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O bode expiatório do governo Lula

O bode expiatório do governo Lula

Politica por RED
28/10/2024 16:00 • Atualizado em 28/10/2024 16:04
O bode expiatório do governo Lula

Por  CHRISTIAN VELLOSO KUHN*

No último dia 24 de outubro, Paulo Kliass publicou na Rede Estação Democracia (RED) um artigo intitulado “O risco Haddad”, sustentando a tese de que a austeridade fiscal perseguida pelo governo federal, e continuada das gestões anteriores (Temer e Bolsonaro), é uma diretriz defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e que Lula vem sendo convencido pelo seu ministro a adotá-la. Ainda, Kliass demonstra a sua preocupação de Lula “continuar bancando o risco Haddad”, ou seja, de manter uma política fiscal austera, podendo comprometer sua popularidade e, consequentemente, resultar em um revés eleitoral em 2026.

Logo no início do artigo, Kliass levanta dúvidas sobre os intentos do presidente Lula e o quão está em harmonia com Haddad:

“Desde a divulgação dos resultados das eleições de outubro de 2022 tornou-se sistemático o questionamento a respeito de quais seriam as verdadeiras intenções de Lula no que se refere à política econômica de seu terceiro mandato. Por vários momentos havia dúvidas quanto ao alinhamento do Presidente com relação à agenda tipicamente ajustada com os interesses do financismo, tal como têm sido propostas e encaminhadas as medidas de seu Ministro da Fazenda (MF)”.

Em mais de uma passagem, o autor usa o verbo “convencer” para atribuir a Haddad esse papel de propor e defender medidas de uma agenda mais neoliberal e financista, como é a austeridade fiscal, sugerindo que seria a contragosto de Lula. Ocorre que é bastante questionável que Haddad possua poder para tanto.

Para o devido contraponto, primeiramente, vale recordar o papel do Ministro da Fazenda no primeiro governo Lula (2003-2006). Naquela oportunidade, assim como atualmente no início de sua terceira gestão, Lula escolheu um político petista sem formação acadêmica em Economia e áreas afins. Antônio Pallocci é médico e havia sido prefeito de Santo André (SP). Em que pese o seu mestrado em Economia, Haddad é formado em Direito e exerceu sua carreira política nessa área apenas por pouco tempo em cargos de segundo escalão, na Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico da prefeitura de São Paulo (2001-2003) e no primeiro ano do governo Lula (2003) no Ministério do Planejamento. Em 2004, atuou como Secretário-Executivo do ministério da Educação, assumindo como ministro da pasta em 2005 e permanecendo no cargo até 2012, licenciando-se para concorrer e se eleger prefeito de São Paulo naquele ano.

Esse perfil menos identificado com a área da Economia permitiu tanto a Pallocci, como agora a Haddad, defender pautas mais impopulares e adotar uma política econômica mais ortodoxa. Uma frase de Pallocci que ficou famosa na época, justificando porque o governo não podia mudar radicalmente o tripé macroeconômico – como defendiam os seus pares – que vigorava desde 1999 (e que vige até hoje), é que “não se pode dar cavalo de pau em transatlântico”.

É importante entender para que serve esse tipo de quadro gerenciando a política econômica nos governos Lula. Um erro de análise cometido por muitos economistas do mainstream, e mesmo por heterodoxos, é subestimar a relevância das finalidades políticas da política econômica dos governos. Esses profissionais acabam por apregoar uma visão economicista da realidade do modo de governar. O uso político da política econômica vai muito além de meros interesses eleitoreiros às vésperas de cada pleito, como pregam os estudiosos da Teoria da Escolha Pública em seus modelos de ciclo político. Tampouco esse uso compromete qualquer racionalidade na implantação da política econômica, por supostamente desviar de seu objetivo tecnocrático de atingir equilíbrio macroeconômico. Governos democráticos precisam de legitimidade, e por isso empregam políticas públicas que lhes ajudam a manterem a coesão social por parte da população. Isso vale para qualquer política, inclusive a econômica. Desse modo, assim como seu correligionário Pallocci, Fernando Haddad exerce um papel político na condução da política econômica do governo Lula.

Ademais, o que permitiu o êxito eleitoral de Lula em 2022 não foi a proposição de um programa de governo de esquerda, mas sobretudo a sua postura mais democrática do que de seu antecessor, que lhe garantiu no segundo turno o apoio de quadros políticos ligados ao centro (e até à direita) menos extremistas (vide Simone Tebet, Armínio Fraga e Henrique Meirelles). Mesmo assim, Lula foi eleito presidente com uma margem ínfima em relação a seu adversário, com um legislativo muito mais conservador e liberal e, desse modo, predominantemente mais inclinado a atuar na oposição. Seu perfil conciliador e pragmático é mais exigido em 2023 do que fora em 2003. O nível de polarização e intolerância é mais aguçado do que há duas décadas atrás. Para manter um nível sustentável de governabilidade, a sua popularidade precisa ser elevada e o governo requer negociar com partidos de Centro.

Por conseguinte, nesse contexto político, a política econômica no terceiro governo Lula (ou Lula 3.0) conta com autonomia restrita, exigindo concessões a esses grupos que se aliaram, mesmo com pouca afinidade ideológica. Por isso a limitação do governo Lula 3.0 para empreender grandes reformas em contraposição à linha adotada pelos dois últimos governos desde 2016. Falta-lhe força política e quiçá disposição para reverter privatizações, reformas (previdenciária, trabalhista, marco do saneamento, etc) e outras medidas, como a autonomia do Banco Central. As exceções foram a Reforma Tributária, que não comprometeu e até atendeu os interesses da elite brasileira (por não interferir na sua renda e riqueza), e o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que flexibiliza a margem de crescimento das despesas públicas em comparação ao Teto dos Gastos Públicos (TGP), porém, a condiciona ao desempenho da receita tributária e à evolução da dívida pública.

Assim, esse cenário político adverso é muito mais condicionante à política econômica do atual governo, do que a vontade do ministro da Fazenda de influenciá-la. Haddad apenas cumpre o papel que lhe foi incumbido pelo próprio presidente Lula. E quando se constrói a narrativa de que o ministro faz à revelia da real vontade do seu superior, serve muito mais como um subterfúgio falacioso para protegê-lo. Da mesma forma quando foi candidato a presidente em 2018, Haddad se sacrifica em prol da liderança mor do Partido dos Trabalhadores, tais quais seus correligionários na ocasião do Mensalão no primeiro governo Lula.

A preservação do presidente Lula é a tentativa de seus ministros mais próximos de descolamento de sua figura a ações e políticas passíveis de comprometer sua popularidade, como a austeridade fiscal. Na aparência, Haddad é um austericida que flerta com a Faria Lima. Na essência, é um soldado disposto a tudo, que luta contra aqueles que tentam atingir seu general. Portanto, por trás do “risco Haddad” está uma narrativa que coloca o ministro numa posição de bode expiatório, afastando seu líder das críticas por dar continuidade à mesma diretriz de política econômica austera vigente desde 2016. Haddad não é o titã Atlas para carregar o mundo nas costas, tampouco Lula é Zeus para ordená-lo a essa hercúlea tarefa. Mas Haddad é a pessoa certa para o cargo certo a que foi designado, para cumprir exatamente o papel que exerce hoje. Certamente, Lula estava ciente disso quando fez essa escolha.

Para ser justo, Kliass até reconhece na conclusão de seu artigo quem tem maior poder de decisão: “Na condição de Presidente da República, a última palavra sempre estará com Lula”. Todavia, comete um deslize quando na sequência, conclui que: “Se ele continuar bancando o risco Haddad, o futuro lhe cobrará, em termos políticos e eleitorais, as consequências nefastas de tal opção equivocada”. Ora, não basta substituir Haddad por João ou Francisco, o risco permanecerá. Porque ele não está associado à pessoa do ministro, mas ao contexto político e ao pragmatismo do presidente Lula, que em suas gestões anteriores não rompeu totalmente com a agenda neoliberal promovida por seu antecessor, sem reverter reformas e privatizações e dando continuidade ao tripé macroeconômico herdado dos governos FHC.

Para aqueles que creem em mudanças significativas na condução do Banco Central com a saída de Roberto Campos, o futuro presidente, Gabriel Galípolo, vale ressaltar que deverá cumprir semelhante função a de Haddad. Galípolo inclusive já teceu rasgados elogios a Campos, mostrando estar alinhado com quem virá a suceder. Deve vir a compor, junto com Haddad, a linha de frente de preservação do presidente Lula da responsabilidade de adotar medidas impopulares na política econômica e deixar de reverter reformas liberalizantes. Ocorre que, se no futuro, cogita-se Haddad para vir a ser um sucessor de Lula, a sustentação dessa alienada narrativa compromete qualquer projeto nesse sentido. Talvez seja justamente o interesse oculto de alguns de seus correligionários, que aspiram ser a autoridade máxima do país depois de Lula.

 

*Professor e economista do Instituto PROFECOM, autor de livros como Governo Figueiredo (1979-1985): política econômica e ciclo político-eleitoral. 

Foto: Divulgação

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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