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A problemática estrujuntura brasileira

A problemática estrujuntura brasileira

Artigo por RED
11/01/2025 12:00 • Atualizado em 11/01/2025 11:56
A problemática estrujuntura brasileira

Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Parte I

1)Introdução

Duma certa feita, um querido amigo perguntou-me: – Paiva, tu que és tão rigoroso com dados de História Econômica, me tira uma dúvida, por favor. É verdade que o Brasil foi o país que apresentou as maiores taxas de crescimento em todo o mundo entre 1930 e 1980? Respondi ao amigo: – Médio B superior!” É “médio B” por três motivos.

Primeiro porque o ciclo expansivo começou em 1932 (em 1930 e 31, a economia brasileira decresceu). Em segundo lugar, porque a Contabilidade Social estava sendo criada nos anos 30, e só alcança um grau maior de precisão e determinação na segunda metade dos anos 40 (após a criação do FMI e o Banco Mundial). Na verdade, ainda estamos refinando e “menos-piorando” as medidas de PIB e Valor Agregado. A metodologia de cálculo vem mudando a cada década. Quer dizer: não há dados internacionais rigorosamente comparáveis para este longo período.

Em terceiro lugar, é muito complicado comparar o desempenho do Brasil com o resto do mundo. Pois ficamos relativamente imunes às inúmeras crises e conflitos bélicos que se sucederam no mundo entre 1929 e 1980. A crise de 1929, que impôs uma queda no PIB e no emprego das principais economias ocidentais (EUA à frente), foi uma “marolinha” no Brasil. Também passamos ilesos pela Segunda Guerra Mundial, que destruiu a Alemanha e o Japão; impôs enormes abalos nas estruturas produtivas de praticamente toda a Europa (da Rússia à Inglaterra), bem como à parcela expressiva da Ásia (China, Indonésia, Malásia etc.). Por fim, o Brasil pouco foi abalado pela chamada “Guerra Fria”. Que só foi Fria nos países centrais. Em quase toda a periferia asiática (Índia, Paquistão, Coreia, Indonésia, Vietnã, Camboja etc.), no Oriente Médio (em conflitos que estão presentes ainda hoje), e na África (com as guerras de libertação do continente, desde a Argélia até a África do Sul) a Guerra Fria foi extraordinariamente quente e destrutiva.

Em suma: não há como se fazer uma comparação rigorosa entre os inúmeros países, seja em termos estritamente contábeis, seja em termos das condições de funcionamento das diversas economias ao longo de um período tão vasto. Não obstante, o “médio B” é “superior”; vale dizer, há uma dimensão indubitavelmente verdadeira na assertiva de que o desempenho econômico do Brasil foi extremamente elevado e, senão o maior, sem dúvida um dos maiores do mundo. Entre 1932 e 1980, a o PIB brasileiro cresceu estrondosos 2399,4%; o que implica uma taxa média de crescimento anual de 6,71%. Em nenhum ano deste vasto período o PIB do país decresceu. Ainda mais importante: quem “puxou” o crescimento da economia brasileira nesse período foi a Indústria, que cresceu 5.188,9%, a uma taxa média anual de 8,39% nos 49 anos entre 1932 e 1980.

Quando achei que a “consulta” estava dada e o papo-cabeça havia acabado, o amigão lasca mais uma pergunta: – Sei que o nosso desempenho após 1980 piorou bastante. Mas, por vezes, me confundo com tantos elogios e críticas às gestões econômicas desse período. Quão “mal” estamos indo? … Pediu, levou. Vamos aos dados.

Entre 1981 e 2024 temos 43 anos. Nesse período, a economia brasileira cresceu 255,57%, o que implica uma taxa média anual de 2,21%. Hoje, quando crescemos a metade da taxa média anual do período 1932-80 (3,35%) soltamos estrepitosos foguetes.

Ao contrário do primeiro período (sem nenhum ano de variação negativa), o PIB brasileiro decresceu em 9 dos últimos 43 anos. Mais: ao contrário do período anterior, o setor que menos cresceu (e que ajudou a derrubar a performance) foi a indústria, que se expandiu apenas 104,85% em 43 anos; taxa média anual de 1,67%. Mais (e pior) ainda! Não há uma única indústria, mas quatro: 1) Ind. de Transformação; 2) Ind. Extrativa Mineral; 3) Serviços Industriais (energia, comunicações, saneamento etc.); e 4) Ind. da Construção Civil. O crescimento da Indústria Total nesse largo período deve-se, na verdade, aos três últimos segmentos industriais. Eles cresceram acima do PIB: 272,49% em 43 anos (taxa média anual de 3,11%). Já a Indústria de Transformação cresceu parcos 43,99%; com uma taxa média anual de 0,89%. Como, nesses 43 anos, a agropecuária cresceu 369,62% (taxa média anual de 3,66%) e os serviços cresceram 327,17% (taxa média anual de 3,43%) chegamos a uma conclusão (NADA) surpreendente: quem puxou para baixo o crescimento do PIB nacional foi a …. Indústria de Transformação. Ela cumpriu, nos últimos 43 anos o papel oposto que cumpriu nos nossos 49 anos dourados. Antes, ela nos propelia; agora nos puxa prá baixo!

Em “súmula”: para além das enormes (e óbvias) diferenças conjunturais ao longo destes dois vastos períodos – 1932-1980 x 1981-2024 -, estão postas determinações estruturais que os diferenciam radicalmente. Não será preciso esclarecer a ninguém as diferenças político-ideológicas que separam os governos (e suas políticas de desenvolvimento) de Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. Como não será preciso esclarecer as diferenças de projeto de Economia & Sociedade de João Figueiredo, José Sarney, Collor de Mello, FHC, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Não obstante, a dinâmica econômica efetiva de cada um dos dois períodos é marcada por uma unidade inquestionável. Por mais surpreendente que possa parecer.

2)Amigo é coisa prá se guardar!

Adoro Economia e adoro conservar sobre Economia. E amo amigos curiosos e inteligentes. Mas, por vezes, eles superestimam minha saberetice, assim como minha capacidade de explicar, didaticamente, temas mais do que complexos: escabrosos! E me fazem perguntas que vô-ti-contá-prá-ti! … Foi o que aconteceu! O amigão lascou mais uma: – Então me explica o que mudou e porque estamos neste reme-reme, depois de termos sido (senão “a”, pelo menos) uma das economias mais dinâmicas do mundo!

Não há o que não haja! Vinguei-me socraticamente e lhe devolvi a questão (maiêutica é tudibão!) – Diga-me qual é a sua hipótese. E ele respondeu: – Acho que falta “cultura de inovação” à burguesia brasileira. Ela é rentista, oportunista, curto-prazista, não tem preocupação com a sociedade e prefere a especulação ao investimento produtivo!

Ai se eu não amasse profundamente os meus amigos e se eu não fosse essa água de poço, esse verdadeiro Buda, essa reencarnação de Sidarta Gutama! Inspirei, respirei e não pirei. Pelo contrário: incorporei o espírito do mestre Shao-Lin de David Carradine. E perguntei: Querido Gafanhoto, a burguesia brasileira sempre teve essas características? Ou ela era inovadora, produtivista e preocupada com a sociedade entre 1932 e 1980, quando o produto industrial crescia a 8,4% a.a.? Teria sido ela assolada por um surto psicótico a partir de 1981? E, se me permites mais uma pergunta, querido Gafanhoto, quando caracterizas a burguesia brasileira como rentista, oportunista e sem “cultura de inovação” estás tomando por referência e medida a burguesia de qual nação? Onde é o paraíso em que viceja esta burguesia preocupada com a sociedade, avessa ao rentismo e à especulação, compulsivamente inovadora e produtivista?

Não é só o Sangue de Cristo que tem poder. A maiêutica também tem. Meu amigo calou-se, pensativo. E me respondeu que iria refletir sobre minhas perguntas. Redargui que, enquanto ele refletia, eu iria colocar minhas hipóteses de respostas num texto. Então, senta-te aí, Gafanhoto, que lá vai textão! (Mas não desista antes do tempo, pliss! Me deu muito trabalho! Em prol do amigo, vou dividir o textão em duas partes.)

Comecemos (como convém) pelo início. Longe de mim pretender que a burguesia (e o capitalismo) brasileira(o) seja como a de qualquer outro país. Nada mais avesso ao referencial da Economia Política Crítica do que os modelinhos universalistas baseados em abstrações simplórias (do tipo “homem econômico racional”) e no desconhecimento dos componentes sociais, culturais e antropológicos da dinâmica econômica de cada nação. Esse tipo de abstração-simplificadora é, sem sombra de dúvida, o maior equívoco e vício da “Ciência Econômica”. Um equívoco vicioso que transcende (e muito!) aos escaninhos do neoclassicismo e dos economistas liberais “puro sangue”. Este mal viceja – e muito – em searas que se querem heterodoxas. A máxima dos defensores da Modern Monetary Theory (MMT) de que não existe limite para a emissão monetária governamental em “qualquer país de moeda soberana” é a evidência maior do caráter endêmico (e pandêmico) dessa doença que assola os economistas. Não parece lhes ocorrer que, uma queda da taxa de juros no Brasil – ao contrário dos EUA – pode induzir a uma fuga para o dólar e a uma desvalorização do real. Fuga impossível nos EUA; por motivos que (creio) são óbvios. O que implica dizer: não, nem toda a “moeda soberana” é igual. Dólar, Euro, RMB, Real e Peso Argentino são, todas, moedas soberanas. Mas são muito diferentes. Capisce?

Posto isto, voltemos à questão das particularidades da nossa burguesia. Sim, ela tem inúmeras particularidades e peculiaridades. Um país de passado (ainda presente) escravista, latifundiário e colonial não é um país qualquer. E as classes sociais que aqui vicejam não vicejam como alhures. Sem dúvida, a burguesia brasileira é particularmente “meritocrática”. Sua falta de sensibilidade social e de empatia com a classe trabalhadora é capaz de dar inveja no brâmane hindu ortodoxo mais avesso a qualquer contato visual com párias intocáveis. Seu liberalismo também é exemplar; único no mundo. Ela tem tanto ódio do “bolsa-família”, quanto tem adoração por subsídios. Ela se escandaliza com o déficit da previdência, mas acha normal que os juros da dívida pública correspondam a três vezes este valor. Ela se revolta com o exorbitante orçamento da saúde (que sustenta o SUS), mas acha normal que o orçamento das Forças Armadas corresponda à metade desse valor. Ela critica o PRONAF e o responsabiliza pelo fato do Plano Safra para a agricultura empresarial (igualmente subsidiado) ficar aquém das “necessidades”. Sim, não há dúvida: a burguesia brasileira – e seus fiéis vassalos na mídia tradicional e na “ciência econômica” – são particularmente disgusting. O Brasil é um caso para Freud!

Mas não há só particularidades. Há, sim, dialeticamente, padrões de comportamento, posturas diante da sociedade e “decisões” de investimento e aplicação financeira que são “da ordem do capitalismo”. Quando Marx dizia que o empresário-capitalista é um “servo do capital”, e não um sujeito livre a autônomo (como ele próprio e a ideologia dominante pretende), ele não estava “tergiversando”. Nem precisava olhar muito longe. Bastava observar as decisões tomadas por seu amigo e companheiro Engels. Alguém pode duvidar que Engels defendesse e lutasse pelo fim da ordem burguesa e pelo controle operário dos meios de produção? … Creio que não. Alguém pode duvidar de que ele pagasse salários similares àqueles pagos por seus concorrentes, que os assalariados de sua firma trabalhassem o mesmo número de horas que nas demais ou que os produtos de sua firma fossem vendidos a preços condizentes com o grau de monopólio da firma e, portanto, capazes de garantir a maximização da taxa de sua taxa de rentabilidade? … Também, creio que não. Na luta política, Engels era um revolucionário. Enquanto empresário, era um agente (ou seria melhor dizer: um empregado?) do Capital.

Neste plano particular – da existência de uma lógica geral de valorização que se sobrepõe à vontade particular e às culturas nacionais – Keynes e Marx são irmão siameses. Segundo Keynes, o empresário-capitalista busca, acima de tudo, a valorização do capital. E o investimento produtivo é mais arriscado (ou, para ser rigoroso: sua rentabilidade comporta um grau de incerteza maior) que a inversão financeira. De sorte que a especulação é a opção que tende a ser privilegiada. Seja o empresário-capitalista um quaker da Nova Inglaterra, seja ele um “meritocrata” do agronegócio brasileiro.

Weber e Schumpeter parecem divergir dos dois grandes mestres supracitados. Mas as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam. Weber afirma que, em sua origem, a ética capitalista está baseada num princípio a-racional de trabalho e poupança. Mas também afirma que a própria ordem capitalista solapa, gradativamente, esse princípio, alimentando o oportunismo, o rentismo e o privilegiamento do ganho a qualquer custo. Em seu primeiro grande trabalho – a Teoria do Desenvolvimento Econômico – Schumpeter diferencia o capitalista do empresário. E caracteriza este último como “o agente da inovação”, um sujeito que não é, nem capitalista, nem trabalhador. Ele é uma espécie de visionário, de sonhador, que almeja não apenas o lucro, mas a conquista de um poder particular na sociedade, um poder privado sobre pessoas, sejam eles seus empregados, seus concorrentes (menos competentes) e sobre os agentes públicos, que passam a respeitá-lo e a ouvi-lo antes de tomarem decisões de política econômica. O empresário de Schumpeter é um misto do self made man norte-americano e senhor feudal do medievo europeu. E, sem dúvida, ele é um “personagem teórico” de uma cultura peculiar. Mas, tal como Weber, Schumpeter o abandona gradativamente. Em seu (igualmente canônico) Capitalismo, Socialismo e Democracia, Schumpeter substitui o “empresário” pela “firma oligopolista”. E a firma schumpeteriana tem interesses e projetos distintos do seu empresário ideal. Ela é burocrática (no sentido de Weber e de Berle & Means) e busca maximizar os ganhos das inovações pregressas, adiando a introdução de “novas inovações” com vista a ganhar mais … dinheiro.

Em suma: para além das diferenças, há algo que une as economias capitalistas e os grandes pensadores. Marx, Keynes, Weber e Schumpeter convergem e concluem que – a despeito do que pretendem os críticos mais acerbos das (equivocadas) generalizações e abstrações dos economicistas – o capitalismo comporta, sim, muitos elementos de uniformidade. Mas agregam – contra os liberais que anulam as diferenças e naturalizam a Economia – que essa “uniformidade” não tem nada de “benéfica à sociedade”. Deixados por si mesmos, os “diversos” capitalismos levam ao mesmo lugar: à concentração de renda, à concentração da propriedade, ao rentismo, à especulação e à depressão do investimento produtivo. E se há inovação, ela só é introduzida quando rende mais do que explorar a estrutura produtiva já instalada: vale dizer, quando a negação do trabalho compensa as novas inversões. Quando a produtividade do trabalho cresce muito e as demissões da mão-de-obra “pagam a pena”. …. Infelizmente, para a maioria dos economistas, no Brasil a burguesia é atrasada e ainda emprega gente demais. Pois é.

3) Os dois Brasis e suas duas Estrujunturas

A questão é, que para além da dialética de universalidade do capitalismo e particularidade histórica, um único e mesmo país – o Brasil – viveu (e vive) duas “estrujunturas” radicalmente distintas. O que significa dizer que, para além daquilo que nos é peculiar, e para além daquilo que nos é universal, dois padrões de reprodução econômica profundamente distintos se impuseram sobre a terra pátria. E estes dois padrões distintos não podem ser explicados, nem a partir das nossas peculiaridades, nem a partir da nossa universalidade. Só a HISTÓRIA pode nos (auto)explicar. Vamos a ela, pois. Começando pela dimensão mais simples: a interna.

Entre 1932 e 1980, esse país – hoje, “doente” – foi (senão “o”, pelo menos) um dos que mais cresceu em todo o mundo. E o fez puxado pela Indústria em geral e pela Indústria de Transformação em particular. Depois, passou a andar devagar, quase parando. Justamente no período da Abertura (lenta, gradual e, ainda, restrita) e dos governos democráticos. No período dos governos do Príncipe dos Sociólogos e do PT. Por quê? Um elemento fundamental (ainda que não seja o principal!) da resposta encontra-se justamente na transição política dos anos 80. …

Ops! Calma aí com avaliações precipitadas. … Não estou pretendendo que a “Democracia” e a “Constituição Cidadã” expliquem a nossa nova “conjuntura estrutural”, a nossa nova “estrujuntura”. Estou apenas dizendo que esta mudança é parte do importante do quadro atual. Senão vejamos.

De uma perspectiva apressada (mas não totalmente equivocada!), a principal diferença “interna” entre os dois períodos encontra-se no fato de que, entre 1932 e 1980, o Brasil esteve, durante 30 anos, em regimes de exceção (1932-1945 e 1964-1980), com um curto interregno democrático entre 1945-1963. É preciso olhar esta dimensão de frente, pois é ela que dá a base “racional” para um grave problema político nacional: o saudosismo da ditadura. A verdade é que o acelerado crescimento deste longo período não tem relação com o poder “autocrático” de Getúlio (no período 1932-1945) ou dos Presidentes nomeados pelas Forças Armadas (entre 1964 e 1980). O crescimento da economia brasileira nos 18 anos de “normalidade democrática”, entre 1946 e 1963, foi de 342,38% (média anual de 7,08%); muito similar ao crescimento do país nos 17 anos “áureos” da Ditadura Militar: 357,45% (média anual de 7,78%). E isto apesar da instabilidade política do primeiro período, marcado por inúmeras tentativas de golpe nos governos Vargas e JK; finalmente concretizadas no governo Jango. O que há em comum entre esses dois períodos, então?

O poder do Poder Executivo. A despeito de toda a instabilidade política entre 1945 e 1963, o Poder Executivo contava com um conjunto de instrumentos de gestão com os quais ele não conta mais. Desde logo, o órgão que fazia as vezes de Banco Central no período – a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) – era um órgão do Banco do Brasil, sob gestão direta do Banco do Brasil e, por extensão, da Presidência da República. E era a SUMOC que definia a taxa de juros básica, a política de emissão monetária e a estrutura das taxas de câmbio, que eram diferenciadas em função da prioridade das importações. A taxa de câmbio para importação de bens supérfluos e de bens que contavam com produção similar nacionalmente era mais elevada do que a taxa de câmbio para importação de produtos essenciais (bens de capital, petróleo, trigo, etc.). Igualmente bem, a SUMOC diferenciava a taxa de câmbio para exportadores: o câmbio das exportações de café era menor que o câmbio das exportações de bens industriais, por exemplo. O que implicava numa taxação extra sobre o agronegócio e num estímulo à indústria. Além disso, a política monetária e creditícia – sob responsabilidade da SUMOC – era administrada diretamente pelo Poder Executivo, solidarizando-a com a política fiscal e com a política de desenvolvimento e de desenvolvimento industrial.

Mais: desde Volta Redonda que o Governo Federal passou a controlar o preço do aço, um dos mais importantes insumos industriais. Com a constituição da Petrobrás e (após a CHESF), da Eletrobrás, o Governo Federal passou a controlar os preços dos derivados do petróleo e da Energia Elétrica. Em suma: ao fim do segundo governo Vargas, o Executivo controlava a taxa de juros, a taxa de câmbio, a taxa de salário (via salário-mínimo), as alíquotas de impostos, a exposição competitiva dos diversos setores (via câmbio e tarifas alfandegárias), a disponibilidade de financiamento para os diversos setores (via BB e BNDES), e o preço dos principais insumos industriais, do aço aos derivados de petróleo, passando pela energia elétrica e motores de combustão interna. “Só isso”. Seu “suicidamento” é indissociável desse “excessivo” controle. E ele garantiu ao Brasil mais 9 anos e meio de democracia com Estado forte.

O golpe de 1964 não veio para alterar ou subverter o poder do Estado. Ele veio para colocar este poder “excessivo” em mão “confiáveis”. E ao longo de 17 anos, o Leviatã não parou de crescer e de se impor sobre a economia e a sociedade. Se a burguesia nacional e/ou a internacional ocupava os setores abertos ao ingresso de forma “adequada”, o Estado apoiava a “iniciativa privada” de forma incisiva; com subsídios, crédito preferencial, isenções e tarifas alfandegárias elevadas para impedir a concorrência externa. Mas se, eventualmente, as expectativas não eram contempladas, o Leviatã ingressava nas searas e terrenos ociosos com uma sanha e velocidade desconhecida pelas lideranças mais radicais do Movimento dos Sem Terra. … A diferença é que o Estado ocupava o espaço para o “bem de todos”. E, oportunamente, retornaria os frutos de sua “invasão” a quem de direito.

A democratização – lenta, gradual e ainda restrita – cumpriu esse papel. Na gestão Figueiredo-Delfim da primeira metade dos anos 80, a dívida externa privada foi tornada dívida pública. Com a benção e o aval do FMI. Esta estratégia persistiu nos anos Sarney. Collor deu início ao programa de abertura externa e desestatização. Itamar continuou; mas despacito. Fernando Henrique Cardoso veio com tudo e privatizou as joias da coroa do patrimônio público, construído no interregno Getúlio-Geisel, a preços camaradíssimas!

Simultaneamente, a Constituição Cidadã trouxe duas contribuições importantes. Em primeiro lugar – após anos de subserviência do Parlamento ao Executivo -, a nova Constituição outorgou poderes expressivos ao Congresso Nacional. Em especial no que diz respeito ao controle orçamentário. Quero crer que a intenção dos constituintes era a melhor possível. Mas, objetivamente, são esses poderes que, hoje, se expressam em desvios nada republicanos, como as “emendas secretas” e o persistente adiamento da votação da proposta orçamentária do Executivo, que impõe pesadas amarras à ação estatal. Além disso, a Cidadã determinou que o Presidente do Banco Central seria indicado pelo Presidente da República, mas teria que ser aprovado pelo Senado. Ouvida a sociedade, claro. Sociedade, como se sabe, é o outro nome que se dá à Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) em certos ambientes políticos de Brasília.

Ufa!

Em 2003 o espólio público pode ser entregue aos perigosos petistas devidamente desdentado e desidratado. Com um Banco Central (na prática, já) autônomo, sem Siderbrás, sem Telebrás, sem Vale do Rio Doce, sem Light, sem Gerasul, sem várias subsidiárias da Petrobrás e com os Estados Federados sem os seus bancos públicos. Faltou tempo para privatizar o BB, a CEF, o BNDES e o núcleo da Petrobrás. Mas, enfim, havia a expectativa (que acabou sendo frustrada!) de que os incompetentes petralhas não pudesse governar eficientemente sem os instrumentos que se mostraram tão funcionais ao planejamento público durante décadas.

4) O Plano Real e o componente externo

Mas nem só de desidratação do Executivo vive a crise do Planejamento Brasileiro. Na verdade, do nosso ponto de vista, esta é apenas uma das pernas da nossa problemática “estrutujuntura” do período 1980-2024. Há um outro elemento que é, pelo menos, tão importante quanto: a política nacional de combate à inflação instituída desde 1994 e ainda vigente (por mais que os economistas do mainstream pretendam que a política de “metas de inflação” seja radicalmente distinta da política de câmbio fixo dos primeiros quatro anos do Rea! Haja formalismo!). Esta política está ancorada na exposição competitiva da produção nacional tradable (vale dizer: agrícola, extrativa mineral e da indústria de transformação) à concorrência externa via câmbio. Quando a inflação coloca a cabeça de fora, o Banco Central (autônomo desde 1988; independente desde Bolsonaro) eleva a taxa de juros, atrai dólares do exterior e induz à valorização do real. A consequência é a depressão do preço dos importados. Em especial, dos bens da Indústria de Transformação.

Tal como anunciamos anteriormente, este texto foi programado para ter duas partes. Vamos deixar essa segunda parte para a próxima publicação. Mas não poderíamos deixar de dar uma breve “palinha” sobre o que virá.

Entre 1932 e 1964, houve diversos governos, com inflexões políticas distintas. Dutra e Jânio intentaram introduzir reformas liberalizantes. E, até certo ponto, o fizeram e foram bem-sucedidos. JK impôs inflexões no projeto de desenvolvimento que Vargas havia construído com apoio da CEPAL e do BNDES, ao longo de seu mandato anterior. E essas inflexões não eram menores: elas envolviam um novo padrão de abertura para o capital internacional, com consequências importantes para a dinâmica econômica e política nacional nos anos seguintes.

Não obstante, a despeito de todas as inflexões e mudanças, havia algo que era absolutamente nítido e claro para todos os políticos e empresários do país no período 1930-1980: houve, há e continuará havendo escassez de divisas. Vale dizer: o dólar foi, é e continuará sendo caro. E, portanto, não houve, não há e não haverá divisas suficientes para dar conta de todas as necessidades. Não há como importar máquinas, insumos industriais e agrícolas, trigo, petróleo e – ainda por cima – importar tecidos, vestuário, alimentos, móveis, eletrodomésticos, bebidas, equipamentos mais simples (martelos, tornos, enxadas, arados, etc.), ferro, aço, etc. …. Logo, é possível ingressar e permanecer, com grande segurança, nos setores de mais fácil substituição de importação sem que concorrentes externos nos confrontem.

Esta – que era a única certeza empresarial num país política e institucionalmente instável – se esboroou nas duas últimas décadas do século XX. Por quê? …. Teu nome é China! O crescimento extraordinário desse país alavancou a demanda por commodities agrícolas e minerais no mundo todo. E o Brasil passou a contar com o que nunca teve: reservas. E passou a poder usar o câmbio para controlar a inflação. A partir de então, a única certeza que se tinha sobre o futuro se esboroou. A partir dos anos 80-90, entramos, definitivamente, na Era da Incerteza. … Capisce? … Não? Explicamos no próximo texto.

 

 

*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

Ilustração de capa: Vandré Kramer/Gazeta do Povo com DALL-E

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