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NEUTRALIDADE OU ALIENAÇÃO? O QUE A INDIFERENÇA POLÍTICA NO BRASIL REVELA SOBRE A NOSSA DEMOCRACIA
NEUTRALIDADE OU ALIENAÇÃO? O QUE A INDIFERENÇA POLÍTICA NO BRASIL REVELA SOBRE A NOSSA DEMOCRACIA
Por ALEXANDRE CRUZ*
Uma pesquisa recente do DataSenado revelou um dado que merece reflexão: 40% da população brasileira com direito ao voto não se considera nem de esquerda, nem de direita, nem de centro. A palavra que muitos usam para descrever essa postura é “neutralidade”. Essa massa de brasileiros, que opta por não se definir ideologicamente, parece estar em busca de soluções práticas para os problemas que enfrentam no dia a dia, deixando de lado as “caixinhas” ideológicas tradicionais.
No entanto, essa escolha de neutralidade me remete diretamente ao texto “Analfabeto Político”, de Bertold Brecht. Escrito décadas atrás, ele continua extremamente atual, principalmente em tempos de crise e descrença política. Brecht afirmava que “o pior analfabeto é o analfabeto político”. E é sobre isso que precisamos refletir ao ver esses números: será que essa suposta neutralidade política, que rejeita a identificação ideológica, está nos levando a uma apatia e alienação, como a descrita por Brecht? Ou é uma forma consciente de fugir da polarização?
A pesquisa mostra uma clara tendência dos eleitores mais pobres a não se identificarem com ideologias políticas. Entre aqueles com renda familiar de até dois períodos mínimos, 47% afirmam não se posicionar nem à direita, nem à esquerda, nem ao centro. Esse dado ecoa o que Bertold Brecht denunciou: o desprezo pela política, que para ele, leva ao sofrimento das situações mais vulneráveis.
Quando Brecht falou sobre o analfabeto político, ele criticou com razão essa indiferença que permite que “os preços das batatas, da farinha, do aluguel e dos remédios dependam de decisões políticas”. A neutralidade ou a falta de interesse em se posicionar ideologicamente não é, em muitos casos, uma escolha livre e consciente. Ela muitas vezes reflete a falta de oportunidades, de educação política e de um sistema que desilude a população, especialmente os mais pobres, que são os mais impactados por essas decisões.
Outro ponto importante da pesquisa é que, à medida que a renda aumenta, a neutralidade diminui. Nas famílias com renda superior a seis períodos mínimos, apenas 21% dos entrevistados não se identificaram politicamente. Isso nos faz questionar: seria a neutralidade um reflexo das desigualdades sociais? Aqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade econômica estariam, de fato, desamparados politicamente?
Uma análise de Bertold Brecht sugere que sim. Quando ele diz que “do ventre do analfabeto político nasce o bandido, o menor abandonado, o pior de todos os bandidos”, está apontando que essa alienação ou neutralidade cria espaço para a perpetuação de injustiças e para o crescimento de líderes políticos oportunistas, que exploram a falta de clareza e engajamento político da população.
Outro dado que chama atenção é a confiança nas urnas eletrônicas, que divide os participantes. Aqueles que se identificam com a esquerda influem majoritariamente no sistema, enquanto 61% dos participantes de direita desconfiam dos resultados. Para Brecht, o analfabeto político não apenas ignora as decisões políticas, mas também não confia nas estruturas democráticas, o que é perigoso para a própria sobrevivência da democracia.
Essa desconfiança disseminada, sobretudo entre os eleitores de direita, é um reflexo de discursos que questionam o processo eleitoral, enfraquecendo um dos pilares da democracia: a fé no sistema eleitoral. Bertold Brecht nos lembraria que a fragilização dessas estruturas abre caminho para um ciclo de descrição que pode culminar em crises mais graves. A própria base do processo democrático, que é a eleição, está sendo colocada em xeque.
Ao relacionar os dados da pesquisa com o texto de Brecht, percebemos que a neutralidade política, muitas vezes apresentada como pragmatismo ou exclusão aos extremos, pode, na verdade, esconder uma forma de alienação. É exatamente esse cenário que Brecht criticava com tanto vigor: a indiferença política que permite a manutenção das injustiças e desigualdades.
Se continuarmos acreditando que a política é algo distante, e que não precisamos dela para resolver nossos problemas cotidianos, caímos na armadilha descrita por Bertold Brecht. Precisamos, sim, de uma população politicamente alfabetizada, que reconheça o impacto de suas escolhas e a importância de se engajar no debate ideológico.
Brecht não escreveu sobre o Brasil do ano 2024, mas suas palavras parecem ecoar algo muito assustador no cenário atual. Resta saber se conseguiremos reverter esse quadro, ou se continuaremos a alimentar esse “analfabetismo político”, que, no fim, cobra seu preço mais alto justamente aqueles que mais precisam da política para sobreviver.
*Jornalista político
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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