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Terror em Porto Alegre: da violência da ficção ao concreto
Terror em Porto Alegre: da violência da ficção ao concreto
POR FABIO DAL MOLIN*
“Existe uma criatura perfeitamente inofensiva, quando ela passa diante dos seus olhos, você mal a percebe e imediatamente volta a esquecê-la. Mas assim que ela,de algum modo, invisivelmente chega aos seus ouvidos, começa a se expandir, eclode e conhecem-se os casos em que ela penetrou no cérebro e floresceu ali devastadoramente, como os pneumococos em cães que penetram através do focinho… essa criatura é o seu Próximo”.
Rainer Maria Rilke
Cena 1
Uma mulher para em um antigo posto de gasolina na beira da estrada e chama pelo frentista, que repentinamente surge expulsando um sujeito vestido de palhaço, que havia espalhado fezes pelo banheiro. É noite de Halloween e o palhaço veste uma fantasia simples e pobre, e carrega um saco preto de lixo. Após abastecer a mulher retorna ao posto e depara-se com o palhaço serrando a cabeça do frentista. Há sangue por todo lado.
Cena 2
Sequência do filme anterior
O mesmo palhaço da cena anterior captura duas mulheres que são amigas e as conhece em uma pizzaria na noite de Halloween, onde fora expulso pelo atendente por ter espalhado fezes pelo banheiro. Uma delas é amarrada a uma cadeira. Há algo pendurado com um lençol cobrindo. O palhaço remove o lençol e revela a amiga nua pendurada de cabeça para baixo. Diante dos olhos da outra, usa uma serra de açougueiro para serrar a mulher viva ao meio, com muito sangue. Na cena seguinte o assassino tira uma “selfie” com o corpo dividido
Cena 3
O cinema Baltimore foi construído em 1931 em art deco e possuía uma imensa tela curva, e sua capacidade era para 2000 pessoas, e possuía um salão de baile, que anos depois foi transformada em outro cinema, o Bristol, Nos anos 70 foi feita uma divisão em mais salas. Os cinemas eram localizados na avenida Oswaldo Aranha, local de intensa vida noturna e centro cultural de Porto Alegre, frequentado por músicos, poetas, cineastas e pela intelectualidade na época em que não existiam Shopping Centers e Blockbusters e os cinemas de Porto Alegre eram todos de calçada e baratos. No Baltimore vi grandes filmes como “The Doors”, “Adeus minha concubina” e “O Jardim Secreto”. O cinema fechou em 2000 e foi demolido em 2003. Na segunda metade da década de 2010 foi construído um imenso prédio branco e envidraçado da empresa Melnick Even,
Cena 4
Nos anos 90 o Coentro Comercial Nova Olaria foi construído no Bairro Cidade Baixa, outro polo de cultura, intelectualidade e vida noturna de Porto Alegre, e dentro dele funcionava o Cine Guion, cuja proposta era exibir filmes fora do circuito de blockbusters. Nos sábados meu programa preferido era ir ao cinema, depois comprar a trilha sonora na lojinha bonita com cheiro de café e ir tomar um chopp, Ali assisti a estreia de Pulp Ficcion, Cinema Paradiso ( um dia fui na loja e a trilha tocava a todo volume e me fez chorar), incontáveis filmes do Almodovar… Além do cinema e dos bares o Nova Olaria era um ponto de encontro da população LGBTQI A+APN
Hoje tudo foi demolido e foram construídas três imensas torres da empresa Goldstein, totalmente incompatíveis com as casas e prédios antigos do Bairro Cidade Baixa,
A pergunta que eu faço para o-a leitor-a parece estranha, mas é um importante analisador de nossa esfera pública atual: quais cenas são mais violentas, 1 e 2 e 3 e 4?
E qual a diferença entre elas?
As duas primeiras são ficção pertencem ao cinema de terror , e são da sequència de filmes “Terrifier” que me foram indicadas pelo algoritmo do Facebook, cuja chamada dizia que a terceira parte continha cenas que fizeram os espectadores sair do cinema com náusea. Como possuo uma vasta pesquisa sobre psicanálise em cinema e ultraviolência e recentemente publiquei um artigo sobre o filme mais violento de todos os tempos, resolvi conferir.
Na plataforma Amazon há três filmes. O primeiro é de 2013 e possui todos os elementos estruturais dos filmes de terror antigos e contemporâneos: palhaço assassino, fita de vídeo noite de halloween, muita gosma vermelha , escatologia, gritos, postos de gasolina vazios e carros que não pegam As duas sequências mantém o ritmo, e é no segundo filme que a mulher é serrada ao meio em uma cena aparentemente brutal porém afinadíssima semioticamente, pois contém um dos elementos estruturais do cinema de horror: a ideia de que o elemento sexual amplifica a náusea e a repulsa do espectador. O fato de o assassino desnudar a vítima e iniciar seu suplício pelos órgãos genitais atinge camadas onde as pulsões são indiferenciadas e sexo e violência extrema estão amalgamados.
Então saímos do impacto violento e visual e passamos a pensar no cineasta e sua equipe querendo nos divertir e nos transmitir algo. Entramos no estúdio, nas locações e no trabalho que dá produzir a magia da ilusão. As cenas mais violentas de “Terrifier’ estão dentro de uma fita de VHS, ou seja, são um metafilme, o filme dentro do filme. O cineasta lança mão desse recurso e também do exagero do sangue e da escatologia para dialogar com o espectador e dizer “mesmo que você tenha nojo, morra de medo e queira fugir do cinema, isso é filme”. Isso também se explicita no personagem principal, o palhaço pobre e rejeitado que se chama “Art”, que é caracterizado como um Clown, ridículo, infantil, trapalhão, que oscila entre a brutalidade e a doçura, além de flertar com o realismo fantástico, pois é capaz de ressuscitar e sabe que está dentro de um filme. O nome “Art” jamais é pronunciado no filme, não o sabemos até ler os créditos, assim como a própria arte é algo que irrompe sentidos, provoca impacto, e sua racionalização é a posteriori, na palavra do criador.
A violência explícita é apresentada no cinema como Zizek (2014) chama de violência subjetiva, que escandaliza o espectador e o confronta com outras categorias que o filósofo mesmo chama de violência simbólica ou sistêmica, pois denunciam que o cinema é apenas arte, ficção e roteiro, enquanto os extermínios e atrocidades de uma guerra de genocídio com interesses econômicos e políticos constituem a própria e assombrosa realidade. Em “Violência” (2014) o autor esloveno lança uma afirmação polêmica “Gandhi foi mais violento que Hitler” e Hitler não foi suficientemente violento, fazendo uma distinção importantíssima para este estudo: violência é diferente de terror sanguinário.
Para Zizek, : a violência subjetiva é somente a “parte mais visível de um triunvirato que inclui também dois tipos objetivos de violência”, uma violência que surge como um semblante, uma imagem aterrorizante pré simbolizada, como quando experimentamos uma cena de ultraviolência no cinema.. Impressa no muro estruturante da linguagem humana, no grande Outro do social, há uma violência “simbólica” encarnada nos sujeitos e seus enunciados e essa violência não está em ação apenas nos casos explícitos de provocação e de relações de dominação social que nossas formas de discursividades corriqueiras reproduzem: há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence ao arcabouço das coordenadas simbólicas enclausuradas à imposição de um certo universo de sentido.No mundo do imperceptível, naquilo que o personagem Dupin do conto “A carta roubada” de Poe atenta quando refere-se a brincadeira de buscar palavras em um mapa e não encontrá-las por estarem “muito a vista” que é o que chamamos de violência “sistêmica”, que consiste nas consequências hediondas do funcionamento mecânico de nossos sistemas econômico e político.
“A questão é que as violências subjetiva e objetiva não podem ser percebidas do mesmo ponto de vista: a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas “normal” e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a esse estado “normal” de coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como subjetivamente violento. Assim, a violência sistêmica é de certo modo algo como a célebre “matéria escura” da física, a contrapartida de uma violência subjetiva (demasiado) visível. Pode ser invisível, mas é preciso levá-la em consideração se quisermos elucidar o que parecerá de outra forma explosões “irracionais” de violência subjetiva” Zizek, 2014 p.17.
A violência sanguinária pode aumentar ou diminuir a “olhos vistos” ou de acordo com a cobertura jornalística conveniente, a violência política, econômica e simbólica é mais passível ao esfumaçamento ideológico da negação ou denegação.
Isso nos leva à passagem das cenas 1 e 2, que representam a violência NO cinema, onde diante de nossos olhos acontece o horror, mas por trás das câmeras tudo é “Art” para as cenas 3 e 4 , nas quais a violência é cometida contra os cinemas, ou contra a cidade.
Qualquer pessoa que passar diante das imensas torres da Goldstein na Cidade Baixa dificilmente sentirá náusea ou horror, ainda que os trabalhadores da construção civil sejam mal pagos e com contratos precários, ou que a empresa seja uma das maiores doadoras da campanha de Sebastião Melo, cuja negligência comprovada permitiu que boa parte da população de Porto Alegre ficasse sem água e perdesse tudo nas enchentes de maio de 2024. Também é difícil sentir medo da permissividade da prefeitura em autorizar a derrubada de árvores e o aumento do índice construtivo, que leva ao aquecimento local e global, ao maior consumo de energia pelo uso de ar condicionado e a saturação do sistema de esgotos e do trânsito, afinal, onde havia um estacionamento, um cinema e algumas casas agora há três torres de 13 andares. E isso está acontecendo por toda a cidade.
Diante das telas do cinema é insuportável presenciar uma mulher ser serrada ao meio, ainda que saibamos que é uma boneca de silicone com muita meleca que simula sangue, mas o fato de 700 mil brasileiros e brasileiras terem morrido de COVID por omissão direta do Governo Bolsonaro, principal apoiador de Melo vira só um número, Assim como as centenas de gaúchos mortos na enchente, e os milhões que foram obrigados a sair de seus lares ou perderam seu sustento, agora são passado. É também violenta a imposição do concreto e dos prédios na cidade sem o consentimento de seus moradores, sem pedir licença, através de conchavos políticos e lobby.
O filme “Terrifier” e suas sequências tem início, meio e fim, e poderá ser visto e revisto nos cinemas e plataformas por muitos anos. As vítimas de Art reviverão a cada ciclo, afinal, nunca morreram. O horror nauseante de uma cena dura poucos segundos e é intercalado com a certeza de que tudo é falso.
O terror do mundo real vai durar para sempre.
Mas 70 por cento dos meus conterrâneos são indiferentes.
*Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS.
Foto de capa: JOÃO MATTOS/JC
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