O Golpe de 64 ainda está entre nós

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Por LINCOLN PENNA*

“Da Capital da República numa noite em que forças reacionárias desencadeiam mais uma vez o golpe contra as instituições democráticas, e contra a libertação econômica da Pátria, na plenitude dos meus poderes constitucionais que o povo me outorgou, que o povo ratificou, em pronunciamentos memoráveis, reafirmo a minha inabalável decisão de defender intransigentemente, numa luta sem tréguas, esse mesmo povo contra as arremetidas da prepotência da pressão do poder econômico”.
(Presidente João Goulart, em 1 de abril de 1964).

Daqui há alguns dias o Golpe que depôs o presidente João Goulart ao completar 61 anos não está apenas na memória de uma geração que viveu os tormentos da ditadura implantada no país, cujo conhecimento é preciso que seja estendido a todas as novas gerações. Lembrar datas mesmo que amargas é um imperativo para que jamais tenhamos o retorno de atos que agridem os valores humanitários e democráticos indispensáveis para dar vazão à capacidade libertária e altaneira de um povo.

Os dias situados entre 31 de março e dois de abril de 1964 marcam os episódios preliminares e conclusivos do Golpe, uma vez que a primeira data se refere a iniciativa dos generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luiz Guedes que à frente de um pelotão de soldados e recrutas saídos de Juiz de Fora em direção à sede do então Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, representou o primeiro passo para o desencadeamento da ação golpista. Quanto aos primeiros dias do mês de abril marcados pela adesão dos comandos militares e dos governadores Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, que já haviam tramado a derrubada do governo de Jango. O desfecho se deu já na madrugada de dois de abril quando o Senador Áureo de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República com Jango em território nacional.

O que importa na passagem de mais um ano daquele fato que só veio a fortalecer a nossa cultura antidemocrática de passado escravocrata e patrimonialista, além de subserviente aos interesses comandados pelo imperialismo, é a advertência que se faz necessária, ou seja, os golpistas da segunda geração dos golpistas estão vivos e agindo na certeza de que para eles é possível retomar os tempos do regime ditatorial. E não estão sozinhos de novo, como em 64 os seus antecessores também não estavam e contaram com apoio logístico, que não sendo necessário foi, no entanto, decisivo para a concretude do golpe.

Essa advertência não se restringe somente as articulações em torno da anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o pretexto de liberar senhorinhas que ingenuamente foram detidas, julgadas e condenadas juntamente com todos os que agiram para o desencadeamento do plano golpista do dia 8 de janeiro de 2023. Trata-se de uma advertência que tem uma amplitude muito maior porque envolve novas articulações, que novamente têm como parceiro interesses antinacionais, presentemente representados pela atual presidência dos EUA, que em 64 como já se sabe teve papel decisivo para despertar os apoiadores do golpe que levou à queda do governo de Jango.

Assim, é importante que não se reduza o que estamos passando no momento ao desejo de um fomentador golpista que deseja retornar à presidência não importa como. O Brasil integrante do BRICS e ocupando um lugar não desprezível no continente latino-americano é visto pelos ideólogos do presidente Donald Trump como um possível e perigoso antagonista à política desencadeada pelo atual presidente norte-americano. As rugas com o ministro do STF Alexandre de Moraes provocadas por Elon Musk, hoje ministro influente de Trump, não foram feitas por mero acaso.

Se de um lado, a diplomacia brasileira precisa cultivar a sua política de entendimento com os estados nacionais a partir da concepção do multilateralismo é preciso que nos preparemos para eventuais e possíveis enfrentamentos. Neste caso, isso exige atitudes que honrem os princípios fundamentais de uma ação verdadeiramente altiva fundada na defesa intransigente de nossa soberania para que ela venha a ser ativa na defesa de nossa real independência no cenário internacional. Caso contrário, os velhos e novos herdeiros dos golpistas de 64 se sentirão insuflados a sonhar com a volta ao passado.

O capítulo final da transição à democracia por ocasião do fim do regime ditatorial não foi concluído. A teimosa conciliação que embala a nossa tradição política acabou prevalecendo e os responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade não foram julgados e sentenciados. Agora parece surgir uma chance para que esse julgamento mesmo tardio venha a acontecer ao se julgar os atos do 8 de janeiro e os que o antecederam logo após a vitória eleitoral do presidente Lula.

Os que condenam o STF de exercer um protagonismo que invade competências de outros poderes têm o objetivo de macular a única fonte hoje em dia que sustenta os preceitos constitucionais e democráticos de nossa Constituição e o faz por dever de ofício, mas também pela inoperância e cumplicidade do Parlamento brasileiro. Quanto ao Poder Executivo o amplo espectro de alianças que se tornou necessário para a vitória eleitoral tem objetivamente impedido uma atitude mais proativa diante das forças que agem sem escrúpulos visando a regressão, que é um traço dos mais representativos de uma tradição política, o fascismo, que cultua um passado tido sempre como glorioso, haja vista o que se deu na Itália e na Alemanha ao recorrerem a esse apelo junto às massas.

O cenário que se abre neste ano pré-eleitoral tem como ponto crucial o julgamento dos futuros réus que articularam e financiaram os atos antidemocráticos. O futuro imediato da política brasileira será decisivo para a próxima eleição geral em que estará em jogo a presidência da República, cujo horizonte poderá ou não desvelar amplas perspectivas para o grande salto adiante em termos de sinalização com vistas às grandes transformações estruturais, que dependem muito do que será decidido nos próximos meses. O que está em jogo é a defesa da democracia, que tem sido usada indevidamente conspurcada pelos ideólogos do grande capital e asseclas que se locupletam em detrimento dos interesses legítimos do povo brasileiro.

Enquanto não passarmos a limpo essa história de uma transição inconclusa e malfeita, destinada apenas à atender as velhas e carcomidas classes dominantes, continuaremos a postergar iniciativas mais audaciosas no âmbito das políticas públicas de modo a represar o sentido fundamental do regime republicano, isto é, a prevalência da coisa pública, do povo e de suas mais sentidas necessidades. Eliminemos os resquícios tão presentes entre nós da ditadura militar e empresarial antes que seja tarde demais.



*Lincoln Penna É Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto de capa: : Reprodução

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