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Exu, habitante das cidades

Exu, habitante das cidades

Artigo por RED
24/09/2024 09:00 • Atualizado em 23/09/2024 15:13
Exu, habitante das cidades

Por EMERSON GIUMBELLI*

Santa Cruz do Sul é um município gaúcho distante 150km de Porto Alegre. Há algumas semanas a imprensa local repercutiu um comunicado oficial da prefeitura. “A Prefeitura de Santa Cruz do Sul informa que a proposta de erguer uma estátua em homenagem às religiões de matriz africana, apresentada pelo Conselho Municipal do Povo de Terreiro, está atualmente em fase de estudo.” Algumas linhas adiante, lemos: “Esse projeto visa valorizar a rica contribuição cultural afro-brasileira, promovendo respeito e inclusão”.

Os termos do comunicado são significativos. Dialogam com demandas que tornam imperativa a expressão de nossas pluralidades sociais nos espaços urbanos. Como está indicado, a reivindicação parte de um coletivo que organiza lideranças locais vinculadas a religiões de matriz africana, praticantes do Batuque e da Umbanda. A existência do Conselho é a demonstração de que essas religiões não estão presentes apenas nas grandes cidades.

Vale lembrar que o Rio Grande do Sul se destaca como o estado com maior percentual de adeptos declarados de religiões afro-brasileiras. Mais significativo ainda é o número de templos dessas religiões, que em algumas cidades gaúchas, incluindo sua capital, supera o de igrejas cristãs em bairros das periferias.

Por meio da disposição da administração local em acolher a proposta do Conselho Municipal do Povo de Terreiro abre-se a possibilidade de que as religiões de matriz africana estejam também representadas em espaços públicos. Na cidade já existem monumentos que celebram a colonização alemã, uma estátua de São Cristóvão situada em um dos acessos à cidade e uma cruz de 20 metros de altura localizada em um parque panorâmico. Já é tempo de outras expressões se fazerem presentes em locais similares.

A nota da prefeitura informa ainda que o local para a nova estátua será definido sem prejuízo para “o trânsito, a circulação e a segurança da população”. E continua: “A Prefeitura reforça que essa homenagem será realizada de forma a não causar afronta ou contrariedade a outras religiões, reafirmando seu compromisso com o bem-estar de todos os cidadãos, independentemente de etnia, religião ou crença, e assegurando que todas as ações sejam realizadas com o objetivo de beneficiar toda a comunidade“.

Novamente os termos são muito expressivos. Neste caso, expressam a desvantagem social das religiões de matriz africana em relação a outras tradições religiosas. Em se tratando de um monumento cristão, muito provavelmente os termos “afronta” e “contrariedade” não seriam cogitados. Convivemos ainda com muitos preconceitos a respeito do Batuque e da Umbanda e não é por acaso que seus adeptos estão entre as vítimas mais numerosas de ocorrências de intolerância religiosa.

As precauções da administração local reagem às declarações de um dos integrantes do Conselho do Povo de Terreiro a uma rádio local. Moa Fanfa, sacerdote do Batuque, apresentou a proposta do monumento defendendo que a estátua seja uma representação de Exu, sugerindo que ela tivesse as mesmas dimensões da imagem de São Cristóvão e fosse localizada em outro dos acessos à cidade.

Exu é como nos referimos em português a uma divindade nomeada na língua iorubá, um idioma da África ocidental, uma das regiões de onde foram traficadas pessoas em condição de escravidão que construíram nosso país. Designa uma das várias divindades que formam o panteão dos orixás, cultuadas pelas religiões de matriz africana.

Talvez por seus atributos sexuais e por suas ambivalências, Exu foi associado, por missionários cristãos, ao diabo. Por isso, se tornou o foco de um processo mais amplo, que só pode ser entendido no contexto da escravização de um povo por outro: a demonização dos deuses alheios.

Há outras formas de representação das religiões de matriz africana. Podemos lembrar das imagens de Iemanjá e de Oxum que encontramos nas margens de praias e de lagos. A opção por Exu sinaliza enfaticamente a reivindicação por respeito, na medida em que recai sobre a figura que sofreu mais agudamente com a associação demonizadora.

Exu, vale repetir, não é um demônio. Para compreender seu lugar dentro de ritos muitas vezes festivos, é necessário atentarmos para as cosmologias de religiões que são diferentes das cristãs e que mobilizam as energias de muitas pessoas e instituições. Por que não teriam um lugar reconhecido e legitimado em nossas cidades?

Em Porto Alegre, já convivemos com monumentos que representam Exu. Na região do Porto Seco, nordeste da cidade, desde 2020 há uma estátua do Homem da Noite. Ela foi viabilizada por uma lei municipal de 2019, que nomeou o lugar como Rótula dos Quimbandeiros. A estátua foi concebida e doada por um pai-de-santo.

Nesse caso, a figura associa-se ao modo como Exu é cultuado na Quimbanda, que é uma derivação da Umbanda. Trata-se de uma releitura das referências originais, transformando o orixá em uma entidade que integra outro panteão religioso, ao lado de caboclos e pretos-velhos, e com sua contraparte feminina, as pombagiras.

Outro monumento que representa Exu em Porto Alegre está no Mercado Público, um dos lugares mais queridos da cidade. Quem anda por lá não pode deixar de notar o mosaico incrustado no chão, exatamente no centro do edifício. Obra coletiva, foi inaugurada em 2013 como parte do Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, projeto que visa dar visibilidade à presença negra na cidade, no tempo atual e no passado.

No Mercado Público, a representação de Exu alude ao orixá, que no Batuque é cultuado sob o nome de Bará. O monumento é recente, mas a “tradição do Bará do Mercado” é centenária. Outros atributos de Exu o associam aos mercados, lugares de fluxos. Ele é o senhor das encruzilhadas, abre os caminhos, e por isso as chaves é que ornam o mosaico localizado no ponto onde os acessos se encontram.

Tanto na Rótula dos Quimbandeiros quanto no cruzeiro do Mercado ocorrem eventos que contribuem para dar vida a esses lugares e para reforçar memórias da presença negra. São monumentos que podem inspirar outros, como esse que deve vir a existir em Santa Cruz do Sul.

*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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