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Opinião

A “Constituição Cidadã” e a necessária renovação de seus desafios

A “Constituição Cidadã” e a necessária renovação de seus desafios

Artigo por RED
05/10/2022 12:11 • Atualizado em 06/10/2022 11:14
A “Constituição Cidadã” e a necessária renovação de seus desafios

De BEN-HUR RAVA*

 

“Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda
que de lamparina na noite dos desgraçados.
(Ulysses Guimarães)

 

O que é e para que serve uma Constituição? Essa pergunta seria simples se não fossem as constantes variáveis que estão contidas nos inúmeros conceitos jurídicos e na prática política cotidiana.

Senso comum, numa perspectiva liberal clássica, as Constituições são documentos jurídico- políticos que visam organizar o Estado, limitar o poder mediante a separação dos Poderes e atribuir direitos e garantias fundamentais aos cidadãos.

Se as primeiras Constituições escritas, que surgiram no final do século XVI (a Constituição norte-americana de 1787, após a Independência dos Estados Unidos e a Constituição da França de 1791, após a Revolução Francesa) tinham um conteúdo negativo, isto é, as limitações do poder absoluto da monarquia, bem sabemos que esse conceito evoluiu ao longo dos séculos de desenvolvimento do chamado constitucionalismo (estudo e prática da Constituição) e as Constituições ganharam conteúdos positivos. Significa dizer que foram, paulatinamente, recheadas de carga ideológica, econômica, funções ativas e perspectivas sociais com compromissos programáticos. Exemplo disso, foram as Constituições mexicana de 1917, russa de 1918 e a de Weimar, na Alemanha pré-nazista, de 1929. Todas elas voltadas a um conteúdo econômico e social, revelando uma presença do Estado na formulação de políticas intervencionistas em favor da pacificação dos conflitos entre capital, terra e trabalho. Numa palavra: dar sustentação e estabilidade ao capitalismo.

As Constituições passaram a organizar o presente e a projetar o futuro, principalmente vinculando-se aos novos direitos, sempre carentes de maior cuidado e de uma projeção ampliada (a paz, os direitos humanos plenos, o meio-ambiente sustentável, a tecnologia, o desenvolvimento, a cultura, os povos originários, entre outros).

Entre nós, em fins do século XX, após 21 anos de regime civil-militar autoritário, gestado num golpe de Estado, a Constituição Brasileira veio, em 1988, para organizar o Estado brasileiro e apontar os direitos individuais, sociais e coletivos que os cidadãos e cidadãs do país necessitavam para que a sua vida civil e política fosse melhor e mais feliz. Porque há consenso aristotélico, às vezes esquecido, de que o Direito e a Política, além de outras funções menores, devem privilegiar um interesse maior: a felicidade e o bem-estar geral do povo e da nação.

Quando promulgada em 05 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil foi recebida com a esperança das promessas do período de lutas contra o autoritarismo. Uma dessas promessas era a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, capaz de escrever uma nova Carta que colocasse o Brasil nos trilhos da democracia e do Estado e Direito, atributos indispensáveis de uma verdadeira República. Recuperar a democracia e a participação política, e estimular a plenitude do exercício dos partidos políticos.

Tanto que o Dr. Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, na sessão de promulgação, deixou bem claro: “Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da democracia. É o clarim da soberania popular e direta tocando no umbral da Constituição para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais.”

E, portanto, a chamada “Constituição Cidadã” veio à lume para tentar resgatar o compromisso com um novo Estado, novos instrumentos e novos arranjos políticos para o melhor exercício do Governo e criar mecanismos capazes de possibilitar o acesso dos menos favorecidos e despossuídos a direitos até então sonegados.

No Preâmbulo da Constituição Federal há sinais, claros, da síntese dessas intenções quando verbera: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (…)”.

Claro que uma Constituição é sempre uma obra aberta com tessitura a ser preenchida pela  obra parlamentar, mediante a edição de normas jurídicas nas casas legislativas, também pela atuação dos executivos na formulação e aplicação das políticas públicas e, ainda, pela análise, interpretação e decisão definitiva pelos tribunais, chamados a se pronunciarem sobre a validade ou invalidade do próprio texto constitucional, das leis e demais decisões políticas que afetam, de modo cotidiano, a vida da nacionalidade.

Uma Constituição, posto que não se trata de um documento saído rígido, pronto, acabado, definitivo da cabeça de Palas Athena, tem o condão de se transformar, adaptar e renovar conforme as mudanças da própria sociedade e desejo popular cristalizado no princípio da representação política e democrática. O direito de emenda constitucional é a prova de que uma Constituição traz em si o germe da mutação. Também sobre isso o Dr. Ulysses se manifestou: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma”.

E foi traçando o Título I da Constituição Federal de 1988 que os deputados constituintes assentaram as grandes bases políticas, sociais e econômicas. Ali constam, no art. 1º do Texto, os princípios 2 fundamentais. Significa dizer que o Brasil pactuou ser uma “República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” que “constitui-se em Estado Democrático de Direito.”

E agregando como seus fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Note-se que ao longo de 28 anos, de 1988, até 2016, período que vai da promulgação da Constituição até o golpe branco de origem parlamentar – que afastou ilegitimamente a Presidenta Dilma Rousseff da Presidência da República, com a assunção do Vice-Presidente, Michel Temer, articulador e beneficiário direto do golpe e, depois, com a eleição de Jair Bolsonaro na Presidência da República e ascensão da extrema-direita ao poder – , houve uma estabilidade constitucional e institucional, onde os Poderes da República.

Ressalvadas as pequenas crises políticas, que são normais no regime republicano e democrático (como os casos de impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, e, mesmo de Dilma Rousseff, ainda que inconstitucional e ilegítimo, em 2016, atuaram de forma independente e harmônica, entre si, sem grandes sobressaltos.

A Constituição vinha cumprindo seu papel institucional e atuando de modo a garantir as chamadas “regras do jogo” na expressão do jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio 3 , com o pleno funcionamento do sistema político.

Eis que de repente, grupos parlamentares sectários de extrema-direita e seus adeptos nas redes sociais e em grupos de mobilização e apoio ao atual mandatário da nação, começaram a duvidar e por em cheque a validade e a eficácia das regras constitucionais. Iniciaram verdadeira “guerra santa” contra as instituições democráticas, reverberando teses golpistas e clamando por intervenção das forças armadas, como se estas fossem garantes ou tutoras do regime civil e democrático que se assenta, única e exclusivamente, do que provém do comando do parágrafo único, do art. 1º, da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Os grupos extremistas de direita, similares a movimentos fascistas históricos e mais recentes, a exemplo de países como Estados Unidos, Polônia e Hungria, chegaram mesmo a questionar a legitimidade institucional do Supremo Tribunal Federal (STF), em verdadeira sandice e com uma gradual escalada de violência verbal e física, mediante protestos e investidas contra o edifício sede da Corte, claramente constitutivos da prática tentada e consumada de crimes comuns e de responsabilidade, inclusive por parte de Ministros de Estado e do próprio Presidente da República, perpetrados contra os altos Magistrados da Corte Maior do pais. Como se o fato desses Juízes procederem a uma interpretação e aplicação das regras constitucionais a contrario sensu daquilo que era e é desejado e esperado pelas hostes bolsonaristas, em relação às suas práticas governamentais, violadoras de políticas públicas, direitos fundamentais, regras orçamentárias, disposições sobre saúde pública, política educacional, armamento, liberdade de imprensa, entre outros direitos e garantias tutelados pela própria Constituição.

Olvidam, entretanto, que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” , sendo, sempre, a última palavra, certa ou errada, sobre a interpretação sobre o alcance e aplicabilidade de suas normas, consoante o que estabelece o seu art. 102. Foi, ainda, desprezado por esses grupos extremistas a característica própria de estabilidade que uma Constituição deve representar no centro do Estado de Direito, a fim de assegurar a existência da própria Federação e do regime democrático. Principalmente porque a Constituição Federal está preordenada ditar o arranjo das normas constitucionais, em evidente conexão sistemática, com valores, princípios e regras aptas a serem efetivamente cumpridas para que os seus objetivos sejam alcançados. ‘

É a isso que se chama efetividade constitucional, já que ela há muito deixou de ser mera folha de papel e passou a assumir o protagonismo cidadão na vida do povo brasileiro.

A Constituição é moldada todos os dias de forma que facilite meios para se alcançar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: “construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, dicção dada pelo seu art. 3º.

Assim, quando a Constituição Federal, em cada 05 de outubro, completa mais um ano de vida, deve ser lembrado a sua perspectiva histórica e seu compromisso com as liberdades públicas e, fundamentalmente, o seu papel estabilizador da vida nacional, projetando-se para os dias vindouros.

E o seu maior desafio é sempre, por meio de instituições livres e de funcionamento regular, manter-se intocada das tentações daqueles que visam, a todo custo, empanar-lhe o brilho e querer usá-la em benefício próprio ou de suas aspirações egoístas e personalíssimas ou interesses inconfessáveis, mesmo que com interpretações enviesadas política e juridicamente.

Proteger a Constituição é tarefa de toda a cidadania consciente e alerta, para que ela continue defendendo o interesse de cada cidadão e cidadã brasileiros, mesmo que inconscientes da sua importância desse Texto em suas vidas.

Talvez esse seja o maior desafio: defender, permanentemente, a Constituição.


*Advogado em Porto Alegre. Professor universitário.

Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemora 34 anos de sua promulgação. Ao longo deste mês, publicaremos artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira.

2 Ainda que haja uma definição variada e tortuosa, entendam-se por princípios o que sintetiza Rodríguez-Toubes Muñiz: “[…] los principios pueden ser descritos como normas que persiguen la realización en la mayor medida posible de valores, entendidos éstos en sentido amplio. Los valores vienen a ser el objetivo normativo de los princípios.” (MUÑIZ, Joaquín Rodríguez-Toubes. Princípios, fines y derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2000, p. 42). Se antes, no sistema constitucional brasileiro, não tinham força de norma jurídica, sendo meras aspirações morais ou políticas, com o advento da Constituição Federal de 1988, passaram a constitui-se em verdadeiras normas com eficácia jurídica e aplicabilidade direta e imediata (BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. “Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.232, p.141-176, abr./jun. 2003, p. 149).

3 Em O futuro da democracia, de Bobbio define o regime democrático primeiramente como um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados. Trata-se de uma definição procedimental, ou seja, que foca em primeiro lugar no processo pelo qual as decisões coletivas são tomadas, antes da consideração de seu conteúdo. (BOBBio, NORBERTO. Il Futuro della Democrazia, Torino: Einaudi Editore, 1995).

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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