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Enchentes e eleições: o desafio da esquerda em Porto Alegre

Enchentes e eleições: o desafio da esquerda em Porto Alegre

Artigo por RED
26/09/2024 13:00 • Atualizado em 25/09/2024 15:52
Enchentes e eleições: o desafio da esquerda em Porto Alegre

Por ALEXANDRE CRUZ*

A recente tragédia das enchentes, que abalou Porto Alegre, revelou muito mais do que a vulnerabilidade da cidade diante das mudanças climáticas. Ela expôs também um sentimento crescente de frustração e descrédito por parte da população em relação aos governos, percebidos como incapazes de enfrentar crises que, para a maioria das pessoas, estão diretamente ligadas às transformações climáticas. As pesquisas mais recentes indicam que esse vínculo é claro para os cidadãos; para eles, as mudanças no clima não são uma abstração, mas uma realidade com consequências devastadoras.

Apesar do impacto emocional e material causado pela enchente, o prefeito Sebastião Melo segue à frente nas intenções de voto. Para muitos, isso parece paradoxal: como pode uma liderança, cujo governo foi amplamente criticado por sua resposta à tragédia, manter-se como o nome principal no cenário eleitoral? A resposta a essa pergunta é multifacetada e nos convida a refletir sobre os bastidores da política local, as alianças que sustentam a hegemonia de Melo e os desafios que a esquerda enfrentará para romper esse ciclo de poder.

Sebastião Melo não é o candidato ideal das elites econômicas de Porto Alegre, mas é o que possui os votos Apoiadores do liberalismo econômico, setores do empresariado podem até preferir nomes mais afinados com suas pautas, como Felipe Camozzato, do Partido Novo, que tem uma proposta de governo mais abertamente alinhada ao projeto econômico das elites. Contudo, Camozzato patina nas pesquisas com apenas 5% das intenções de voto.

A força de Melo reside justamente em sua capacidade de transitar entre esses dois mundos: por um lado, mantém-se próximo aos grandes empresários, que, em 2020, deslocaram seus recursos para sua campanha, após o desgaste do ex-prefeito Nelson Marchezan. Por outro lado, Sebastião Melo preserva uma rede de articulações com setores populares e intermediários, que, somados, formam a base da sustentação eleitoral.

Essa habilidade de compor alianças é complementada por figuras como o vice-prefeito Ricardo Gomes, que serve como ponte entre o empresário e a classe política. É uma fórmula eficiente, que, ainda que criticada pela esquerda, mostrou-se capaz de sobreviver a crises — como a enchente — que poderiam abalar qualquer administração.

Enquanto isso, a esquerda enfrenta um dilema: como disputar a hegemonia política e social em uma cidade que se transformou ao longo das últimas décadas? O Partido dos Trabalhadores (PT), que um dia simbolizou a renovação política em Porto Alegre, com a ascensão de Olívio Dutra à prefeitura, viu sua base tradicional se fragmentar. A bancada negra eleita na Câmara de Vereadores, em sua maioria composta por membros do PSOL, revela a força de novas pautas, como antirracista, mas também aponta para uma fragmentação interna que o PT ainda não conseguiu lidar de maneira eficaz.

Mais do que nunca, a esquerda precisa entender que a disputa não se dá apenas no campo racional ou programático. A guinada moralista da direita, que pôde mudar de pauta quando o discurso anticorrupção perdeu força, tem se mostrado eficaz em atrair e consolidar o apoio popular. O foco em costumes e moralidade, apoiado por uma cosmologia religiosa que permeia o imaginário de grande parte da população, tem se mostrado um ponto central na estratégia de construção de hegemonia da direita.

É preciso reconhecer que, para muitas pessoas, mesmo aquelas que não seguem uma religião de forma ativa, esse discurso tem um apelo emocional que supera o racional. E é nesse campo, o das emoções, que a esquerda ainda se mostra vulnerável.

A tragédia das enchentes oferece à esquerda uma oportunidade única de se reposicionar, principalmente ao se conectar com a crescente consciência ambiental da população. No entanto, isso só será possível se a resposta for mais do que reativa — precisa ser propositiva. A esquerda deve construir uma narrativa convincente de que, diante das crises climáticas cada vez mais frequentes, é necessário um novo projeto de cidade, que coloque em primeiro plano a justiça social e a preservação ambiental.

Essa conexão não pode ser meramente programática; ela precisa emocionar, mobilizar e oferecer esperança. E, para isso, o campo progressista deve aprender a dialogar com a cosmologia religiosa que hoje é uma base de sustentação da direita. Não se trata de adotar pautas conservadoras, mas de encontrar uma forma de reconectar a política com a moralidade social, um tema que, historicamente, sempre esteve no coração dos projetos de esquerda.

A tarefa não é simples. A hegemonia de Melo, mesmo após a enchente, demonstra a força de uma política que pôde se articular em diferentes frentes. No entanto, a esquerda tem a chance de reverter esse quadro, oferecendo respostas concretas para as crises que assolam a cidade, e, sobretudo, reconstruindo uma ponte com o imaginário popular, que ainda busca uma liderança capaz de enfrentar os desafios do presente e construir um futuro mais justo.

*Jornalista político.

Foto: Sebastião Melo/Facebook/Divulgação

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