Do gatilho ao impacto: o caminho do tarifaço

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Por SOLON SALDANHA*

Decidi fazer aqui no blog o que o governo brasileiro fez: esperar que a poeira baixasse, ao menos em parte, para só então avaliar o que fazer. Ou escrever, no meu caso. Claro que no de Brasília, depois de ter o presidente Lula expressado uma primeira reação – porque era essencial um posicionamento. –, que foi bastante breve e se fazia conveniente. Seria absurdo ele e nosso país não marcarem presença antes de um silêncio posterior, estratégico e apropriado. Isso para que não se deixasse nada de espaço para que alguns, internamente e por interesse, apontassem omissão. Agora vem o planejamento, o cuidado e a calma, para que não se erre nem na mão, nem na dose. Cautela, isso é o que mais requer a situação.

As causas para essa ação intempestiva e arbitrária de Donald Trump são pelo menos três. A primeira é o Brasil ser um dos líderes do BRICS, o bloco econômico e comercial – e também político, de certa forma – que pode vir a abalar a hegemonia do dólar, que há muito é a moeda padrão nas transações internacionais, reduzindo o atual protagonismo e poder dos EUA. A segunda é estarmos trabalhando de modo sério no sentido de estabelecer limites e responsabilização das redes sociais, quanto aos conteúdos que postam. Aliás, sendo muito mais comedidos do que a União Europeia, por exemplo. E o terceiro é o alinhamento ideológico do atual governo daquele país com a extrema-direita, que aqui no nosso é representada por Jair Bolsonaro e sua trupe.

Na primeira destas causas, lembremos que pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial os estadunidenses se mantém como principais balizadores da chamada “ordem mundial” por três fatores. A ameaça e coerção que são muito bem representadas pelo seu enorme poderio militar; o controle da economia até quando as negociações são entre terceiros; e a instrumentalização da cultura como carro-chefe de uma doutrinação – vide cinema e música, por exemplo. E com certeza eles não irão entregar isso tudo com facilidade, o que faz não aceitarem a existência de blocos que contraponham aquilo que está estabelecido. A segunda causa tem peso enorme porque foi com a influência direta das redes sociais e sua capacidade surpreendente de estabelecer falsas verdades que o próprio Trump, assim como várias outras lideranças da extrema-direita mundial, incluindo o fenômeno Bolsonaro, em 2018, foram criadas e chegaram ao poder. O presidente dos EUA mesmo tem uma dessas redes e foi apoiado por empresários que detêm outras, as mais relevantes do mundo. A terceira é óbvia, pois quanto mais gente alinhada ao seu modo de ser, pensar e agir, menor a chance de ser afastado do protagonismo, do comando, do controle.

A razão econômica apontada na carta de Trump é ridícula, até porque o argumento utilizado é mentiroso: eles são superavitários no comércio com o Brasil. Isso torna ainda mais mesquinho o ataque contra nosso país, que estaria sendo duramente prejudicado apenas para auxiliar um único indivíduo e sua família. Aliás, lembro do discurso de Bolsonaro de que não se poderia prejudicar a economia parando tudo, em virtude da pandemia e para evitar uma maior propagação do contágio. E agora ele admite como sendo normal abalar essa economia apenas para atender à demanda própria: a de não vir a ser condenado pelos inúmeros crimes que cometeu.

Ou seja, pesou mesmo foi a nossa desobediência, nossa insistência em ter soberania e leis. Agora, como tal iniciativa de Trump, expressada na carta na qual nem se dá ao trabalho de disfarçar isso tudo, pode vir a atingir aqui boa parte dos apoiadores do ex-presidente e atual réu por tentativa de golpe, ao menos nesta terceira motivação pode ter sido um tiro no pé. Três bons exemplos são os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos); de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil); e de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), que de modo açodado gravaram vídeos se regozijando pela ação de Trump. Foram todos atropelados por uma reação popular que não aceitava essa chantagem e também, vejam só, por uma série de editoriais dos principais jornais brasileiros – Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo – todos eles criticando duramente o fato (1). Tanto que logo depois esses políticos trataram de recuar, com a velha desculpa de “não foi bem isso que eu quis dizer”. Não que tenham de fato mudado de opinião, mas devido ao que pode isso influenciar no eleitorado.

Na verdade, a primeira consequência de tudo é que se esfarelou o velho, surrado e mentiroso discurso de “Brasil acima de tudo”. O patriotismo de ocasião ficou nu. A presença constante de bandeiras dos Estados Unidos – assim como de Israel – nas manifestações da extrema-direita não têm mais como ser minimizada. Não é admiração e sim vassalagem. Que tipo de patriota é esse que joga contra nossa soberania? Vamos admitir até quando que um deputado federal brasileiro se mude para os Estados Unidos com o único objetivo de atacar o seu próprio país, sendo pago com dinheiro público para trair a pátria? E se fosse o contrário, será que o Tio Sam aceitaria que um cidadão se mudasse para o exterior para conspirar contra um presidente eleito, contra a Suprema Corte e a favor de criminosos?

O agronegócio, que patrocinou não apenas a candidatura derrotada no último pleito como também os acampamentos antidemocráticos que se seguiram, na frente dos quartéis, terá prejuízo astronômico se as tarifas forem mantidas. Federações de indústrias, como FIESP paulista e a FIERGS gaúcha, também pró Bolsonaro nas eleições, se arrepiaram. Alguns setores serão mais prejudicados do que outros, mas perdas inevitáveis vão ocorrer. O que não se pode aceitar sem reagir. Ao longo do tempo já tivemos ataques orquestrados contra a Petrobrás, detentora de tecnologia para prospecção em águas profundas, que ninguém mais dominava. Também houve a quebradeira das nossas grandes construtoras, que incomodavam suas concorrentes estadunidenses, a partir daquilo que fez o ex-juiz Sérgio Moro. Vamos permitir agora que o empresariado brasileiro perca outra vez? Que tantos empregos fiquem ameaçados? Que se retroceda muito no desenvolvimento econômico e social?

Pesquisa nas redes sociais apontou que 78% das postagens feitas no Brasil, nos dias seguintes à agressão trumpista, defendiam a aplicação de reciprocidade. Algo que legalmente é possível, uma vez que existe uma lei aprovada nesse sentido. Ou seja, podemos fazer o mesmo e taxar o que vem lá do Norte. Mas, essa saída simplista pode não ser nada adequada. A negociação é melhor e mais inteligente. Desde que conduzida com altivez. Não temos que beijar mãos nem arriar calças. O presidente que bateu continência para a bandeira dos EUA perdeu as eleições e está inclusive afastado das próximas. Lembremos que eles dependem muito do que compram aqui e haverá repercussões negativas também por lá, com nossos produtos sendo taxados. Ou seja, existem aliados mesmo no território deles. E há ainda a possibilidade de que parte do que exportamos para os Estados Unidos – 12,2% do total do que vendemos ao exterior, metade do que era poucos anos atrás – possa vir a ser absorvida por outros destinos. Em um primeiro momento, mesmo assim, o impacto negativo no PIB pode ser de 0,5 ponto percentual este ano, até que ocorra uma reacomodação.

Para concluir, apenas mais uma observação, essa como conjectura. Não estaria sendo oferecida alguma vantagem futura e extra para Trump, em troca do atual apoio? As “doações” de armas para a Ucrânia manter a guerra que trava contra a Rússia, por procuração – ucranianos entram com a carne humana dos seus soldados –, foram condicionadas agora para ter continuidade apenas em troca do acesso aos minérios, às “terras raras” que aquele país possui. O Brasil tem reservas significativas disso (2), com destaque também para o nióbio e o lítio, que são cruciais para que tecnologias avançadas, eletrônicos, energia limpa e veículos elétricos sejam produzidos. Lembro que no passado, numa conversa informal com Al Gore, em Davos (Suíça), Bolsonaro chegou a dizer que gostaria de oferecer aos Estados Unidos uma exploração conjunta das riquezas da Amazônia, para o visível espanto do interlocutor. O vídeo está disponível abaixo, após esse texto. Ou seja, temos algumas moedas de troca que alguém sem escrúpulos (que possa retornar ao poder) pode oferecer para alguém ambicioso (que esteja nele).

(1) Trechos dos editoriais citados. Folha de São Paulo: “A chantagem rasteira de Donald Trump contra o Brasil não vai funcionar. Cogitar que o Judiciário de uma nação soberana e democrática, que opera com independência, deixará de processar quem quer que seja para livrar o país de retaliações econômicas dos Estados Unidos não passa de devaneio autoritário”. O Globo: “O Brasil é uma democracia com Poder Judiciário independente. Não cabe a Trump nem a nenhum outro mandatário criticar suas decisões. Bolsonaro não pode ser julgado pelos eleitores porque está inelegível, tampouco é vítima de caça às bruxas”. O Estado de São Paulo: “Eis aí o mal que faz ao Brasil um irresponsável como Bolsonaro, com a ajuda de todos os que lhe dão sustentação política com vistas a herdar seu patrimônio eleitoral”.

(2) Terras raras é o nome atribuído a um grupo de 17 elementos químicos que são conhecidos por suas propriedades únicas e possibilidade de aplicação em indústrias de ponta. Sua extração e refino são complexos e caros, mas o valor é inestimável.

*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.

Texto publicado originalmente no Blog  Virtualidades.

Foto de capa: Charge de Carlos Latuff, ainda de 2019, mostra a razão da “amizade”




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