Opinião
A defesa da democracia
A defesa da democracia
De MIGUEL TEDESCO WEDY*
A Constituição de 1988 é um marco incontestável da democracia brasileira. Conquistada com sangue, suor e lágrimas, depois de anos de arbítrio e violações de direitos fundamentais, ela significou uma ruptura e uma mudança. Como salientou Ulysses Guimarães na data de sua promulgação: “…Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina… Foi a sociedade mobilizada nos colossais comícios das “Diretas Já” que pela transição e pela mudança derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala. A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja o nosso grito. Mudar para vencer. Muda Brasil.”
Ou seja, a Constituição veio para mudar e romper com o Estado usurpador. A Constituição veio para instituir e erigir uma democracia política, social e econômica.
O Título V da Constituição trata da defesa do Estado e das suas Instituições Democráticas. E isso é mais do que salutar, é uma necessidade, pois o regime democrático precisa se proteger dos seus inimigos.
Eles sempre estão à espreita. A história é pródiga em demonstrar como as democracias pariram ditaduras, como na Itália fascista ou na Alemanha nazista. Nos últimos tempos temos visto no nosso País o crescimento das pregações e ações em defesa da quebra do Estado Democrático de Direito.
Por isso, as previsões do Estado de Defesa (medida para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza) e do Estado de Sítio (em casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa e declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira) são instrumentos que só devem ser usados em defesa da democracia, não para destruí-la. Não teria sentido uma Constituição democrática que previsse a sua própria destruição. Repete-se, estado de defesa e estado de sítio são medidas que deveriam apenas resguardar a democracia. Jamais poderiam ser aríetes contra o Estado Democrático de Direito. Usar tais medidas contra o funcionamento e a independência das instituições democráticas seria uma perversão da Constituição.
Mais aberrante ainda é a sustentação feita por alguns setores autoritários em defesa de uma inexistente “intervenção militar constitucional”, supostamente prevista no art. 142 da Constituição Federal.
O art. 142 da Constituição Federal dispõe que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Em nenhum instante consta que as Forças Armadas sejam um Poder Moderador, como acontecia com o Imperador na Constituição outorgada de 1824. Não há autonomia das Forças Armadas para qualquer intervenção, do ponto de vista constitucional.
A Constituição diz, em seu art. 142, que as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria, isto é, devem ser usadas para a defesa externa do país. E, sob outro aspecto, podem ser usadas para garantir o funcionamento dos poderes constitucionais. Ou seja, não podem ser usadas para anular, mitigar, silenciar ou impedir o funcionamento desses mesmos poderes, sejam eles o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário. E, por fim, permite-se que elas sejam usadas para a garantia da lei e da ordem. Isso diz respeito, evidentemente, ao uso das Forças Armadas para garantir o cumprimento das leis e da ordem democrática. Seria uma contradição em si o uso das Forças Armadas contra o que dispõe a ordem democrática prevista na Constituição.
Eventuais divergências entre os poderes devem ser resolvidas dentro da institucionalidade constitucional, de maneira harmônica, como prevê a Constituição, em seu art. 2º. Não há abrigo na Constituição para que as divergências entre os poderes sejam resolvidas de maneira violenta.
Portanto, “intervenção militar constitucional” não existe. Não há autonomia das Forças Armadas para isso. E, se convocadas por um poder, para silenciar, mitigar, anular ou impedir o funcionamento de outro poder, estariam a agir sob o breu da ilegalidade constitucional. Estariam a praticar aquilo que a Constituição Federal, em seu art. 5º, XLIV – considera um crime inafiançável e imprescritível, isto é, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Assim, nesse momento histórico em que o País vê quase como que suspensas no ar as suas esperanças por um destino justo e democrático, impõe-se que não esqueçamos a lição de um velho soldado, o Marechal Osório: “Seria um desgraçado aquele que, depois de haver combatido com as armas da guerra o inimigo externo, pusesse depois essas mesmas armas ao serviço do despotismo, de perseguições e violência contra seus compatriotas.”
*Doutor pela Universidade de Coimbra. Decano da Escola de Direito da Unisinos. Advogado Criminalista.
Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemora 34 anos de sua promulgação. Ao longo deste mês, publicaremos artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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