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Os Reis Do Povo E A Era Trump

Os Reis Do Povo E A Era Trump

Opinião por RED
19/11/2024 18:00 • Atualizado em 19/11/2024 16:26
Os Reis Do Povo E A Era Trump

Por JOSÉ ORLANDO SCHÄFER*

Ontem, por acaso, a Netflix (Olhe, você, meu leitor e você, minha leitora, como a Inteligência Artificial é inteligente! Mas, ao mesmo tempo, observem com atenção como ela é humana!) me indicou um filme indiano cujo título é “O Rei do Povo”. E, como eu estava moído pelo trabalho árduo do dia, não vacilei: aceitei a indicação. Ato contínuo, me esparramei no sofá!

O Rei do Povo foi um jornalista indiano do final do século XIX. Fala o filme – baseado em fatos – que o líder de uma seita religiosa existente na Índia do século XIX abusava de e estuprava meninas em nome de um ritual divino. Sim, temos outras seitas religiosas que fizeram algo parecido, vocês têm razão.

Bem, um jornalista, cujo nome era Karsandas Mulji – que eu identifico aqui como sendo o Reio do Povo –, começou a perceber a violência presente no comportamento daquele líder religioso. Mas, vejam, ele era o único, naquela localidade (Mumbai), capaz de enxergar o mal que o líder religioso fazia para as mulheres. Os demais, cegados pelo poder que um líder pode exercer sobre os seguidores que renunciam ao dever de pensar, nada enxergavam de errado.

Então, ele iniciou um movimento de esclarecimento e de denúncia contra o religioso. Inicialmente, o jornalista estava sozinho nessa luta, pois os demais consideravam os estupros algo normal e inerente ao ritual religioso. Achavam isso porque eram guiados pela ignorância e pelo medo, dois dos maiores monstros da existência humana!

Lentamente, porém, o questionamento foi ganhando espaço, até que o líder religioso teve que partir para a agressão e para a violência. Tudo, no final, foi parar no Tribunal. O jornalista obteve apoio popular para a sua causa e venceu uma luta contra a ignorância, contra a violência e contra o medo, ao atuar em defesa dos Direitos Humanos das vítimas. Venceu, na sua época, uma grande batalha paradigmática contra o obscurantismo e a dominação.

Hoje, por acaso, assisti a um pequeno debate entre cientistas; dentre eles estava o Miguel Nicolelis. O debate girava em torno dos limites da Inteligência Artificial. Nicolelis afirmou que essa hipotética situação de descontrole e insurgência da Inteligência Artificial contra os humanos é absolutamente impossível, patética até. O argumento: controla a Inteligência Artificial quem a programa. Nesse caso, a Inteligência Artificial pode ser usada, por aqueles que a programam, para, aí, sim, agir contra os interesses humanos. Mas, no caso, fica claro que quem pode fazer algum mal são aqueles que a programam (a controlam!) e não a Inteligência Artificial em si. É, até mesmo, meio bizarro falar sobre isso.

No entanto, pergunta-se: – Qual a questão fundamental para pensarmos sobre o bem e o mal que a Inteligência Artificial pode produzir? Ora, devemos perguntar simplesmente: – Quem a controla? Isso mesmo, quem a controla é a chave dessa questão.

Mas, ainda assim, fica no ar algo como ninguém é responsável por isso e que a IA pode promover, em breve, um desastre social, uma rebelião contra os humanos. Essa ideia é cogitada por uma simples razão: é preciso semear o medo! Somente pelo medo e a ignorância uma seita se cria e se consolida e os seus líderes são vistos como benevolentes.

Ora, todos sabemos – ou deveríamos saber! – que a tecnologia de ponta, como a IA, tem donos. Ela não pode existir sem os seus donos – e o método genético do conhecimento demonstra isso com facilidade. E quem são eles? Acho que posso afirmar, sem vacilar: os donos da Inteligência Artificial são, hoje, as grandes corporações econômicas! Será? – E as universidades?, dirão vocês.

Ora, elas foram superadas, há muito tempo, pelas organizações econômicas. As Universidades, hoje, se constituem em disseminadoras de um conhecimento muito superficial e vendedoras de passes para a ascensão social. O bom – para não dizer que tudo está ruim! – é que hoje elas vendem passes até mesmo para que os pobres possam ascender. Passes quase sem valor, é verdade, mas são passes: passes para uma “ascensão horizontal”. No que diz respeito às tecnologias de ponta, as Universidades passam bem longe delas. Infelizmente!

E os governos? Nos governos, tampouco, podemos colocar qualquer possibilidade de controle da IA. Eles estão sem rumo, fustigados que são pela extrema direita (movimento político inventado e alimentado por tais corporações. Olhe, acerca disso, os movimentos de Elon Musk!) e pelos gravíssimos problemas que a Revolução Tecnológica e a crise climática estão produzindo para a sociedade. Elas estão destruindo completamente um modelo de organização social.

É preciso, pois, admitir que as grandes corporações econômicas estão controlando a tecnologia de ponta! Tudo, nesse ramo, é delas! As Universidades, outrora importantes fontes de conhecimento, foram usadas, até o limite, e, depois, jogadas ao léu. Vocês já ouviram falar da BlackRock e de outras semelhantes? Como vocês já ouviram falar, delas não falarei. Essas malvadas estão utilizando a Inteligência Artificial em benefício próprio para CONCENTRAR (rectius: fazer convergir para um centro, tornar mais denso, mais forte) RIQUEZAS e, claro e evidente, para garantir que essa maravilha – para elas! – de concentração das riquezas se perpetue.

Se vocês não acreditam nisso, é só dar uma olhadela no Google para ver! Lá aparece a gritante concentração  de riquezas que vem acontecendo desde a eclosão da Revolução Informática. E, vejam só: elas “concentram” tirando dinheiro de todos! Não pensem que vocês estão fora disso tudo! Elas tiram riquezas dos trabalhadores, sim, é verdade, mas tiram, também, dos profissionais liberais e, principalmente, dos pequenos empresários. Todos estão sendo levados à precarização! E fazem isso de muitas maneiras ardilosas.

Isso está levando, até mesmo, ao fim de uma era: o fim da sociedade dos Burgos, iniciada lá no final da Idade das Trevas e início da Modernidade. Todos, trabalhadores, profissionais liberais e pequenos empresários, estão sendo sugados, de maneira impiedosa, por essas coisas desprezíveis. Tudo com a ajuda providencial da tecnologia de ponta! Quem nunca comprou alguma coisa na Internet que jogue a primeira pedra! É meio que viciante, uma espécie de grande cassino global! Uma jogatina monitorada por quem? Pela Inteligência Artificial, claro. Ela sabe até mesmo os nossos gostos! Além de saber sobre os nossos filmes preferidos, elas, também, sabem muito sobre os nossos desejos mais profundos. Ou não?

Mas, atentem: para que o paraíso da concentração de renda possa prosseguir, é necessária a colaboração de vocês. Colaborar como? Participando do grande cassino global das grandes controladoras da Inteligência Artificial. Somente assim a dominação poderá ser impor e o novo projeto de sociedade poderá se consolidar.

Contudo, dominará a sociedade, como?

Ora, através da utilização da tecnologia de ponta, através da utilização da Inteligência Artificial: a IA está catalogando, diuturnamente, com certa facilidade até, todos os nossos desejos para, assim, poder manipulá-los (os desejos) e conduzi-los à direção almejada. E a desinformação e a confusão de sentimentos são duas armas importantes: seres sem informação e em contradição não têm como ir a qualquer lugar.

Mas qual a finalidade disso tudo? O objetivo é criar uma sociedade dócil e que atenda aos interesses daqueles que comandam a Inteligência Artificial; para que todos entendam como sendo natural esse novo modo de existir. Tudo deve ser visto como inevitável e natural: elas sugam a sociedade e os governos e apresentam um novo modo de vida para todos nós. Até o Banco Central deve ser “independente” (independente de quem?), para dar a elas tudo o que pedem! Tudo sem controle!

O próprio Nicolelis enfatiza: o nosso cérebro é plástico! Ele se adapta a qualquer situação. Então, essas corporações atuam para moldar seres humanos a uma nova sociedade, na qual elas, esperam, todos sejam dóceis e passivos consumidores. Enquanto violentam a essência humana, todos, atônitos, olham-nas com admiração. As defendem até, como os pais e os maridos traídos defendiam o líder da seita religiosa na Índia.

Se tudo der certo, essas corporações, com toda a tranquilidade, conseguirão criar, em pleno século XXI, uma grande SEITA GLOBAL: uma seita que terá como fundamento a incompletude do desejo humano e a sua falsa realização mediante o acesso a um número infinito de quinquilharias, como, por exemplo, carros, celulares, imagens, sons e por aí vai. Uma seita do consumo irracional, ilusório, que jamais poderá produzir alegria, fundamento da existência humana.

Não falo, por certo, de uma sociedade distópica, surgida de algum filme futurista. Falo da realidade que está batendo à porta. O Jornal O Globo de ontem estampa: “Magnatas da IA, como Musk e Altman, defendem renda universal para minimizar impacto da tecnologia” (O Globo, 3/11/2024).

Que sujeitos generosos, vocês devem ter pensado!

Mas, olhemos com outros olhos essa manchete de jornal: primeiro, fica claro, pela notícia, que a sociedade informática está se tornando uma realidade; do contrário, uma notícia desse calibre não faria nenhum sentido. Mas, para além disso, os magnatas estão dizendo que a tecnologia produzirá miséria. E eles falam isso de forma tranquila, sem qualquer tipo de reflexão que possa indicar uma mudança de rumos. Falam como algo natural, inevitável. Mas, mais do que isso, a matéria mostra que eles defendem uma “renda mínima” a ser paga por eles, que são os grandes ganhadores dessa tragédia? Não, eles defendem que os governos devem financiar tudo isso. E a votação do Projeto de Lei que visava taxar as grandes fortunas no Brasil mostrou: os magnatas não estão para brincadeira e, mais do que isso, eles têm partidos prontos para defendê-los.

Em resumo, não obstante o desastre que se desenha pela frente, nada há que possa ser feito para barrá-los e, assim, eles ficarão cada vez mais ricos e a classe média, cada vez mais pobre e em guerra entre si, até que, enfim, se possa entender o verdadeiro significado da expressão “ascensão horizontal”.

E, lembremos: “eles” (Musk e sua trupe!) acabaram de eleger Trump presidente dos Estados Unidos, fato este que marca – pelos profundos reflexos que tem para a organização social vigente -,   o início de uma nova era. E, vejam, “Quando o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskiy ligou para Trump para parabenizá-lo pela vitória nas eleições presidenciais, o CEO da Tesla e apoiador de Trump, Elon Musk, juntou-se à chamada, de acordo com relatos da mídia.” (in https://www.infomoney.com.br/mundo).

Para os que não se contentarem com a tristeza que esse novo modo de vida haverá de provocar, essa nova seita – por muitos incautos, defendida! – tem uma prateleira infindável de remédios.

Assim como na Índia do século XIX, a grande maioria das pessoas, embriagada pela ilusão que a seita produz no cérebro humano, tende a acreditar, ingenuamente, nas suas oferendas.

Enquanto isso, o sentido de vida vai sendo, lentamente, sugado, aniquilado, e os direitos dos humanos, de viverem uma vida digna e plena, são violentados, usurpados e vilipendiados. Vamos, lentamente, dando adeus ao luminoso projeto da Modernidade.

Não sei, hoje, quem está preparado para enfrentar essa nova seita, pois, pelo que parece, todos estão, por ela, hipnotizados. Seriam os jornalistas? Os advogados? Os professores? Os bancários? Os metalúrgicos? Os estudantes? Não sei quem são aqueles que estão preparados para enfrentar essa poderosíssima seita global.

Talvez ainda não tenham surgido, no horizonte, os reis do povo capazes de fazer frente a realidade que emerge dessa nova era. Não acredito, tampouco, nos partidos políticos. Trata-se de algo a ser construído tendo presente a realidade sui generis que a revolução tecnologia está apresentando. Não existem mais respostas prontas que possam ser retiradas das prateleiras de soluções heroicas que produziam algum efeito nos séculos passados.

A verdade é uma só: somente uma nova sociedade, de seres pensantes, que tenham consciência do momento pelo qual estamos passando, poderá fazer frente a essa nova realidade. Para impor uma derrota a essa grande seita global, que acredita que somos seres incompletos, manipuláveis e fúteis, talvez sejam necessários muitos reis do povo. Onde estarão eles, neste momento?

*José Orlando Schäfer, tem 60 anos e é advogado, mestre em Direito, escritor, membro – cadeira 14 – da Academia de Letras do Noroeste do Rio Grande do Sul. Email: schafer.jo@gmail.com.

Ilustração da capa: Redes sociais

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