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O Passado nos domina
O Passado nos domina
Por LINCOLN PENNA*
Se o passado é o tempo imediatamente anterior aos eventos registrados na memória de um indivíduo, como sugere o historiador Eric Hobsbawm, cabe a história recuperá-lo. Daí, a necessidade de se valer do conhecimento histórico sistematizado ou resultante de pesquisas que incorporem novos aspectos ainda não devidamente constantes nos acervos existentes. Só assim, é possível compreender a realidade de nosso tempo.
Por que essa reflexão às vésperas de mais um pleito eleitoral? A resposta está na premissa de que se não conhecemos de fato aquele passado que escapa aos nossos registros pessoais e, portanto, à nossa compreensão razão pela qual estamos fadados a ignorar os fenômenos que assaltam o nosso conhecimento e compreensão da realidade. Digo isso em razão do surgimento de candidaturas em plena projeção a violentarem a civilidade e o legítimo direito da controvérsia, própria da democracia enquanto coexistência dos contrários. Assim, nas duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, existem candidatos que têm se notabilizado pela defesa de concepções retrógradas e antidemocráticas, sejam no plano social ou no plano das esferas científicas e culturais.
Trata-se de um fenômeno atrelado a um passado da velha Casa Grande, que resiste aos avanços inevitáveis do presente. Tal atitude, combina a ignorância manifestada sem pudor com a negação consciente da evidência associada às mais truculentas atitudes de intolerância e da agressividade contra seus adversários. Retrocesso que a despeito de tantos avanços do conhecimento para que se possa descortinar aquele passado que escapa aos nossos registros, é usado não apenas por desconhecimento. Seu uso insistente faz parte de um projeto regressista conscientemente arquitetado.
Nesse sentido, esse fenômeno que consegue atrair o eleitorado desiludido com os “políticos”, como se esses arautos da defesa da honestidade, da família e da propriedade sob o falso signo da liberdade fossem realmente dignos do apreço do cidadão. Geralmente a essa suposta defesa das pessoas tementes de mudanças na ordem social por conta da “ameaça comunista” consegue sensibilizar os incautos, os ingênuos, e aqueles ou aquelas desprovidas de um mínimo de percepção do jogo sujo nos processos eleitorais para angariar votos.
Todavia, a razão para explicar o surgimento dos tipos que por meio da política a desconsideram, como se sua prática fosse necessariamente nociva, não se restringe à constatação do fenômeno que tem invadido o espaço político-eleitoral. Há um conjunto de fatores que podem ser acrescidos para explicar o porquê dessa presença nas campanhas eleitorais e fora delas também, pois se manifesta no cotidiano da prática política.
Um desses fatores se encontra na baixa credibilidade das instituições políticas. Nos três poderes existem, razões para que parcelas numerosas da população brasileira tenha cada vez mais adotado uma posição de descrédito quanto ao papel que delas se espera. Junto a isso tem crescido também o desgaste das correntes e partidos de esquerda, notórios defensores de soluções que minimizem ao menos o sofrimento de segmentos sociais desassistidos pelos poderes públicos. Neles ocorre ou a máxima ideologização ao arrepio das realidades, ou a acomodação burocratizada no âmbito de suas organizações ou nos cargos públicos.
Em ambos os casos, as instituições e os partidos políticos, mormente os de esquerda, mesmo tendo consciência dessa situação têm feito muito pouco para lograr superá-la. A própria capacidade de mobilização das massas, algo costumeiramente usual nas lideranças políticas dessas correntes partidárias e em seus movimentos sociais não tem sido alcançado. Na maior parte das vezes tem havido uma grande dificuldade para a retomada das manifestações de rua. Fato que não deve ser secundarizado por quem deseja refletir seriamente sobre isso.
A primeira e imediata solução para o enfrentamento desses problemas é o de reconhecer de que ele existe objetivamente. E sendo assim é claro que impacta nos momentos em que se consulta o eleitorado. Logo, ter consciência e ciência desse desafio de se enfrentar algo que nos incomoda é o primeiro passo. A partir dessa constatação cabe as mais lúcidas lideranças ensejar o exercício das práticas democráticas, que consiste basicamente em ouvir o contraditório e ter a maestria de reconstruir os caminhos que levem à participação massiva do povo mais necessitado em prol de si mesmo.
Até porque a justiça social é o combustível que faz sobreviver a esquerda e seu projeto transformador voltado para a construção de uma sociedade libertária, estágio mais alto da democracia social. Vencer as amarras de uma sociedade ainda solidamente presa ao que de pior é representado pelo nosso passado deve ser o objetivo a ser perseguido para que seja possível consolidá-lo. Mas, urge que se suprimam as estruturas que emperram essa libertação.
A preservação dessas estruturas fundadas na escravização de amplas parcelas do povo mantidas durante séculos sob o domínio do patrimonialismo, que ainda impera nos processos políticos contemporâneos, tendo sido apenas modernizado em suas práticas, é um compromisso com o tempo presente. Com isso, vislumbraremos o futuro que garanta a verdadeira abolição da valorosa gente brasileira.
Eleições são importantes como consultas regulares aos cidadãos interessados nos rumos do país, mas não basta apenas votar. É preciso que reflitamos sobre o que se passa em nossas vidas, sempre com um olhar coletivo, único, em condições de conjugar a vontade individual compartilhada com a de seus concidadãos. A partir dessa atitude consciente calcada na interlocução aberta e livre de modo a unificar desejos que necessitam de representantes que os façam gerar resultados é que seremos capazes de se desfazer de um passado que ainda nos oprime como nação.
Para isso, uma condição torna-se essencial: rejeitar os salvadores da pátria, o novo bonapartismo, que em nome do povo engendra novas formas de aprisionamento que o impede de se libertar. Da mesma maneira que não será nunca desqualificando a política e os processos eleitorais que se chegará ao porto seguro do bem-estar do povo. Esse passo só será obtido com a participação popular, pois, sem essa participação nada assegurará que consigamos erguer um novo tempo, no qual a paz social só será concretizada com a segurança cidadã medida pela resolução de todas as suas necessidades essenciais. Fora isso é a restauração continuada do passado indesejável.
*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).
Foto: Freapik
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