Opinião
Lula dia 30 para nunca mais ter que declarar meu voto
Lula dia 30 para nunca mais ter que declarar meu voto
De PRISCILLA MACHADO DE SOUZA*
Anos atrás, nada me causaria mais desconforto do que a ideia de abrir meu voto. Sou psicanalista. Ofício que funciona sob determinadas pautas. Uma delas é a discrição relativa a assuntos pessoais. Nesse sentido, uma vez que o voto é secreto, nada mais justo e fácil. Assim, em condições normais de temperatura e pressão, meus pacientes – e, mesmo alguns colegas – não teriam a mínima pista sobre o que aconteceria entre mim e a urna. Se bem não aceito a ideia ingênua de uma suposta neutralidade da profissão, sempre defendi uma noção muito mais honesta e potente chamada abstinência. E aqui cabe uma pequena explicação de ordem técnica.
Essa abstinência geralmente perfila a nós, analistas, como seres mais aquietados – pelo menos no trato com nossos pacientes. Na verdade, a importância disso radica em que um/a psicanalista se abstenha de um regozijo – por natureza viciante – de dizer das próprias idiossincrasias. Quase todo mundo anseia falar de si e dar o exemplo próprio, sua opinião. Um/a psicanalista evita essa tentação. Quem me lê pode se perguntar se isso é realmente necessário? De um modo geral, sim, justamente, para privilegiar o espaço sagrado da subjetividade e da singularidade de quem consulta. Desse modo, sou da turma que entende a psicanálise como uma ética que se instaura quando protege atendidas e atendidos do espelhamento deletério com uma suposta subjetividade modelo – a da psicanalista. Embaraço cuja tendência inicial é praxe, mas que jamais deve servir de espaço para exacerbação de poder e influência.
Assim, no contexto habitual – longe do que vivemos hoje, em 2022 –, indicar um candidato, ainda que pelas vias mais sutis, seria expor uma subjetividade ao risco da influência. Como sabemos, deitar no divã é uma entrega para uma intervenção tão ou mais delicada e íntima do que abrir as vísceras de alguém. Evidentemente, no segundo caso, os efeitos perceptíveis de vida e morte são imediatos, mas, nem por isso menos contundentes do que o primeiro. Costumo dizer em espaços de estudo que salvamos vidas em doses homeopáticas. Sem que calculemos – por sorte! –, evitamos suicídios, supostos acidentes e outras mazelas provenientes do abandono do inconsciente – essa pulsação que jamais nos abandona.
Entretanto, hoje – às vésperas do segundo turno da corrida presidencial – estamos em uma situação na qual abster-se quanto ao voto toca outra dimensão ética. Dessa vez, não a que fere apenas a subjetividade, mas a que ataca a condição de humanidade. Existem processos de subjetivação e humanização em permanente debate e negociação. As malhas da cultura são bastante flexíveis para nos entendermos como humanos ainda que tenhamos hábitos díspares. É essa flexibilidade que nos permite não estar em constante guerra com os divergentes.
A clínica psicanalítica, como atividade, sempre repercute a dimensão social de seu tempo. Até aí nenhuma novidade. No entanto, agora se trata de uma conjuntura sociocultural que, mais do que transversalizar, esburaca o setting analítico, trazendo o fascismo. Essa chaga, e também o racismo e o delírio paranoico, apresentam um mecanismo que, em linhas gerais, cega e ensurdece aqueles que estão imersos. Daí que refutem, sistematicamente, toda e qualquer ideia que nomeie e desmonte a argumentação lógica da patologia. Essa é a enorme dificuldade de trabalhar dialógica e dialeticamente com os três fenômenos. Fenômenos que, certamente, acometem a todos os terráqueos, em maior ou menos grau, mas que capturam a uma parte mais sensível em malhas firmes e, ao mesmo tempo, invisíveis. No caso do delírio, surge uma criação singular que funda uma certeza temporariamente organizadora e, também, parasitária. No racismo, por este ser estrutural, lidamos com as malhas de uma linguagem cheia de impressões colonizadoras que atravessam brancos e não-brancos. E, finalmente, para o fascismo – esse ápice do colonialismo –, encontramos a linguagem dos signos e do cinismo. Essa estranha comunicação que pulveriza preconceitos em falsas bandeiras morais, fake news, “narcinismo” etc. Trata-se de uma linguagem maquinal que corrompe a crítica. Como a crítica “buga” o sistema, esse se protege sendo impermeável, daí a ausência do raciocínio próprio e da capacidade dialética.
É por essa via que podemos entender a queda dos escândalos bolsonaristas no vazio. Um exemplo: as falas do candidato à reeleição. Todo e qualquer absurdo é ignorado – quer dizer, não registrado – em nome de uma falsa bandeira maior. Por esse mesmo motivo, nenhum apoiador de Bolsonaro estranha a presença de Sérgio Moro (desafeto declarado de Bolsonaro) no último debate presidencial, assessorando o atual mandatário. Na mesma linha fala-se em “ladrão” e corrupção, que não é negada, no período PT. Aliás, lembremos que ela também é herança colonial – mas nada surge de espanto com o enriquecimento absurdo e imoral do clã Bolsonaro. Menos ainda com a necessidade e naturalização de sigilos eternos e orçamentos secretos. Afinal, quem de nós estará aqui daqui a cem anos para responsabilizar Bolsonaro?
“Psicologia das massas e análise do eu” foi um legado freudiano, de 1921, que nos ajuda a entender boa parte desses fenômenos. A psicanálise não deve ser misturada à política, alguns supostos colegas declaram. Pobre engano dos que se afogam em pires. Ela é política, inclusive na construção de seus fundamentos. Foi preciso uma primeira grande guerra e a escuta freudiana de seus egressos para que houvesse uma grande mudança na teoria das pulsões, com a implementação da já trivial pulsão de morte. Aliás, teoria essa que precisa ser melhor revisitada diante de tanta sede de aniquilamento dos dias atuais.
É preciso lembrar também que o pai da psicanálise teve que ser asilado em Londres para que ele e sua família mais direta não perecessem nas mãos da Gestapo – a polícia de Hitler. São todos fenômenos que nos lembram que se a história não repete, ela rima. No caso tão miserável do Brasil atual até mesmo a rima parece ficar de fora… A criatividade não é mesmo o forte dos fascistas. Temos um mesmo slogan nazista e outras mesmas manipulações que tiveram sucesso àquela época.
Acredito que até aqui sedimentei uma base sólida para a declaração de meu voto. Declarar, bem entendido, nada tem a ver com coagir. Declarar é apoiar, é esperançar, mas respeitar, sobretudo.
O voto em Lula, antes de ser um voto redentor, é um voto semente. Bolsonaro deixa um legado de intolerância em muitas mentes e corações. Lula precisará de apoio e, ao mesmo tempo, uma oposição construtiva, pautada por bases democráticas. Há muito o que reconstruir em nosso país. A vitória de Lula é apenas um primeiro estalo para sair dessa hipnose profunda.
*Psicanalista membro da APPOA – Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Autora de A função po-ética na psicanálise: sobre o estilo nas psicoses (Criação Humana, 2018) e do infantojuvenil A história da menina Poesia (Giostri, 2020).
Imagem em Pixabay.
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