Opinião
Cultura e Ciência em ação: O revolucionário Jean Genet
Cultura e Ciência em ação: O revolucionário Jean Genet
De ENIO PASSIANI*
Nascido a 19 de dezembro de 1910, Jean Genet, filho de uma prostituta que o criou até os sete meses e de pai desconhecido, foi abandonado por sua mãe e entregue a um orfanato. Adotado por uma família de camponeses pobres em 1908, revelou-se precocemente uma criança inteligente, com viva imaginação e, desde cedo, com talento para as letras, vencendo um concurso literário em sua escola. No entanto, logo aos 15 anos, policiais foram à sua casa acusando-o de roubo; foi então enviado a um reformatório e lá ficou detido entre 1926 e 1929. Ao ser solto, alistou-se na Legião Estrangeira, mas desertou, roubando as malas de alguns oficiais.
Decidiu, a partir de então, assumir a condição de transgressor vivendo uma vida marginal como se fosse uma espécie de projeto, inclusive intelectual. Genet revela que havia se conformado em ser o criminoso que a sociedade esperava que seria: “O meu gosto e minha atividade de ladrão estavam relacionados com minha homossexualidade, saíam dela, que já me separava numa solidão inabitual” (Introdução ao livro O balcão, Coleção Teatro Vivo, Abril Cultural, 1976, p. VII). Entre os 30 e 40 anos viveu como um marginal itinerante, percorrendo a pé boa parte da Europa – Espanha, Itália, Alemanha, Leste Europeu… Nesse período dedicou-se à mendicância, ao roubo e à prostituição, sendo preso e deportado inúmeras vezes, o que não o impedia, depois de solto, a continuar suas andanças, zanzando de lá para cá sempre mergulhado num mundo de intensa crueldade e violência.
Genet passa a se dedicar à literatura e ao teatro quando esteve preso na França, em 1942, e, aos 32 anos, escreve sua primeira obra, um poema lírico intitulado O condenado à morte. Ainda em 42 Genet escreve, também na prisão, o romance Nossa Senhora das Flores. Sua produção literária, desde então, não parou mais e, paulatinamente, seu nome passa a ser conhecido nos meios intelectuais franceses. Escritores e artistas visitavam-no na prisão e divulgavam sua arte. Em 1948, personalidades como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Jean Cocteau empenharam-se por sua liberdade junto ao Presidente da República da França, Vincent Auriol, conseguida no ano seguinte, 1949.
É no livro Diário de um ladrão (1949) que Genet narra as venturas e desventuras que experimentou ao longo de sua vida como errante pela Europa. Livro de difícil classificação, mistura de diário, testemunho, confissão e autobiografia, gêneros que jamais descartam a ficção, o autor (nos) revela como converteu sua própria vida em obra de arte, como seu projeto estético esteve presente em cada ato e decisão desabrochados ao longo de sua trajetória.
Ainda mais se tomarmos, mesmo que provisoriamente, a arte como uma forma de expressão que provoca, mesmo em seus momentos mais belos (ou justamente por causa disso), uma espécie de mal-estar, quer dizer, um deslocamento de nosso lugar habitual, uma desfamiliarização que nos deixa meio perdidos/as e por isso nos convoca a reencontrarmo-nos, só que de outra maneira, em outros termos antes impensáveis até a experiência estética vivida quando em contato com a arte.
O livro subverte convenções e normas literárias assim como seu autor subverteu normas e convenções sociais. Agasalhado pela violência, Genet resiste à brutalidade tratando-a com lirismo, na vida e no texto: “Submetendo-me às vontades do guarda da alfândega, eu estava obedecendo a uma ordem dominadora que era impossível não servir: a da polícia. Por um instante eu não era mais o vagabundo esfomeado e esfarrapado que os cães e as crianças põem em fuga, nem tampouco o ladrão audacioso que zombava dos tiras, mas a favorita, sob uma noite estrelada, que nina o vencedor” (Diário de um ladrão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 151).
Para Genet, a brutalização dos criminosos, prostitutas, viciados, contrabandistas, cafetões, era uma necessidade, quase uma virtude porque era o que garantia sua sobrevivência no bas-fond e diante do mundo burguês, que os rejeitava e os desprezava cotidiana e cruelmente. O ambiente que Genet àquela altura habitava clamava por respeito e amor. Para ele, se mais amor houvesse, boa parte dos problemas estaria resolvido.
Mas se engana quem pensa que há aí justamente uma defesa da concepção burguesa e pequeno-burguesa do amor. Não! Muito pelo contrário! Genet abominava a burguesia e tudo que a ela dizia respeito por soar sempre tão falso, superficial, moralmente hipócrita. Genet esforçou-se por nos oferecer um evangelho às avessas. Tanto é que, segundo ele, a maior prova de amor que podemos dar a alguém é a traição. Só traímos a quem amamos, pois somos indiferentes por quem nada sentimos.
Genet desafiava e zombava, em sua arte e em sua vida, de todas as convenções, fossem estéticas, morais, religiosas e/ou políticas, e seu caráter e sua obra revelaram-se extraordinária e hodiernamente subversivos.
Genet nos ensina que a revolução é feita todos os dias e de muitas maneiras possíveis: na vida, na política e na arte; quando amamos, nos indignamos e nos solidarizamos. Basta coragem…
*Professor do Departamento de Sociologia e dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Segurança Cidadã da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Foto de Jean Genet – Herve Lewandowski/Divulgação.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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