer” do Trump, ou será apenas uma bola murcha no futuro.

Seria a hora de partir para a ofensiva mobilizando o governo (sobretudo o Lula, que vale o resto do time umas quatro vezes) e a sociedade para colocar no jogo uma série de propostas programáticas de grande impacto social e importância para o futuro do país e seguir martelando estes temas, ganhando ou perdendo, mas sempre com o olhar e a palavra dirigidos para as massas (por favor, fora da bolha) até as eleições do ano que vem.

Se chegarmos a Outubro de 2026 tendo deixado claro que o atual Congresso está contra o povo e que o novo a ser eleito terá que estar comprometido com o programa debatido daqui até lá, teremos uma chance, não só de barrar o bolsonarismo, mas de eleger bancadas fortes, quiçá majoritárias, na próxima legislatura.

Deixo para o próximo artigo a minha opinião sobre os pontos programáticos mais importantes nesta ofensiva política que deve começar logo. E a proposta de um processo de mobilização da sociedade para este debate programático, sem ficar à espera do governo.


Publicado originalmente em 68 na Luta.

*Jean Marc von der Weid é Ex-presidente da UNE (entre 1969 e 1971), Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia, Membro do CONDRAF/MDA e Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

Foto da capa: Reprodução

Receba as novidades no seu email

* indica obrigatório

Intuit Mailchimp

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Respostas de 2

  1. Muito bom! Perfeita reflexão e oportuna expressão de esclarecimento e de “abertura de olhos” de quem não tinha pensado a respeito de tão verdadeira realidade.
    Esclarecedor!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte do Nosso Grupo de Whatsapp

Fique por dentro das notícias e do debate democrático