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Make America Trumped Again
Make America Trumped Again
Por CHRISTIAN VELLOSO KUHN*
Logo que assumiu, Biden anunciou três planos para reconstrução do país (build back better) após a recessão econômica causada pela pandemia da COVID-19: um plano arrojado chamado American Rescue Plan (Plano Americano de Resgate), que virou lei em março de 2021; o American Jobs Plan (Plano Americano de Empregos) e o American Families Plan (Plano Americano de Famílias). O Plano de Resgate foi na ordem de US$ 1,9 trilhão, direcionado para transferir renda às famílias mais empobrecidas, principalmente no curto prazo (2021-2022). O Plano de Empregos foi anunciado poucos meses depois, cujo montante seria de US$ 2,3 trilhões a serem gastos em oito anos, voltado a investimentos de infraestrutura e inovação, inclusive com despesas públicas para a care economy (economia do cuidado), mas também para a transição para uma economia verde, com uso mais intensivo em fontes renováveis de energia. Já o Plano de Famílias previa um valor de US$ 1,8 trilhão em 10 anos, para gasto em educação e saúde e desoneração tributária para famílias de baixa renda. Tanto o Plano de Empregos como o Plano de Famílias contavam com fontes de financiamento através do aumento de impostos. Enquanto o primeiro seria financiado pelo aumento progressivo de tributação sobre grandes corporações e combate à evasão fiscal, o último seria arcado em parte com a elevação de alíquota do imposto de renda sobre os mais ricos.
Apenas o Plano de Resgate foi aprovado, enquanto os outros dois foram transferidos para outros projetos, como os investimentos em infraestrutura que migraram para o Infrastructure Investiment and Jobs Act (Lei de Investimentos e Empregos em Infraestrutura), aprovado em novembro de 2021. Já outros objetivos do Plano de Empregos foram agregados ao Plano de Famílias para a elaboração do Build Back Better Act (Lei Reconstruir Melhor), que mesmo aprovado na Câmara de Representantes dos EUA (câmara baixa), passou por várias negociações no Senado (câmara alta) até ser aprovada a Inflation Reduction Act (Lei de Redução da Inflação) em agosto de 2022, incorporando algumas das propostas remanescentes como reforma climática, saúde e impostos.
Aqui no Brasil, muitos economistas heterodoxos reagiram com entusiasmo quando do lançamento dos planos de Biden, apelidado de Bidenomics, que serviu até de título para um livro[1]. A ideia dos autores era de que esses planos pudessem servir de inspiração para serem adotados no Brasil (o que não veio a acontecer). Tais economistas destacaram os aspectos keynesianos dos planos, como gastar e investir no presente para taxar e arrecadar impostos no futuro, a volta de uma política de reindustrialização, medidas voltadas para combater o aquecimento global e ações para redistribuição da
Todavia, a despeito do crescimento econômico não ter se desviado da média do governo anterior e da taxa de desemprego ter reduzido no governo Biden, a inflação perdurou praticamente a sua gestão toda para baixar, numa escalada que chegou ao seu pico em significativos 9,1% em julho de 2022[1], elevada até mesmo para os padrões brasileiros. A inflação é resultante da queda da produção norte-americana e mundial no período pandêmico, bem como das guerras da Ucrânia e de Israel.
Para reduzir, o FED elevou a taxa de juros dos EUA de 0,25% para 5,5%, baixando para 5% somente em setembro desse ano. Ou seja, mesmo com mais empregos, os norte-americanos sentiram o poder de compra de sua renda cair fortemente, ao mesmo tempo que o custo de crédito encareceu consideravelmente para esses manterem seu padrão de consumo. Isso sem falar nos déficits gêmeos (fiscal e externo), que atingiram patamares insustentáveis.
Com a imagem e a própria saúde desgastada, Biden foi substituído por sua vice Kamala Harris faltando 16 semanas para as eleições, sem passar pelas primárias do partido Democrata. Associado ao pouco tempo de preparo para o pleito, que repercutiu na dificuldade da candidata defender melhor suas propostas e a gestão de Biden, ainda contaram ao seu desfavor a avalanche de Fake News disseminada nas redes sociais – principalmente o X de Elon Musk, apoiador de Trump – e a insistência de seus apoiadores em apostar numa estratégia equivocada de apelo wokeísta, enquanto os eleitores estavam mais preocupados com pautas universais, como a situação econômica.
Trump venceu de forma convincente apostando no apontamento dos erros da administração Biden na economia, como o aumento do custo de vida, e defendendo pautas populistas da extrema-direita dos países desenvolvidos, como bem ressaltado por Edward Luce em seu artigo no Financial Times: “mass deportation of illegal immigrants, an end to globalisation and a middle finger to the liberal elite’s often self-parodying approach to identity, better known as wokeness”[2].
Essas diretrizes de seu plano de governo podem acabar por comprometerem ou agravarem justamente os problemas que ele promete resolver. À primeira vista, a deportação de imigrantes elevaria a oportunidade de mais empregos aos nativos norte-americanos. Contudo, parece que falta Trump assistir ao filme Um Dia Sem Mexicanos (2004). Um tanto distópico, o filme retrata o estado da Califórnia, que de uma hora para outra vê sumir 14 milhões de pessoas, cerca de 1/3 de sua população. Em comum, todas essas pessoas são de origem hispânica, chamados pelos nativos estadunidenses de forma xenófoba de “chicanos”. Ocorre que os “chicanos” são aqueles que atuam em ocupações primordiais como policiais, operários e babás, e sua ausência é logo sentida pelo restante da população branca nativa, comprometendo a produção industrial e comercial e prestação de serviços públicos essenciais.
A questão é: será que os brancos nativos norte-americanos desejam trabalhar nessas ocupações? Muito provavelmente desejarão por trabalhos que possam auferir maior renda, o que sem uma política industrial, dificilmente farão frente à China. Por sua vez, o protecionismo, sem o acompanhamento de incentivos à produção agrícola e industrial do país, igualmente será insuficiente por si só. Corre-se o risco de até agravar a inflação e retornar aos patamares de 2021-2022. Também fica o questionamento do que fará Trump com o legado dos planos econômicos de Biden. Ao interrompê-los, o crescimento econômico e o nível de emprego podem ruir, prejudicando o bem-estar da população estadunidense.
Na sua segunda tentativa de Make America Great Again, Trump se deparará com sérios problemas, alguns causados por ele próprio em sua primeira gestão, como a má administração do combate à pandemia e a desoneração tributária dos mais ricos (uma tentativa frustrada de trickle-down). Enquanto isso, a China anunciou um pacote fiscal de US$ 1,4 trilhão para enfrentar a pressão deflacionária causada por sua demanda enfraquecida, além de uma crise imobiliária e as dificuldades financeiras dos governos locais. O protecionismo de Trump pode agravar ainda mais essa situação da economia chinesa, gerando um círculo vicioso recessivo para os dois países, muito embora a China venha numa crescente tecnológica sem precedentes. Ao que tudo indica, a tentativa keynesiana e desenvolvimentista da política econômica empreendida no início do governo Biden deve ser abandonada por Trump. Mesmo que o plano de governo de Trump obtenha algum sucesso para a economia dos EUA, deverá ser às custas dos demais países, incluindo a China. Do contrário, muito provavelmente o império norte-americano continuará sua tendência de derrocada e superação, deixando uma herança maldita a seu sucessor.
[1] RONCAGLIA, André; BARBOSA, Nelson (Orgs.). Bidenomics nos trópicos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2021. renda e da riqueza, sem esquecer da motivação geopolítica de fazer frente ao avanço econômico e tecnológico da China. *Professor e economista do Instituto PROFECOM.
[2] Fonte dos dados: U.S. Bureau of Labor Statistics. “Deportação em massa de imigrates ilegais, o fim da globalização e um dedo médio para a abordagem muitos vezes autoparódica da elite libera à identida, mais conhecida como ‘wokeness'”.
*Christian Velloso Kuh ´r professor e economista do Instituto PROFECOM, autor de livros como Governo Figueiredo (1979-1985): política econômica e ciclo político-eleitoral.
Foto de capa: EPA/Agência Lusa/Cristobal Herrera
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