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Os 434 que ainda estão aqui e os 8.350 que não.
Os 434 que ainda estão aqui e os 8.350 que não.
Por GUSTAVO GUERREIRO*
“Ainda estou aqui” ganhou destaque nas últimas semanas como um grito de resistência no cinema nacional, narrando a dor dilacerante de uma família que teve seu pai arrancado pela ditadura militar. Como o filme magistralmente retrata, conhecemos os 434 – sabemos seus nomes, suas histórias, suas lutas. São os mortos e desaparecidos políticos que habitam a memória coletiva do povo brasileiro, cujas famílias ainda buscam justiça. Mas há outros gritos de um Brasil profundo, igualmente dolorosos, que parecem não encontrar eco na consciência social dos brasileiros: os 8.350 indígenas assassinados no mesmo período. Por que suas histórias não ganham as telas? Por que seus nomes não estão gravados nos monumentos à memória? Por que suas famílias não têm o mesmo espaço para clamar por justiça? Talvez porque, para boa parte dos brasileiros, eles nunca estiveram verdadeiramente “aqui”.
Quando o filme de Walter Salles nos apresenta as imagens de uma família feliz à beira-mar, somos tocados pela brutalidade com que a ditadura destroçou aquele cotidiano de classe média. É uma história que precisa, sim, ser contada e lembrada. No entanto, enquanto famílias como a de Rubens Paiva eram dilaceradas nos centros urbanos, um genocídio silencioso se desenrolava nas profundezas do Brasil, longe dos olhos da imprensa e da sociedade civil.
O Relatório Figueiredo (que leva o nome do então procurador federal Jader de Figueiredo Correia, designado para apurar irregularidades no antigo Serviço de Proteção aos Índios), redescoberto apenas em 2013 pela Comissão Nacional da Verdade, revela uma face ainda mais trágica do regime militar: a execução sistemática de povos indígenas inteiros. Não foram apenas mortes isoladas, mas um projeto de Estado que via nos povos originários um “obstáculo ao progresso”. Comunidades inteiras foram dizimadas para dar lugar a estradas, hidrelétricas e principalmente fazendas. Crianças foram assassinadas nos braços de suas mães, idosos foram queimados em suas ocas, lideranças foram envenenadas. A brutalidade é tão descomunal que beira o inacreditável – talvez por isso mesmo tenhamos optado por não acreditar.
É curioso, e profundamente perturbador, como o Brasil construiu uma hierarquia invisível do luto. Quando um professor universitário, um jornalista ou um deputado era morto pela ditadura, sua morte ecoava (e ainda ecoa) nos corredores da história. Seus nomes são lembrados, suas histórias são contadas, filmes são feitos. Mas quando centenas de Xavantes, Cinta Largas ou Waimiri-Atroari eram massacrados, o silêncio era – e ainda é – ensurdecedor. Não seria este um sintoma de um racismo estrutural tão profundamente arraigado que nem mesmo os setores mais progressistas da sociedade conseguem superá-lo?
A própria esquerda, em sua narrativa de resistência à ditadura, muitas vezes reproduziu uma visão urbano-centrada da história. Enquanto contabilizamos meticulosamente os 434 mortos e desaparecidos políticos – número que por si só já deveria nos horrorizar -, deixamos escapar por entre os dedos da memória mais de 8 mil vidas indígenas. Em 2014, participei como ouvinte de duas sessões de audiência da Comissão Nacional da Verdade em Dourados, Mato Grosso do Sul, com a finalidade de dar voz aos Guarani Kaiowá, Ñandeva, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Ofaié e Guató sobre casos de violação de seus direitos. Percebi, atônito, que os relatos dos indígenas indicaram que os números do Relatório estavam muito abaixo da realidade. Não se trata de estabelecer uma competição macabra de qual tragédia foi maior, mas de compreender que nossa memória coletiva é seletiva e essa seleção não é inocente.
O projeto desenvolvimentista da ditadura militar não foi apenas um plano econômico; foi uma sentença de morte para diversos povos originários. Enquanto nas cidades se perseguiam aqueles que se opunham ao regime, nas florestas e cerrados se executava um projeto de extermínio muito mais amplo. A construção da Transamazônica, celebrada como obra faraônica do “milagre econômico”, foi na verdade uma estrada pavimentada com sangue indígena. Cada quilômetro de asfalto representava dezenas de vidas ceifadas, culturas destruídas, cosmologias interrompidas.
Quando analisei durante meses documentos como o Relatório Figueiredo para minha tese de doutorado, intitulada “O militar e o Índio: a influência das Forças Armadas na Política Indigenista Brasileira”, descobri que a violência não era apenas física. Era também burocrática, sistemática e institucionalizada. O próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que deveria proteger as populações indígenas, transformou-se em um instrumento de extermínio. Muitos funcionários públicos da época, que deveriam defender os indígenas, tornaram-se algozes. Laudos foram falsificados, terras foram griladas, e comunidades inteiras foram declaradas “extintas” com uma simples canetada.
Este apagamento continua até hoje. Enquanto filmes, livros e documentários constantemente revisitam – e com razão – as histórias dos perseguidos políticos urbanos, quantas obras abordam o massacre dos Waimiri-Atroari durante a construção da BR-174? Quantos brasileiros sabem que os Cinta Larga foram dizimados com dinamite lançada de aviões, no chamado Massacre do Paralelo 11? Ou que crianças Tapayuna foram envenenadas com arsênico em um suposto ato de “pacificação”?
A disparidade na preservação dessas memórias revela muito sobre nossa sociedade. Os 434 mortos e desaparecidos políticos tinham nome, sobrenome, família que podia recorrer à justiça, amigos que podiam contar suas histórias, documentos que provavam sua existência. Já os indígenas assassinados eram vistos pelo Estado como números inconvenientes, estatísticas incômodas de um “Brasil profundo” que precisava ser “civilizado” a qualquer custo.
É sintomático que apenas em 2013, com a Comissão Nacional da Verdade, tenha-se começado a olhar mais sistematicamente para esses crimes. Mesmo assim, o capítulo sobre violações de direitos indígenas foi incluído apenas após intensa pressão de pesquisadores e ativistas. É como se precisássemos constantemente lembrar à sociedade brasileira que os povos indígenas também são parte desta história – e suas mortes também precisam ser contadas, lembradas e reparadas.
Quando assistimos a “Ainda Estou Aqui” e nos emocionamos com a luta de Eunice Paiva por justiça, precisamos lembrar que também existem milhares de outras histórias de dor e resistência que ainda aguardam para serem contadas. Histórias de povos que, apesar de todas as tentativas de extermínio, também “ainda estão aqui”. Sobreviveram não apenas à violência física e ao etnocídio, mas à violência do esquecimento.
A verdadeira dimensão da ditadura militar brasileira só será compreendida quando o Brasil olhar para além dos centros urbanos, quando pudermos contar não apenas as histórias que nos são próximas e familiares, mas também aquelas que nos são propositalmente distanciadas. Reforço aqui que os 434 e os 8.350 não são números que competem entre si – são faces diferentes de um mesmo projeto de poder que escolhia quem podia viver e quem devia morrer.
É profundamente simbólico – e talvez não por acaso – que Eunice Paiva, após perder seu marido para a violência da ditadura, tenha dedicado grande parte de sua vida à defesa dos povos indígenas. Como advogada e ativista, ela compreendeu que a luta por justiça e memória não podia se restringir apenas aos círculos urbanos e intelectualizados. Ela entendeu, como poucos em sua época, que a dor da perda e o direito à existência não conhecem barreiras sociais ou étnicas. Sua militância em defesa dos povos indígenas nos ensina que a verdadeira resistência à opressão deve ser ampla, inclusiva e profundamente humana.
Hoje, quando falamos em reparação histórica e justiça de transição, precisamos expandir nosso olhar. Não é possível haver justiça sem a inclusão de todas as vítimas da violência estatal. Não podemos mais aceitar que alguns mortos sejam mais chorados que outros, que algumas histórias sejam mais dignas de serem contadas que outras. Continuar luta de Eunice Paiva pela visibilidade e pelos direitos dos povos indígenas é honrar sua memória.
As mortes e desaparecimentos de indígenas não são apenas números em uma estatística macabra – são populações inteiras, com suas culturas, línguas, cosmologias e formas próprias de existir. Cada vida indígena perdida durante a ditadura representou também a perda de conhecimentos milenares, de formas únicas de compreender e se relacionar com o mundo. O Brasil precisa urgentemente incorporar essas 8.350 tragédias à memória coletiva de seu povo, não como uma nota de rodapé, mas como parte fundamental da narrativa histórica sobre a violência do Estado brasileiro.
Não podemos mais fingir que não sabemos, nem escolher quais mortos vamos chorar. É hora de expandir nossa capacidade de indignação e empatia. É hora de reconhecer que cada vida indígena perdida é uma perda irreparável para toda a humanidade. Que cada história não contada é uma violência que se perpetua. Que cada silêncio nosso é também uma forma de cumplicidade.
Ainda estamos aqui, sim. E precisamos estar aqui para contar todas as histórias, honrar todas as memórias, chorar todos os mortos. Porque só assim poderemos construir um futuro verdadeiramente democrático, onde a vida – toda e qualquer vida – seja sagrada e inegociável. Este é o verdadeiro legado que Eunice Paiva deixou. Esta é a luta necessária.
*Gustavo Guerreiro é Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).
Foto de capa: Reprodução
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