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Constituição, 36 anos: defender a democracia

Constituição, 36 anos: defender a democracia

Artigo por RED
09/10/2024 09:00 • Atualizado em 08/10/2024 11:46
Constituição, 36 anos: defender a democracia

Por TÂNIA MARIA SARAIVA DE OLIVEIRA*

As regras formais postas no ordenamento precisam que os atores as conheçam, respeitem e defendam

“A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito. Mudar para vencer. Muda, Brasil!”.  

O Brasil de 1988 que ouviu essas palavras da boca do então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, ao promulgar a nova Constituição brasileira, conhecida como a “Constituição Cidadã”, era um país de fato em mudança, no qual a nova Carta tornou-se o símbolo da redemocratização do país após décadas de uma ditadura militar que ceifou vidas e impôs o silêncio dos quartéis. Não sem resistência, por óbvio.

As conquistas de direitos sociais em áreas como educação, inclusão e saúde, aliadas à liberdade de pensamento e de crença, uniram-se aos desafios de implementar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito.

Evidente que, como a história não é linear, o processo de transição democrática do país foi tenso e com descontinuidades, apresentando avanços e retrocessos, o mesmo em relação ao texto constitucional, que desde sua publicação esteve em disputa, operando perdas e reconquistas dentro do projeto de sociedade buscado pelos grupos sociais em ação.

A Constituição Federal do Brasil completa 36 anos na véspera do dia em que as pessoas vão às urnas eleger seus representantes nas prefeituras e nas câmaras de vereadores, em um país altamente polarizado, não necessariamente entre projetos para as cidades. As campanhas nos grandes centros foram marcadas por comportamentos altamente desrespeitosos, ataques pessoais e atos de violência que, na prática, tornam impossível a visualização pelos eleitores das diferenças entre os projetos para a coletividade.

Nas últimas quatro décadas, as mudanças históricas tiveram um ritmo muito mais acelerado que outrora, provocadas em larga medida pelas novas formas de comunicação, com o surgimento da internet e das redes sociais que, por um lado quebraram o monopólio do discurso dos grandes conglomerados, mudando a forma que as pessoas produzem e compartilham conteúdos e interagem em comunidade e, por outro, privatizaram a produção e a circulação de conceitos e narrativas, tirando dos armários criaturas que, antes, eram contidas pela simples existência de uma esfera pública.

A elaboração e disseminação de notícias falsas, sobremaneira com intuito de destruir reputações, tornou o ambiente virtual tóxico e carente de regulamentação.

O crescimento da extrema direita no mundo não poupou o Brasil. Há cerca de uma década passamos a conviver com uma polarização em que o espaço do outro não mais pode ser tolerado, a ouvir discursos que equivocadamente nos pareciam superados, de xenofobia, machismo, racismo, negacionismo climático, ambiental e científico, em uma retórica de ódio camuflada por valores supostamente morais, um entrelaçamento entre religião e Estado, falsos enunciados sobre ética, com acusações em que corrupto é sempre o outro, seu inimigo. Aliás, os adversários políticos se transformaram em inimigos.

O acirramento se deu de tal forma que famílias e amizades foram desfeitas em decorrência da intolerância e do alinhamento com pessoas públicas e pensamentos distintos.

Com a ascensão de um líder populista de extrema direita, amargamos quatro anos de um governo que promoveu o desmonte dos serviços públicos essenciais, para bancar seu projeto político-ideológico de enfraquecimento do Estado, reduzindo direitos para a maioria e aumentando privilégios para minorias.

Nesse cenário, a Constituição Federal, como um texto que se compromete com a busca da superação de desigualdades, que se coloca como base normativa para a realização de projetos de vida com expectativa humanista e solidária sofreu grandes derrotas, não apenas no plano prático de destruição por dentro, como as reformas trabalhista e previdenciária, que transferiram ativos e reorientaram o orçamento público de financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira, mas também com o uso artificial e deturpado de seu texto.

É assim com o discurso que defende “liberdade de expressão” para praticar crimes contra as instituições e a própria democracia, em evidente tentativa de captura de um direito fundamental como absoluto, como se proclamasse uma espécie de vale tudo.

As famosas “quatro linhas” postas nas falas de Jair Bolsonaro (PL) e seus asseclas certamente não comportam os direitos fundamentais e os princípios que informam a vida política e social. Ao oposto, são apenas emblemáticas de busca do uso de mecanismos legais com o objetivo de eliminação do adversário.

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2018 e a tentativa de impedimento do ministro do STF Alexandre de Morais na atualidade são exemplos cabais de como a democracia no Brasil assumiu contornos de um combate que não observa o regramento nem a tolerância exigida pela institucionalidade. O uso do Direito como arma política, conhecido como lawfare, virou regra nas mãos daqueles que não aceitam o jogo na arena correta das disputas legitimas.

No mesmo sentido, a tentativa de usurpação do texto constitucional por aqueles que a descumprem diuturnamente evidencia que uma Constituição, qualquer que seja ela em qualquer parte do mundo, não é suficiente para sustentar um regime democrático pleno. São as práticas político-institucionais que sustentam seus mecanismos de controle, responsabilização e organização dos instrumentos e órgãos dentro dos poderes instituídos. Dito de outro modo, as regras formais postas no ordenamento precisam que os atores as conheçam, respeitem e defendam em suas práticas políticas.

Nossa balzaquiana Constituição, portanto, segue necessitando que a defendamos, que a fortaleçamos e a tenhamos como norte não apenas pelo seu conteúdo, mas no sentido de seu aperfeiçoamento e do fortalecimento de condições político-institucionais que evitem a derrocada da democracia.

 

*Tânia Maria de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB (GCcrim/UnB) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Compõe a equipe do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Governo Federal.

Foto:  FLickr/ Agência Senado

Publicado originalmente em Brasil de Fato.

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