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A desigualdade nos Estados Unidos

A desigualdade nos Estados Unidos

Internacional por RED
22/11/2024 16:00 • Atualizado em 22/11/2024 19:43
A desigualdade nos Estados Unidos

Por WAGNER SOUSA*

Uma das características das mudanças engendradas na economia política dos países ricos, desde o início da década de 1980, tem sido a concentração de renda. Do “consenso keynesiano”, que vigorou do pós-guerra ao fim dos anos 1970, (o republicano Richard Nixon disse, certo momento, “somos todos keynesianos”), que tinha no investimento público e adição dos ganhos de produtividade aos salários, duas de suas principais “âncoras”, a economia passou a ser gerida tendo como premissas de sua eficiência a redução do papel do Estado, e portanto do investimento público, e a “financeirização” da gestão da riqueza, na qual os lucros de curto prazo passaram a ditar a estratégia empresarial. Assim, a contenção de gastos das empresas, com demissões e redução de custos salariais, está, desde então, no cerne destes planos.

Na virada dos anos 1970 para a década de 1980 viu-se aumento brutal da taxa de juros pelo Federal Reserve, então dirigido por Paul Volcker, no intuito de domar a inflação e reafirmar o papel do dólar como moeda reserva mundial e do lugar central do sistema financeiro dos EUA no mundo. A “revolução conservadora” de Ronald Reagan, no entanto, tirou a economia norte-americana da recessão com um “keynesianismo militar”, resultado de forte expansão dos gastos de defesa. Este investimento na capacidade bélica cumpriu a função de dar sustentação necessária para a recuperação da economia e debilitar a economia da URSS provocando o colapso de seu regime político, um objetivo geopolítico, portanto. Reafirmação da supremacia da moeda e das armas dos EUA em nível global compunham o processo muito bem descrito no artigo “A retomada da hegemonia norte-americana”, obra da saudosa professora Maria da Conceição Tavares.

A vitória norte-americana na Guerra Fria, com o fim da URSS e do bloco socialista e a reunificação da Alemanha fez com que a “hegemonia unipolar” dos EUA se estabelecesse a partir dos anos 1990 e com esta a consolidação do chamado “neoliberalismo” tendo como seus principais objetivos as liberalizaçôes comercial e financeira, as privatizações e desregulamentações das normas vistas como “empecilhos” ao investimento privado. A economia das “bolhas de ativos” com inflação dos valores de ações (a “bolha pontocom” dos anos 1990) e imóveis (“bolha imobiliária” dos anos 2000) substituiu a dinâmica anterior da economia com crescimento contínuo dos salários reais e “aburguesamento” da classe trabalhadora e sua integração à classe média. O proletariado norte-americano viu seus empregos industriais escassearem ao se deslocarem para o exterior, pela busca da indústria por mão-de-obra mais barata. Novos empregos surgiram na “economia de serviços”, porém, na maioria das vezes, com remuneração pior, condições de trabalho precarizadas, em situações que variam das jornadas extenuantes aos “part time jobs”, que fazem com que muitos trabalhadores trabalhem menos horas do que gostariam e ganhem, em consequência, salários menores. O trabalho nos Estados Unidos se tornou, em grande medida, mais precário, instável e com remuneração menor.

O filósofo britânico John Gray em “Falso Amanhecer – os equívocos do capitalismo global” descreveu a realidade do capitalismo norte-americano de fins dos anos 1990: “É interessante notar que essas ansiedades não são um efeito colateral da estagnação econômica. Ao contrário. Durante os últimos quinze anos, a economia norte-americana manteve-se em uma expansão quase contínua. A produtividade e a riqueza nacional cresceram firmemente. A reestruturação da indústria americana deu-lhe condições de recuperar mercados que se pensava estarem definitivamente perdidos para o Japão. Como na Inglaterra de meados da era vitoriana, a liberalização dos mercados na América do final do século 20 construiu um espetacular- e não reproduzível – boom econômico. Ao mesmo tempo, a renda da maioria dos americanos estagnou. Mesmo para aqueles cujas rendas aumentaram, o risco econômico pessoal cresceu visivelmente. A maioria dos americanos tem pavor de um distúrbio econômico do qual – suspeitam – nunca mais se recuperarão. Poucos pensam agora em termos de uma ocupação vitalícia. Muitos preveem, não sem razão, que suas rendas cairão no futuro. Estas, evidentemente, não são circunstâncias que alimentam uma cultura de satisfação (GRAY, 1998, p. 146)”. Também analisando esta problemática, o economista francês Thomas Piketty, em “O Capital no século XXI”, obra de 2013 que teve grande impacto no debate global sobre a crescente desigualdade, menciona, sobre a concentração de riqueza no extrato do 1% mais rico da população: “Nos anos 1970, a parcela do centésimo superior na renda nacional era muito próxima nos vários países. Ela estava entre 6 e 8% nos quatro países anglo-saxões estudados, e com os Estados Unidos não era diferente, os americanos eram até ligeiramente ultrapassados pelo Canadá, que atingia 9% (…) Trinta anos depois, no começo dos anos 2010 a situação é totalmente diferente. A parcela do centésimo superior atingiu quase 20% da renda nacional nos Estados Unidos (…).” (PIKETTY, 2013, p. 307). Piketty explica que nos países anglo-saxões a concentração de renda foi mais pronunciada do que na Europa continental e no Japão, onde também ocorreu. No Reino Unido e no Canadá o centésimo superior passou a ter entre 14-15% da renda nacional e na Austrália entre 9-10%. Japão e França passaram de 7% para 9%, Suécia, de 4% para 7% e Alemanha de 9% para 11%. (PIKETTY, 2013, p. 308). Em todo o mundo rico houve concentração de renda no topo da pirâmide social, mas foi nos EUA onde aconteceu com mais intensidade.

Todo esse processo de polarização de renda e, como consequência, polarização social, visível na paisagem de muitas partes do interior dos EUA, com suas fábricas abandonadas e cidades outrora pujantes, decadentes, alimentou forte ressentimento social daqueles que “ficaram para trás”. A candidatura de Donald Trump, desde quando despontou nas primárias republicanas para a eleição de 2016 e o seu mote de “fazer a América grande novamente” tem relação com esta frustração das massas, especialmente nos eleitores brancos pobres, de que as oportunidades econômicas e o caminho para a ascensão social estavam disponíveis e não mais estão.

A crescente polarização social, portanto, vem alimentando a extrema-direita e enfraquecendo consensos existentes na sociedade e na esfera política a respeito de políticas públicas internas e da política externa. John Gray trata, no livro aqui mencionado, do apelo nacionalista da pré-candidatura de Patrick Buchnann pelo Partido Republicano ou da candidatura independente de Ross Perot, que apareceram nos anos 1990 como sintomas desta insatisfação, mas então avaliava como inviáveis candidaturas tão críticas ao status quo bipartidário. Como sabemos, era questão de tempo.

*Wagner Sousa é Mestre em Sociologia pela UFPR, Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina www.americalatina.net.br. Colaborador do boletim Observatório do Século XXI

Publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI (N°8 – Novembro/2024), que é uma publicação do Grupo

Foto de capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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