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Natureza não é mercadoria! Meio ambiente não é negócio!
Natureza não é mercadoria! Meio ambiente não é negócio!
Por Walter Có* e Daniela Zanetti**
A proposta de concessão dos parques capixabas à iniciativa privada anunciada pelo governador Renato Casagrande, através do seu secretário de Meio Ambiente, Felipe Rigoni, é tão absurda que em pouco tempo mobilizou um enorme contingente de ambientalistas, pesquisadores, políticos, comunidades locais e a população em geral para lutar contra esse projeto de destruição. Sim, lutar! Se no passado os defensores capixabas do meio ambiente combatiam madeireiros, grileiros, caçadores e invasores de terras, hoje, além desses e outros criminosos ambientais, os ativistas precisam lutar também contra projetos criados pelas próprias instituições que deveriam preservar o meio ambiente. Sinal dos tempos, sinal de tantos retrocessos que assistimos na área ambiental brasileira nos últimos anos.
Mas, afinal, o que há de errado com essa proposta? Tudo! Inicialmente, vamos refletir sobre qual é a real finalidade de um parque ecológico. Todos estamos assistindo à destruição da natureza nas últimas décadas. Há a cada dia menos natureza e mais cidades, pastagens, amplas plantações de soja, milho, cana, etc. voltadas para a exportação. Com a previsão de que a humanidade e suas atividades iriam ocupar o planeta inteiro, no início do século XIX foram criadas as primeiras Unidades de Conservação (UC), ou seja, áreas de natureza protegidas. Nessas áreas, a prioridade não seria o ser humano, mas o restante da vida que habita o Planeta Terra há quase 4 bilhões de anos. Nessas pequenas ilhas de natureza, seria relativamente possível que a vida pudesse seguir seu curso, com uma mínima interferência humana. Em outra perspectiva, com a criação dessas unidades, a humanidade se dá o direito de ocupar e devastar a quase totalidade da natureza da Terra, mas vai reservar a ela pelo menos uma mínima fração, para que ela possa existir, dentro dessas áreas protegidas.
Durante um certo tempo, essas unidades permaneceram intocadas e cumprindo o seu papel. Entretanto, com o avanço da massa humana sobre os territórios e a consequente devastação sobre eles, essas áreas naturais começaram a ser cobiçadas, pois guardavam uma natureza ainda exuberante e paisagens maravilhosas. Logo se iniciou uma pressão política e econômica e algumas dessas áreas ganharam uma nova categoria: a de Parques Naturais. Nessa categoria, a natureza continuaria sendo “integralmente protegida”, mas seria permitida a “visitação” humana. O maior argumento para essa flexibilização foi o de reaproximar a humanidade da natureza, através de seu contato
direto com ela e, é claro, utilizá-la – mesmo de forma indireta – para movimentar a economia local.
Ao redor desses parques, uma grande infraestrutura turística começou a surgir, com hotéis, pousadas, restaurantes e outros equipamentos. Os parques se tornaram um grande negócio para os turismos locais. Mas, infelizmente, todo esse contingente humano trouxe diversos impactos negativos para a natureza que deveria estar sendo protegida, como a caça, os incêndios, a poluição, o grande volume de pessoas com seus resíduos, barulho e falta de respeito ao meio ambiente.
O que estamos assistindo agora com essa triste e infeliz proposta de concessão dos parques é um verdadeiro ataque a essas unidades. A intenção é introduzir, à força, essa estrutura turística urbana e predatória dentro das áreas protegidas, transferindo para o interior dessas últimas ilhas de natureza todos os impactos danosos da urbanização. Qual é o sentido de se construir hotéis, piscinas, restaurantes e equipamentos de lazer dentro dos parques, se já existem dezenas em seus arredores? Quem ganha com isso? E quantos perdem? Como pode a comunidade de Itaúnas, por exemplo, competir com um resort dentro do parque? E como ficam as comunidades que passaram suas vidas se estruturando para atender aos turistas? E como ficam os moradores “não humanos” que vivem dentro dos parques? Por exemplo, quando uma jararaca, antiga moradora do parque, se aproximar dos hóspedes do hotel, qual será seu destino? Quando as aranhas e escorpiões, residentes do local, entrarem nos quartos para interagir com os hóspedes, o que será deles? E as pererecas que entrarem nas piscinas cloradas, ou os insetos que morrerão atraídos pelas luzes? É preciso estar muito alienado das questões ambientais para propor algo assim para um parque natural, e ver tal proposta sendo apresentada com entusiasmo por um “secretário de meio ambiente” é estarrecedor, um acinte a todos que conhecem esses lugares e aos capixabas em geral. Imagine, por exemplo, um animal que, ao longe, sinta o cheiro da comida produzida no restaurante dentro do parque, o que ele fará? Continuará caçando seu alimento ou irá atrás de algo que nunca será capaz de ter? Qual seria a reação dos hóspedes ao se depararem com um carnívoro faminto olhando para eles?
Outro argumento apresentado é que isso iria “fomentar” o turismo e gerar empregos locais, ideia que não se sustenta. Alguém aqui imagina que o turismo em Itaúnas, por exemplo, precise desse tipo de fomento? A vila já recebe em algumas épocas mais gente do que é capaz de comportar, e todo o litoral capixaba já recebe um turismo de massa com seus impactos. Então, para que levar isso também para o interior dessas unidades? Aí entrarmos em outro ponto importante.
O turismo de massa está se disseminado por todo litoral capixaba, com bares, restaurantes, pousadas, quiosques, música, agito e muita, muita gente. O interior dos parques atende a um outro tipo de turista, o turista que não quer toda essa movimentação, mas sim um contato mais profundo com a natureza. São cada dia mais raros os lugares que proporcionam esse tipo de experiência e é nas unidades de conservação, como os parques, que isso pode acontecer. Piscinas, tirolesas, restaurantes e música existem em profusão ao redor dessas unidades, mas o som do vento, o canto dos pássaros, o coaxar dos sapos, só existem ainda dentro delas. Esse tipo de experiência não tem preço, e é cada dia mais rara e valiosa para nossa saúde física e mental.
Além disso, o pior dos argumentos dos defensores desse projeto é o de que apenas 0,1% da área dessas unidades seria utilizada nas edificações, e isso não traria impacto. Ora, um tumor cancerígeno ocupa bem menos do que 0,1% do corpo, mas o destrói completamente. É óbvio que os impactos causados nessas unidades não seriam apenas pelas estruturas construídas, mas principalmente pelo fluxo de pessoas trazidas por elas. Há uma previsão no projeto de Concessão do Parque Paulo César Vinha, em Setiba, de se construir um estacionamento para mil carros! Esse fluxo humano e de veículos afugentaria qualquer animal e contaminaria a água da lagoa. É insano, é cruel, é esdrúxulo e ilegal. Aí entra um último ponto de reflexão. O Parque de Itaúnas foi criado pelo governo do estado do Espírito Santo na década de 1990 como uma forma de proteger aquele lugar, pois havia uma proposta já adiantada de se construir um resort em seu interior. E, ironicamente, agora é o mesmo governo quem propõe a construção do resort! É lastimável ver o quanto o poder econômico avançou sobre a política, elegeu seus representantes, e agora quer se apropriar de tudo que é público, de tudo que é belo, de tudo que pertence à população.
As doenças autoimunes são aquelas em que o próprio organismo começa a se destruir por dentro, quando as células que deveriam nos defender, nos atacam. A humanidade está vivendo como se tivesse uma doença autoimune: os órgãos que deveriam nos defender, nos atacam; um secretário do meio ambiente propõe um projeto que cria as condições para a destruição dos lugares onde a natureza deveria ser soberana. Mas há uma legião de pessoas e entidades agora mobilizadas contra esse absurdo e na luta para que esse projeto não se concretize. Espera-se que mais pessoas se juntem a essa mobilização – o Movimento de Defesa das Unidades de Conservação do Espírito Santo – para que as lideranças políticas compreendam qual o seu verdadeiro papel: que é o de preservar a vida em todas as suas formas e, para tanto, proteger a natureza.
Para ver imagens do Parque Estadual de Itaúnas clique aqui.
*Walter Có é graduado em Ciência Biológicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (1988) e mestre em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (1994). Professor de graduação e pós-graduação em diversas instituições, atua principalmente com os seguintes temas: ecologia, meio ambiente, recursos hídricos, biodiversidade agroecologia, percepção e educação ambiental, Teoria de Gaia e mudanças climáticas.
**Daniela Zanetti é professora Associada do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades (Póscom-UFES). Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Letras pela Universidade Mackenzie. Tem experiência na área de comunicação e cultura, com ênfase em estudos sobre narrativas audiovisuais.
Foto da capa: Parque Estadual de Itaúnas ES – Divulgação
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