?>

Opinião

O fetiche da lei e a manipulação das vontades domesticadas

O fetiche da lei e a manipulação das vontades domesticadas

Artigo por RED
30/09/2022 15:12 • Atualizado em 01/10/2022 01:34
O fetiche da lei e a manipulação das vontades domesticadas

De BEN-HUR RAVA*

A crença absoluta e desenfreada na legislação brasileira como sendo capaz de parar, estancar, punir e solver todo o resquício de corrupção nacional, estandartizada na chamada “Operação Lava-Jato” teria sido positiva se não se tivesse prestado a ser um simulacro de justiçamento contra inocentes e um embuste político a privilegiar certos grupos ávidos por poder.

Acabou, no entanto, sendo uma quimera fantasiosa, que propiciou lenitivo pouco duradouro e um balaio de falsas esperanças aos cidadãos, não discriminando entre estes, os sagazes dos tolos úteis, pois todos de forma geral, se arvoram contra os desatinos da corrupção nacional.

A força-tarefa denominada de “Operação Lava-Jato” ou “República de Curitiba” foi conduzida e criminosamente manipulada por um grupo de Procuradores do Ministério Público Federal (MPF), sempre secundados por Delegados e investigadores da Polícia Federal. Contou em grande e descarada medida com a conivência e maior orquestração que já se teve notícia no sistema brasileiro de justiça de um Juiz Federal incompetente e ávido por fama, poder e fortuna, que conseguiu que alcançou alguns outros juízes sequazes, no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), além do Supremo Tribunal Federal (STF).

Mancomunados com a elite dirigente e o alto baronato da mídia conservadora tudo fizeram e montanhas moveram, ainda que de modo inconstitucional e ilegal, para tirar da disputa, o então franco favorito à eleição presidencial de 2018, Luiz Inácio Lula da Silva.

E fizeram mais que isso. Condenaram, entre alguns corruptos merecidos, outros tantos inocentes, como se o critério de apuração das culpas se desse com a jogada de uma tarrafa ao mar. Entre grande e miúdos, pegam-se todos os peixes.

Tal conluio de servidores públicos graduados da justiça fez somente destruir reputações e jogar na lama o prestígio do sistema judicial brasileiro.

Por isso que a classe dos advogados – ao menos aqueles comprometidos com a democracia e o Estado de Direito, dois grandes pilares da ordem constitucional brasileira levantaram sua voz e alertaram a que o sistema judicial no caso concreto não fosse tão afoito, nem demasiado comedido. Que simplesmente fosse seguido o devido processo legal (“due process of law”), isto é, a plena vigência das “regras do jogo” e se observassem os princípios constitucionais que asseguram o contraditório e a ampla defesa a qualquer acusado.

Há que se analisar toda essa ópera bufa e com final trágico “cum grano salis”.

A expressão fetichismo, derivada do étimo latino “ficticius”, na forma lusa aparece-no como feitiço. Por volta de 1750, o magistrado Charles Brosses, observando algumas tribos africanas atribuiu o termo “fetichisme” por decorrência dos objetos que eles adoravam, os quais eram tidos por mágicos, encantados ou enfeitiçados. A seguir, no âmbito da sociologia francesa, Auguste Comte usou esse conceito a efeito de designar o modo mais primário do pensamento do homem relacionado e direcionado à observação das coisas na formação preliminar dos grupos sociais. Quase um simbolismo imagético e alegórico de Totem e Tabu, na versão freudiana.

Contudo foi o jurista francês François Geny que usou a expressão “fetichisme de la loi”, isto é, “fetichismo da lei”, para criticar, no plano da hermenêutica, o método de interpretação exegético. Para ele a pura exegese de textos legais ou suas interpolações de significados não levava a muito longe. Era preciso que o costume trouxesse novas percepções sobre a realidade social e seus desdobramentos possíveis em variadas realidades e circunstâncias.

Logo, a lei não pode ser nem é um objeto de manuseio encantado na mãos dos operadores jurídicos e dos atores na arena judicial. A lei não se traduz num cetro encantado que tem o poder de irradiar luzes milagrosas de transformação social.

Por tanto, acreditar de modo ilimitado nos “poderes mágicos da lei” e sua simples capacidade de restaurar a normalidade institucional após distribuir as parcelas de culpa e sanções indiscriminadas pelos malfeitos produzidos em decorrência da corrupção enraizada e espraiada pelo tecido social e político, sem a capacidade de estabelecer uma mediação criteriosa, graças a processos hermenêuticos que oportunizem significado e sentido de toda a compreensão do processo de degeneração ética e política, gera o risco de ver fenecer o que não se consagrou, de ver perecer, ainda no broto da jovem democracia aquilo que se esperava que florescesse; ou seja, a esperança na mudança dos costumes arraigados nas práticas pessoais e patrimonialistas desde que nessa terra brasilis aportou a nau capitânia.

Os problemas antes de tão-somente jurídicos, o são, sobremodo, de natureza histórica, social, econômica e, sobretudo, política.

A lei, por si só, numa mera e isolada circunstância jurídica – e a maioria dos operadores jurídicos que têm uma visão complexa e crítica sobre o Direito o sabem – não é o único mecanismo de solução das mazelas institucionais. Se assim o fosse, nada passava pela trama de seus fios. Quase sempre, sua textura é aberta ou esgarçada. Invariavelmente os fatores reais do poder são os próprios interessados nesse processo de abertura e esgarçamento.

Há muito de não dito na vocalização da “lex”, pois oráculos e sacerdotes diziam muito mais do que a própria lei permitia; hoje, esse pepel cabe aos homens de toga.

A tarefa é mais árdua do que esperam os simplistas. Há que se desvelar o que intenciona lei no confronto daquilo que dizem seus intérpretes o que realmente querem seus aplicadores.

Os que veem, creem ou estimulam vocações heroicas e salvacionistas em defesa das nossas instituições e do projeto nacional somente com o uso da lei, esquecem que esse manejo também pode ser feito para adiar, procrastinar, atrasar, esquecer, perdoar. A lei que fere é a mesma lei que pode ser ferida por qualquer um, por qualquer grupo, a qualquer momento. Diria mais: que a lei – como pretensa espada – depende mais da arte do seu manejador do que da potência de seu golpe. Bastam motivação e interesses preordenados.

A lei, na sua mais pura apreciação, em estado bruto, despida de qualquer índice de conteúdo e alcance, ou de tomada de sentido direcionado, é mero fetiche (essa tortuosa palavra francesa que, haurida no latim, nos dá a ideia daquilo que é “artificial, fictício”). Um fetiche traduz um ídolo, um amuleto, um objeto material ao qual são atribuídos poderes mágicos, sobrenaturais, inexplicáveis. Dito de outro modo, o fetiche traduz um simbolismo que se relaciona à fantasia que paira sobre um determinado objeto, projetando nele uma relação social específica, definida e estabelecida entre os homens.

No mundo real do Direito, precisamos muito mais de razão e sensibilidade para compreensão da lei e sua exata e proporcional aplicação, mediada por tantos outros fatores extralegais.

Porém, o povo, ávido por ídolos e situações salvacionistas ou próprias de um sebastianismo permanente, pensam que só a lei é o seu “bezerro de ouro”. Não atentam, ao menos os mais apressados, para os simulacros de cena de parte daqueles que forjam e manejam o aparato e o instrumental legal e legislativo. Esquecem-se, assim, no largo espectro da conturbada cena jurídica, alimentada pela diatribe midiática, o real poder e alcance da parca “magia” da pura e simples lei a mudar os destinos nacionais.

Há que se lembrar que a toda a lei, como criação humana, racional é, pois, artificial uma vez que destinada a cumprir determinadas pautas de controle social. Ela é fruto da criação política para dar forma e animação jurídica; isto é, todo o Direito nasce da vontade política. Não o contrário. Sem vontade política um projeto de lei, dormitará anos num escaninho legislativo.

E a questão que se coloca em toda essa movimentação de cunho jurídico é: onde foram parar os limites do político? Uma vez que se deslegitimaram todos os possíveis discursos acerca da necessidade de alternativas construídas no âmbito parlamentar, que é onde, graças à promessa da modernidade (o surgimento da Rule of Law, État de Droit, Rechsstaat ou simplesmente, Estado de Direito), deveria ser o local de criação da lei, como instrumento de legitimidade do poder soberano popular. Significa dizer que o político está descontrolado. E aí cria-se o vácuo para qualquer sorte de aventura: desde a judiciária exacerbada, passando pela populista até a manu militari.

Acerca desse processo todo, pois, que envolveu a chamada “Operação Lava-Jato” o que se viu foi um grande embuste midiático, uma requintada espetacularização política da corrupção e da denerescência que está incruada na prática das elites tradicionais e que, gradualmente, foi encontrado solo fértil nas práticas e trocas políticas onde os Poderes da República.

Ali, nos Executivos, Parlamentos e Tribunais, alguns de seus membros passaram de condutores a títeres na mão da imprensa, manipuláveis à custa de interesses maiores, porém ocultos da grande parte da população que assiste a tudo, de forma domesticada, e custa a ver alguma coisa que está muito bem escondida, dissimulada, encoberta com véus muito densos, como são os desígnios da própria Lei e, quiçá, da Justiça.

*Advogado em Porto Alegre. Professor universitário.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.