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BRICS+ em Kazan: Dolarização ou Renminbização?
BRICS+ em Kazan: Dolarização ou Renminbização?
Por ANDRÉ MOREIRA CUNHA*
Kazan 2024: Desejos e Miragens
A cidade de Kazan, na Rússia, foi a sede da XVI Cúpula dos BRICS, entre os dias 22 e 24 de outubro. O encontro marcou a primeira participação de Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos como membros plenos do grupo. Ademais, foram admitidos treze novos parceiros: Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã.
A Declaração de Kazan reafirma ideias-força que têm animado esse grupo, particularmente de que há novos polos de poder no mundo contemporâneo, que não são adequadamente representados nas instituições criadas nos anos 1940. Essa realidade criaria oportunidades de crescimento para os países do assim-chamado Sul Global. Já os países avançados perceberiam as demandas por reformas na arquitetura institucional que governa as relações internacionais como um desafio ao status quo, vale dizer, como uma ameaça.
No parágrafo 6º lê-se o que segue: “Notamos o surgimento de novos centros de poder, de tomada de decisões políticas e de crescimento econômico que podem pavimentar o caminho para uma ordem mundial multipolar mais equitativa, justa, democrática e equilibrada. A multipolaridade pode ampliar as oportunidades para que os PEEDs liberem seu potencial construtivo e desfrutem de uma globalização e de uma cooperação econômicas universalmente benéficas, inclusivas e equitativas. Tendo em mente a necessidade de adaptar a atual arquitetura das relações internacionais para melhor refletir as realidades contemporâneas, reafirmamos nosso compromisso com o multilateralismo e com a defesa do direito internacional, incluindo os Propósitos e Princípios consagrados na Carta das Nações Unidas (ONU) como sua pedra angular indispensável, e o papel central da ONU no sistema internacional, no qual os Estados soberanos cooperam para manter a paz e a segurança internacionais, promover o desenvolvimento sustentável, assegurar a promoção e a proteção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, bem como a cooperação baseada na solidariedade, no respeito mútuo, na justiça e na igualdade. Também enfatizamos a necessidade urgente de alcançar uma representação geográfica equitativa e inclusiva na composição da equipe do Secretariado das Nações Unidas e de outras organizações internacionais oportunamente.” (grifos nossos).
A leitura do documento e a observação das decisões tomadas revelam o quão complexo é avançar no plano geral de princípios e objetivos comuns, para a concretude das medidas a serem adotadas. Assim, se há o desejo comum de que as instituições sejam reformadas, há dúvidas sobre a solidez do apoio mútuo dos membros do BRICS em garantir essa realidade. Dificilmente a China apoiaria o desejo da Índia para ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Índia, Brasil, Japão e Alemanha, que conformam um G4 de pleiteantes dessa posição, também compartilham de restrições por um ou mais de países que têm tal privilégio.
Na área financeira se dá o mesmo, na medida em que não há consenso interno sobre a conveniência ou não de criar uma moeda dos BRICS, mesmo que essa surja como unidade de conta. A China trabalha para fortalecer a posição internacional do renminbi. A Índia deseja fazer o mesmo. A Rússia foi desconectada dos sistemas de pagamentos controlados pelas potências ocidentais e quer avançar na “desdolarização” via BRICS. África do Sul e Brasil não têm as condições para liderar nenhum processo alternativo. Buscam diversificar alternativas sem confrontar diretamente o poder dos EUA.
BRICS+: uma família muito estranha
Vladimir Putin, anfitrião e presidente do grupo neste encontro, manteve a sua ênfase habitual na construção de instituições antiocidentais. O líder russo vislumbra o BRICS como um arranjo para a contestação do status quo, conforme enfatizam seus críticos nos Estados Unidos e na Europa. Em alguma medida, o establishment internacional foi obrigado a reconhecer que a Rússia não foi isolada pelas inúmeras sanções introduzidas a partir da guerra na Ucrânia. Ao lado de lideranças de cerca de trinta países, cujo peso na economia global não pode ser desprezado, Putin desfilou suas teses sobre o redesenho do poder global.
Por seu turno, Xi Jinping enfatizou a posição dos BRICS como um espaço de transformação das instituições globais, espelhando seus objetivos àqueles recorrentemente desenhados pelos chineses. “Devemos trabalhar juntos para transformar os BRICS num canal primário para fortalecer a solidariedade e a cooperação entre as nações do Sul Global e uma vanguarda para o avanço da reforma da governação global”. Em seu pronunciamento oficial, o líder chinês projetou nesse agrupamento os objetivos de seu país para o redesenho da economia global: “A China está disposta a trabalhar com todos os países do BRICS para abrir um novo horizonte no desenvolvimento de alta qualidade de uma maior cooperação do BRICS e unir forças com os países do Sul Global na construção de uma comunidade com um futuro partilhado para a humanidade”.
A perspectiva de Putin ou de Xi não é um consenso. Como destacou o prestigioso Washington Post, os desencontros são claros: “… as divisões internas e as prioridades concorrentes das principais nações do grupo impedem-no de formar o tipo de bloco político coeso para enfrentar o Ocidente, o que Putin claramente almeja”. Índia e Brasil, por exemplo, mesmo defendendo o fortalecimento das parcerias no âmbito do Sul Global, e a renovação das estruturas institucionais herdadas do pós-guerra, como o Conselho de Segurança da ONU, não compartilham da retórica antiocidental. São atores importante que não desejam “escolher um lado ou outro”. No caso da Índia, há reticências adicionais com quaisquer inclinações sino cêntricas em um novo mundo multipolar.
O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, deixou isso claro em seu discurso na Plenária do grupo: “Muitos insistem em dividir o mundo entre amigos e inimigos. Mas os mais vulneráveis não estão interessados em dicotomias simplistas. O que eles querem é comida farta, trabalho digno e escolas e hospitais públicos de acesso universal e de qualidade. É um meio ambiente sadio, sem eventos climáticos que ponham em risco sua sobrevivência. É uma vida de paz, sem armas que vitimam inocentes.”
No clássico Anna Karenina, Tolstói afirma que “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. O BRICS+ é uma família estranha, que busca a felicidade no fortalecimento das suas relações econômicas e nas oportunidades de compartilhar tecnologias, políticas públicas e estruturas de pagamentos internacionais; porém, quando chega a hora de se sentar à mesa, não faltam disputas territoriais, culturais e de poder regional e global para alimentar suas múltiplas infelicidades.
Desdolarização ou Renminbização?
Dentre as reformas vislumbradas pelos BRICS, a da arquitetura financeira chama particular atenção, pois está associada à “desdolarização”. O tema é tão quente, que o presidente Trump prometeu “punir” os países que deixarem de usar o dólar, quando do seu retorno à Casa Branca. Isso se daria pelo forte aumento das alíquotas de importação de seus produtos. Putin, por sua vez, está na linha de frente do combate ao dólar e às instituições ocidentais. Em Kazan, lembrou que: “O dólar está sendo usado como arma … Eu acho que isso é um grande erro de quem faz isso.” A Rússia foi desconectada das redes ocidentais de pagamentos e sentiu, com particular intensidade, o uso político da arquitetura financeira centrada no poder estadunidense.
Nos últimos setenta anos, os EUA moldaram as relações financeiras internacionais à luz dos seus interesses. Sua moeda se consolidou com o principal veículo para a realização de transações comerciais e financeiras. É a moeda internacional “de facto”, ainda que não “de jure”. Seus ativos, particularmente da dívida pública federal, são os mais demandados e representam os instrumentos mais líquidos e seguros disponíveis. Os demais ativos se “precificam” em comparação com as treasuries de dez e trinta anos. Com cerca de 20% do PIB global e um pouco menos do comércio de mercadorias, os ativos denominados em dólares conformam ao redor de 60% das reservas oficiais, dos créditos bancários e demais instrumentos de dívida gerados por instituições financeiras em nível internacional. Metade das transações realizadas internacionalmente são liquidadas em dólares.
Há muito tempo se discute a criação de novos instrumentos capazes de reduzir o uso do dólar nas transações internacionais. A morte do greenback foi anunciada muitas vezes. Substitutos em potencial, como iene, marco e euro, surgiram e se ofuscaram. Agora, o renminbi emerge no bojo do processo de ascensão da China à condição de potência global.
O Império do Meio já tem uma economia maior que a estadunidense, quando mensurada em dólares internacionais em paridade poder de compra. É o maior trader global e disputa o domínio das tecnologias de fronteira com os EUA. A moeda chinesa avança na rígida hierarquia global, mas ainda tem um papel limitado, entre 4% e 5% dos pagamentos internacionais. Como parte de seu processo de internacionalização, Beijing vem construindo uma rede tão ampla quanto a dos EUA de acordos de swaps com sua moeda e a de parceiros. Seu sistema de pagamentos, o CIPS (Cross-border Interbank Payment System (CIPS), concorre com o SWIFT e já tem entre 1.300 e 1.500 participantes. Em 2023, contabilizou transações da ordem de US$ 4,8 trilhões.
No âmbito dos BRICS, discute-se a necessidade de ampliar a utilização das “moedas locais” nos pagamentos bilaterais e, também, da criação de um novo instrumento, possivelmente uma moeda de conta a ser viabilizada por meio de uma plataforma comum para liquidação de transações. Havia a expectativa de que essa 16ª Cúpula oferecesse algum avanço significativo em tais inovações, o que não ocorreu. O parágrafo 67 da Declaração Conjunta, afirma-se que: “Encarregamos nossos Ministros das Finanças e Governadores de Bancos Centrais, conforme apropriado, de continuar a considerar a questão das moedas locais, instrumentos e plataformas de pagamento e nos apresentar os resultados até a próxima Presidência.” (grifos nossos).
Enquanto Trump estiver retornando ao poder, com vontade redobrada de explodir o multilateralismo e de reafirmar a posição internacional do dólar, os BRICS seguirão estudando o que fazer. Na mesa de trabalho, será mais fácil construir consensos sobre o que não se deseja – a manutenção da hegemonia do dólar e das instituições financeiras ocidentais – do que sobre o que será feito. O temor de uma “renminbização” não pode ser minimizado, assim como não se deve esquecer das sete vidas da moeda do Império Americano.
*André Moreira Cunha é Professor Titular do DERI/UFRGS e Pesquisador do CNPq
Foto de capa: Ricardo Stuckert/PR
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