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Fragmentos de um mundo em convulsão

Fragmentos de um mundo em convulsão

Internacional por RED
19/10/2024 09:00 • Atualizado em 18/10/2024 14:44
Fragmentos de um mundo em convulsão

Por MARIANA GARCIA  E FELIPE MATEUS*

Organizado pelos professores da Universidade de São Paulo (USP) André Singer, Bernardo Ricupero, Cicero Araujo e Fernando Rugitsky, o livro O Segundo Círculo: Centro e Periferia em Tempos de Guerra contempla um mundo em agonia, tomado por insegurança e indefinição. Seus capítulos destacam problemas críticos da atualidade, cujos rumos ainda são incertos, embora suas consequências já se mostrem palpáveis, conforme indicam as tensões que ameaçam desde os valores democráticos até a vida no planeta.

A volta da bipolariazação geopolítica e a consolidação do autoritarismo servem de tema central para a obra, costurando suas três partes. As consequências da desagregação social decorrente da supremacia do neoliberalismo são abordadas na abertura da publicação; em seguida, os capítulos tratam das implicações da nova ordem global para a América Latina. A busca, no pensamento de teóricos brasileiros, por respostas para as questões levantadas encerra o livro.

Além de viabilizar a publicação, o apoio da Reitoria da Unicamp possibilitou a realização, por Etulain, de uma pesquisa in loco sobre os desmembramentos do Plano Biden. Em um capítulo assinado pelo docente e pelo pesquisador mexicano Jorge López Arévalo, da Universidade Autônoma de Chiapas (México), há uma análise sobre o programa econômico intervencionista do democrata norte-americano e de suas reverberações no contexto mundial.

Um dos organizadores da coletânea, Araujo explica que o título do livro é inspirado no clássico A Divina Comédia, de Dante Alighieri, e na ideia do segundo círculo do inferno. A imagem serve, na coletânea, de metáfora para ilustrar o acirramento do quadro desolador deixado pela economia neoliberal, sobretudo nos países centrais. Um contraste em relação à China, que aproveitou a oportunidade para expandir sua indústria e sua atuação internacional. “Embora internamente tenha praticado políticas diferentes, a China se beneficiou da era neoliberal. Olhando para o desempenho da sua economia e sua sociedade, vê-se o país surgindo como a oficina do mundo, o grande polo industrial, com um crescimento econômico gigantesco.”

A vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, serve de marco para o livro. Sob comando, pela primeira vez, de um presidente extremista, o país experimentou uma regressão autoritária, ao mesmo tempo em que endureceu suas relações com a China – já então promovida a potência industrial e econômica mundial.

De acordo com Etulain, o republicano fez de sua política externa uma bandeira ideológica e passou a interferir nas relações comerciais que eram, até então, bem azeitadas. “Trump aplicou taxas e tarifas à importação chinesa utilizando argumentos marcados por um tom bélico, muito próximo do discurso de ódio que defendia e que se espalhou pelo mundo. Algo, aliás, bem conhecido aqui, no Brasil”, afirma.

Ao mesmo tempo que potencializa o risco de uma escalada bélica, a tensão entre os dois países impõe a necessidade de novos alinhamentos, o que pode ampliar a importância dos Estados. Fortalecidos, certos países se beneficiariam no palco das negociações internacionais. Para a América Latina, a reconfiguração sinaliza uma possibilidade de reindustrialização, em razão da disputa entre as duas grandes potências.

O filósofo é professor Cícero Araújo; Brasil foi assertivo em relação ao pleito na Vemeziela

O Brasil, tradicionalmente pragmático quando se trata de política externa, reúne condições de ganhar maior destaque como liderança regional, concordam os dois professores. “Com Lula [o presidente Luiz Inácio Lula da Silva], o país tem conseguido jogar com o conflito e se manter neutro. Negocia com a China, que tem investimentos no país, mas, ao mesmo tempo, para os Estados Unidos, demonstra interesse em participar da indústria dos chips. Trata-se de uma situação ambígua. Embora essa situação seja perigosa e problemática, oportunidades se apresentam”, diz Araujo.

Diante da conjuntura, Etulain põe em xeque a própria classificação do Brasil como país periférico. Sua dimensão continental, aliada à sua abundância de recursos e riqueza cultural, garantem seu status de potência econômica. “[O Brasil] é um país com uma capacidade de rápido crescimento e de se recriar apesar das crises, dos problemas e do lastro de desigualdade e pobreza que carrega. Portanto, se bem governado e bem administrado, pode ser muito promissor.”

A habilidade brasileira para dialogar com o restante do mundo o diferencia, por exemplo, da Argentina, compara o economista, referindo-se sobretudo ao atual governo de Javier Milei, que escolheu o confronto e preferiu rejeitar a China, além de recusar a participação nos Brics (organização intergovernamental formada por vários países, entre os quais Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Graças a essa vocação, o governo brasileiro pode atrair fundos e investimentos que impulsionariam um ciclo de gastos, gerando benefícios sociais e melhorando a vida das pessoas, argumenta Etulain. Saindo de um processo de desindustrialização e desinvestimento, o Brasil tem um desafio a enfrentar, pois fazer política econômica envolve conflitos de interesse, debates políticos e implementação de medidas.

Por outro lado, a combinação brasileira de disponibilidade de recursos com uma conjuntura marcada pelo atraso, além da dificuldade de inserção nas cadeias globais de produção, exige a definição de políticas econômicas para produção, infraestrutura, investimentos e gastos. “Lula, com muita habilidade política, sabe aproveitar deste momento em que se estreitam as margens de negociação”, opina.

Na esfera internacional, a relevância do Brasil não se limita ao seu potencial como provedor e consumidor de mercadorias e serviços. Quando acionado como mediador de conflitos ou para atuar como agregador, o país se destaca. Mais do que suas ações no jogo das grandes potências, como nas tentativas de interceder nas guerras da Ucrânia e na Faixa de Gaza, é na América Latina que sua atuação se faz mais estratégica, defende Araujo.

A postura do governo Lula diante do desfecho da última eleição presidencial na Venezuela é citada pelo professor da USP como exemplo do tipo de liderança que o governo brasileiro pode exercer sobre seus vizinhos, uma liderança pautada pela negociação e pela defesa dos preceitos democráticos. Mesmo no caso de antigos aliados.

“Ao dizer que era preciso garantir eleições limpas e livres, o Brasil adotou uma postura assertiva, sem precisar fazer alinhamento com a oposição [venezuelana]. E mostrou, assim, serem mais importantes, do que saber se quem está governando o país alinha-se à direita ou à esquerda, a preservação e a promoção das regras democráticas.”

Interregno

O conceito de “interregno”, emprestado do pensador italiano Antonio Gramsci, surge no livro para traduzir a indefinição e a instabilidade que pairam sobre os tempos atuais. Um cenário que começou a se desenhar em 2008, com o crash da economia, e se materializou com o abalo do ideário democrático. Ao contrário do que aconteceu em crises anteriores, quando países periféricos viram-se tomados por ditaduras, desta vez o colapso se deu justamente onde as instituições democráticas pareciam sólidas, confiáveis e socialmente evoluídas.

“Qualquer coisa que acontecesse na política dos Estados Unidos já causaria um efeito no resto do mundo, por envolver a maior potência estatal do planeta. Especialmente nesse caso, ainda houve uma enorme consequência simbólica, pois se trata de um dos berços, senão o berço, da experiência democrática moderna”, analisa Araujo. O epicentro da crise, exatamente onde os cientistas políticos tinham como certos o desenvolvimento e a estabilidade do sistema democrático, borrou politicamente as diferenças entre os Estados tidos como centrais e periféricos.

A origem dessa turbulência, segundo as análises presentes no livro, relaciona-se com uma deterioração provocada pelo sistema neoliberal. Embora as grandes empresas norte-americanas tenham se beneficiado da globalização da economia, que permitiu a distribuição de seus produtos mundo afora, a classe trabalhadora desses países sofreu com o desemprego, e o governo, consequentemente, perdeu legitimidade interna.

O professor e economista Carlos Etulain: acompanhando, de perto, os desdobramentos do plano Biben

nstalou-se assim uma conjuntura propícia para a eclosão de forças políticas autoritárias, observa Etulain. “Houve uma contribuição da ordem neoliberal para desalinhar o tecido social, criando um ambiente favorável ao surgimento de condutas antipolíticas que corroem o ethos da democracia. As queimadas que tomaram conta do Brasil no inverno são emblemáticas dessa situação. Não à toa, são causadas por forças humanas interessadas simplesmente em ampliar a fronteira agrícola, por exemplo.”

A ascensão da extrema direita no mundo, esclarece o economista, não pode ser considerada a causa desse quadro. Trata-se, na verdade, de uma consequência do desgaste dos valores democráticos, um fenômeno evidente tanto no discurso de ódio como na descrença generalizada em relação aos governos e a sua capacidade de conduzir a economia.

Portanto, conclui Etulain, a ameaça à democracia não estaria nas discussões acaloradas entre a esquerda e a direita, afinal, embates de ideias fazem parte do jogo político. O perigo, alerta, estaria na destruição dos princípios construídos pela humanidade para formular seus acordos e viver em paz. “Partilhando os frutos do progresso”, conclui.

A solução contra a falência da democracia, segundo a avaliação dos docentes, depende de os governantes e as nações conseguirem romper com a posição que causou seu estremecimento. Um processo longo e hoje dificultado pelo aumento do pessimismo e do mau humor da população mundial, observa Araujo. “Há um componente psicossocial na crise, que não favorece a superação do quadro.”

Apesar do desemprego, do empobrecimento generalizado e da perda de direitos, o filósofo pondera que a ordem capitalista não vem sendo questionada. Ao contrário, sofreu uma naturalização, como se tivesse se tornado parte da paisagem. É o que indicam as discussões em torno de alternativas para sanar a crise contemporânea.

“Curiosamente, as soluções aparentemente mais realistas são aquelas que surgem dentro do capitalismo. Um exemplo é a ideia de transformar a natureza em um negócio, por exemplo. Ou mudar completamente a indústria automobilística e fabricar carros elétricos. O raciocínio: se consigo converter o enfrentamento dos danos ao meio ambiente em um projeto compatível com o capitalismo, posso fazer essa agenda prosperar.”

 

KEYNESIANISMO TIPO BIDEN

Desde s implantação em 2021, o Plano Biden investiu o equivalente a três produtos internos brutos (PIBs) do Brasil na economia e na sociedade norte-americanas. Descolando-se do restante do mundo capitalista, o presidente democrata elegeu o pensamento keynesiano como norte para construir um programa de intervenção econômica focado no desenvolvimento de infraestrutura, indústria e tecnologia, na geração de empregos e no financiamento de políticas sociais, sobretudo nas áreas da saúde e da educação. Contrariando, portanto, o receituário neoliberal incensado pela mídia e o mercado financeiro, cuja supremacia, nos Estados Unidos, datava dos anos 1980.

Etulain destaca que uma iniciativa do tipo mostra-se rara na história do país, tradicional defensor do Consenso de Washington, do Estado mínimo, dos ajustes e dos cortes de gasto. Entretanto não é inédita. Após o crash da bolsa em 1929, o Estado encampou sua maior empreitada intervencionista, o New Deal. “Sem isso, os Estados Unidos não teriam se tornado o país do pleno emprego, no pós-guerra. Com o Plano Biden, estão demonstrando, como antes, que as economias são capazes de crescer e liderar processos virtuosos de produção e de renda fazendo política econômica”, afirma.

Entre fevereiro e abril deste ano, o professor da FCA observou de perto o comportamento do programa de Biden – no livro, algo associado à ideia de um novo americanismo.

A partir de sua pesquisa, que envolveu a realização de entrevistas com pesquisadores e especialistas de diversas instituições, como o Banco Mundial e a Universidade de Columbia, Etulain observou uma melhora na condição de vida das pessoas. “Mesmo com a desidratação do plano, em função da oposição republicana, implementaram-se políticas sociais de grande efeito, em grande volume, se comparamos com as de outros países”, afirma.

Sua análise destaca a importância simbólica do Plano Biden para o mundo por, afinal, indicar o rompimento, por parte do líder global, com o sistema que havia se transformado em sinônimo da economia norte-americana e que passou a ser adotado praticamente por todos os atores da esfera capitalista. “O receituário neoliberal é a antipolítica econômica, como se a economia pudesse existir por si própria. A experiência do século 20, no entanto, comprova ser preciso gerir as economias.”

A principal contribuição do programa do atual presidente norte-americano, conclui o professor da FCA, é mostrar para os demais países a necessidade de empregar uma política econômica que privilegie gastos públicos para impulsionar a indústria sustentável internamente e gerar renda. Em um momento de disseminação de discursos afeitos à extrema direita, que acusam iniciativas intervencionistas de pôr em risco o controle da inflação e a austeridade fiscal, o exemplo dos Estados Unidos revela-se significativo especialmente para os países ditos periféricos, onde a desigualdade social é ainda maior.

 

 

Pubçicado originalmente em Jornal Unicamp.

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