Opinião
Democracia no Brasil: o problema não é (só) Bolsonaro
Democracia no Brasil: o problema não é (só) Bolsonaro
De TARSON NÚÑES*
Série Crônicas da Desdemocratização
A proximidade do segundo turno das eleições e a perspectiva de derrota do atual ocupante do Palácio do Planalto vêm gerando uma enorme expectativa entre os democratas de nosso país. Impedir a reeleição de Bolsonaro e a continuidade de seu projeto autoritário é, sem dúvida, fundamental para conter o processo de deterioração política, econômica e social que o país tem vivido nos últimos quatro anos. No entanto, não é possível ignorar o fato de que o atual presidente é apenas uma parte de um processo muito mais amplo e profundo de degradação de nossa democracia. Por isso é fundamental ter em conta que as eleições de outubro deste ano podem não ser mais do que o primeiro passo de uma luta política muito mais ampla.
Primeiro porque mesmo no caso de Bolsonaro ser derrotado nas eleições, muitos dos seus apoiadores vão ser eleitos nas assembleias estaduais, na câmara federal e no senado. Além disso sua base de apoio na sociedade, milicianos, evangélicos, garimpeiros, desmatadores, policiais, CACs seguirá presente no cenário político, mantendo uma forte polarização. Mas esta é apenas uma parte do problema, uma vez que é importante compreender que as ameaças à democracia não vem somente destes setores radicalizados. A deterioração do ambiente político brasileiro tem uma amplitude muito maior do que supõe a presença da extrema direita do espectro político.
Um olhar mais cuidadoso sobre a dinâmica política brasileira dos últimos anos aponta para um processo que é anterior à eleição do atual presidente. E mais, vai nos mostrar que os atores sociais e políticos responsáveis pela falência da democracia no Brasil representam um leque muito mais amplo e complexo de forças políticas e sociais, que vai muito além de Bolsonaro e seus radicalizados seguidores. Por isso é importante olhar este tema em uma perspectiva mais profunda, sob o risco de incorrer no erro de pensar que a derrota de uma parte das forças autoritárias vai representar um retorno à democracia.
O cientista social norte-americano Charles Tilly, um dos mais importantes estudiosos do tema, mostrou em suas obras que a democracia não se resume a um conjunto de procedimentos políticos e regras constitucionais. Tilly demonstrou que a construção da democracia resulta de um conjunto de lutas e movimentos políticos que opera no sentido da ampliação das liberdades, de uma maior participação dos cidadãos nos processos decisórios, da redução de centros autônomos de poder e de um compromisso de todos em relação às regras do jogo. E, mais importante de tudo, que a democratização não é um processo inevitável e irreversível na história, que a democracia é um processo, que pode avançar ou recuar. Em outras palavras, os países podem andar tanto na direção da democratização como da desdemocratização. E o que vemos no caso do Brasil é um caso típico de desdemocratização.
Este fenômeno no Brasil é tão amplo e profundo que torna impossível dar conta de sua complexidade nos marcos de um artigo apenas. Nesta primeira abordagem vou me limitar a citar um conjunto de temas que serão desenvolvidos e aprofundados, um a um, em uma série de artigos, que vou chamar de “Crônicas da Desdemocratização”. O pano de fundo deste conjunto de textos é um só: o fato de que os avanços democráticos que foram sendo construídos no Brasil desde os anos 80 até a segunda década do novo século vem sendo sistematicamente desmontados desde antes da eleição do atual presidente. Na verdade Bolsonaro, mais do que um agente, é um sintoma de um processo que se expressa em nosso país mas que faz parte de uma tendência global de crise da democracia.
O atual presidente, sem dúvida é de fato uma ameaça a democracia. Não se trata de minimizar o seu papel na deterioração cívica vivida pelo nosso país. No entanto, um olhar mais cuidadoso vai nos permitir perceber que, para além do presidente, sua “famiglia” e o conjunto de milicianos, pastores e militares que o cercam, existem muitas outras forças que trabalham no sentido da restrição dos direitos políticos, sociais e culturais da maioria da população. Neste contexto, como veremos a seguir, existem múltiplos exemplos em todos os campos de nossa vida social que mostram uma tendência sistemática de fragilização das instituições e das práticas democráticas em nosso país.
Um elemento central deste processo foi a sistemática campanha de desmoralização e demonização da política, que teve nos meios de comunicação de massas o seu principal porta-voz. As ideias de que todos os políticos são iguais, de que todos os políticos são corruptos, de que o envolvimento dos cidadãos na política é inútil pois tudo termina sempre em conchavos foi sistematicamente propagada na maioria dos meios de comunicação desde meados da primeira década do século. O resultado disso foi um afastamento dos cidadãos em relação à participação política, um desinteresse e uma alienação generalizada que contribui decisivamente para a decadência da democracia.
Um outro elemento importante é a destruição e/ou esvaziamento de muitos dos mecanismos de participação política que foram sendo construídos desde a redemocratização do país nos anos 80. Conselhos, conferências e mecanismos de participação direta dos cidadãos nas discussões e na gestão das políticas públicas vinham sendo construídos nas últimas décadas por distintos governos em nível federal, estadual e municipal. Toda esta infraestrutura vem sendo sistematicamente desmontada nos últimos anos. E, ainda que o governo federal sob Bolsonaro seja responsável por grande parte desta destruição, muitos outros governos estaduais e municipais dirigidos por outras forças políticas também se movimentam nesta direção.
Um terceiro elemento importante que se relaciona com o processo de erosão da democracia tem a ver com uma crescente autonomização e empoderamento de determinadas corporações relacionadas com o aparelho de Estado. Estes se constituem em grupos de interesse que passam a utilizar sua posição na máquina do Estado para o benefício próprio e se colocam acima das leis que regem a conduta de todos os cidadãos. Forças Armadas e corporações policiais, Poder Judiciário, Ministério Público entre outras das chamadas “carreiras de Estado” utilizam sua posição estratégica para se colocar acima das leis e de qualquer mecanismo de controle público, ampliando seu poder e açambarcando parcelas crescentes dos recursos públicos. Este processo contribui em muito para descrença dos cidadãos comuns em relação à nossa institucionalidade democrática.
Esta erosão da democracia não se limita à dimensão política e à esfera estatal. No âmbito da sociedade civil também se pode identificar uma deterioração da qualidade das relações políticas. Uma sociedade civil consciente, ativa e mobilizada é também uma condição para uma democracia sadia. E o que se vê neste campo é um processo de fragmentação, burocratização e despolitização da sociedade civil. Os sindicatos foram fragilizados e esvaziados pelas reformas trabalhistas. As organizações da sociedade civil cada vez mais se orientam para práticas de natureza assistencial e particularista. Ao invés de se constituirem em instrumentos de mobilização da sociedade na luta por direitos e garantias universais para todos, se dividem em projetos pontuais, voltados para públicos específicos, coordenados por equipes profissionais e financiadas por recursos de grupos empresariais ou estatais. Com isso, se afastam de um debate mais geral acerca de direitos para todos, voltando sua atenção para o atendimento de interesses imediatos e particularistas.
Esta dinâmica de desdemocratização da sociedade civil reflete também uma mudança na cultura política da sociedade Brasileira. A hegemonia política do neoliberalismo levou a uma situação onde o individualismo tomou o lugar do interesse pelo bem comum, a competição tomou o lugar da solidariedade. Nosso modelo econômico, assim como a esfera política, são conduzidos por valores baseados no consumismo, no imediatismo e no hedonismo individualista. Um país onde a postura geral é de cada um por si e todos contra todos certamente tem muito mais dificuldades de estabelecer uma democracia duradoura.
Mas também o campo da economia gera impactos sobre a qualidade da democracia. E neste campo vivemos, desde antes do governo de Bolsonaro, um aprofundamento da austeridade neoliberal, um aprofundamento das desigualdades sociais e uma deterioração das condições de vida da população. Isto também corrói a democracia. Pessoas empobrecidas, desempregadas, desesperançadas tendem a não exercer seus direitos de cidadania. Estão mais preocupadas em sobreviver. Por outro lado o crescimento da concentração de riqueza representa também um crescimento do poder político dos grupos mais favorecidos, que tem ampliado cada vez mais a sua influência sobre os governos em detrimento da maioria da população.
Por fim as mudanças tecnológicas também vem tendo uma forte influência sobre nossa frágil democracia. A privatização da esfera pública, que hoje opera quase que integralmente através de plataformas que são empresas privadas, é uma ameaça à democracia no Brasil, assim como no resto do mundo. Alguns poucos grupos, privados e monopolistas controlam praticamente todos os espaços de debate social, tendo um enorme poder de controlar o acesso dos cidadãos à informação. E mais do que isso, a natureza privada destes espaços de debate faz com que quem tem dinheiro tenha mais capacidade de fazer sua opinião ser ouvida, ao passo que o cidadão comum só pode contar com o beneplácito dos algoritmos e com a sorte para que as suas opiniões cheguem aos ouvidos dos demais.
Todos estes exemplos cumprem o papel de mostrar que a desdemocratização de nosso país tem causas mais complexas e mais profundas, que vão muito além dos malfeitos do capitão e sua família. Bolsonaro é sim uma ameaça, e seu governo é responsável por uma aceleração destas tendências de crescimento e fortalecimento do autoritarismo. Mas como já afirmei acima, Bolsonaro é muito mais um sintoma do que uma causa da deterioração da democracia. Há no Brasil muitas outras forças políticas e sociais que já vinham operando e operam na direção da desdemocratização.
Estamos inseridos em uma dinâmica que é global. Neste sentido não é coincidência que Bolsonaro tenha emergido como alternativa política em nosso país. Sua política, seus valores e práticas se alinham com muitos outros líderes políticos similares, de Duterte, nas Filipinas a Orban, na Hungria, de Trump nos Estados Unidos a Meloni na Itália. Temos pelo mundo uma verdadeira epidemia de líderes anti-democráticos. Mas é importante ter em conta também que a supressão da democracia não se limita a esta extrema direita. Quando a “democrática” União Europeia se autoriza a passar por cima da decisão do povo grego que em plebiscito votou contra os programas de austeridade a que estavam sendo impostos, revela também um desprezo pela decisão dos cidadãos. No mundo inteiro as instituições nacionais e multilaterais controladas pelo capital financeiro impõem suas decisões pelo mundo, quase sempre passando explicitamente por cima da vontade dos cidadãos.
Cabe aos defensores da democracia compreender esta dinâmica, identificar de maneira clara os problemas e trabalhar na construção de alternativas. Derrotar Bolsonaro neste 2 de outubro não é o fim da luta pela democracia, mas apenas um novo começo. É fundamental que se construam instrumentos para enfrentar os desafios colocados por um processo de erosão da democracia que tem causas muito mais sistêmicas e profundas. Mas é importante saber que é somente se formos capazes de enfrentar os problemas reais que poderemos superar os desafios de reconstruir a democracia no Brasil. Aguardem, nas próximas semanas, as “Crônicas da Desdemocratização”.
*Doutor em Ciência Política pela UFRGS.
Foto em Fotos Públicas.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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