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Rússia e Ucrânia, os Dois Lados da Guerra
Rússia e Ucrânia, os Dois Lados da Guerra
Por J. CARLOS DE ASSIS*
A chamada civilização ocidental é um desastre completo do ponto de vista humanitário. Na África e na Ásia, seus exércitos de colonizadores, principalmente europeus, levaram morte e terror para conquistarem os povos locais até meados do século XX, fazendo da hegemonia militar um instrumento de hegemonia política. Posteriormente, quando os colonizados se levantaram em sangrentas lutas pela liberdade, deixou como legado para eles uma completa desorganização social que resultou, modernamente, em mortíferas guerras civis em muitos países.
A conta dessa desorganização está sendo cobrada do próprio povo europeu. Imensas correntes de emigrantes, aos quais a colonização não possibilitou uma alternativa de desenvolvimento doméstico, estão abandonando seus países de origem, expulsos pela instabilidade política por guerras civis e pela fome. As consequências do colonialismo europeu têm sido, assim, igualmente perversas para os dois lados. Países como França, Itália e Inglaterra, entre outros, já não estão suportando o peso sobre sua infraestrutura social e econômica de demandas trazidas pelos antigos colonizados.
Entretanto, não há nada pior, para a humanidade, do que o legado da hegemonia norte-americana, imposta militar, econômica e financeiramente, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Em nome da defesa da “democracia” e do combate ao comunismo, Washington adotou uma política intervencionista que, com base em sua supremacia militar no curto prazo, deixou as piores consequências para o mundo, no tempo atual. Vítimas desse processo não são mais os colonizados pelo imperialismo norte-americano, mas o mundo inteiro.
De fato, por efeito da intervenção dos Estados Unidos na Coreia, na China e em todo o Oriente – nesse caso, agora, através da injustificada tentativa da OTAN de expansão sobre a fronteira russa -, o mundo ficou sob o tríplice risco de guerras nucleares catastróficas. A Coreia do Norte tornou-se, surpreendentemente, uma potência atômica. Ela já desafia os Estados Unidos e pode arrastar o mundo para a liquidação total. A China, também uma potência nuclear, a qualquer momento pode exigir a unificação com Taiwan, a despeito da proteção militar que os EUA vêm dando à ilha desde 1999.
No caso da OTAN, a decisão norte-americana de expansão para o Leste, sob Bush pai e confirmada pelo filho, ultrapassou qualquer limite de prudência. De acordo com os acordos verbais feitos com Mikhail Gorbachev, não havia qualquer justificativa para a manutenção dessa organização militar depois que a União Soviética foi extinta em 1999. A Federação russa extinguiu o Pacto de Varsóvia e tornou-se progressivamente um país capitalista, curvando-se aos modelos políticos ocidentais, sem qualquer indicação de que retomaria um curso intervencionista contra vizinhos.
Foi a OTAN, ao contrário, seguindo instruções norte-americanas, que tomou um rumo intervencionista, arrogante e agressivo contra a Rússia. Aos poucos, sob argumentos de que era preciso se precaver contra intenções intervencionistas falsas atribuídas ao antigo inimigo geopolítico da Guerra Fria, incorporou nas suas fileiras mais de uma dezena de países que haviam participado, antes, da União Soviética. Não havia, como disse, nenhuma justificativa militar para isso. A Rússia de Vladimir Putin se havia disposto inclusive a entrar para a OTAN, mas foi repelida.
Quem reconheceu isso foi Robert Kennedy Jr, herdeiro da mais importante dinastia política dos EUA. Apresentando-se como desafiante de Joe Biden no Partido Democrata, inicialmente com 16% das intenções de voto, ele demonstrou como foram rejeitadas todas as tentativas da Rússia de ter relações normais com o Ocidente, concluindo que o atual governo americano é que “quer a guerra”. Não por outro motivo, sem esperança de vencer Biden e agora Pamela, abandonou os democratas e, para indignação da própria família, decidiu apoiar Donald Trump, já que ele também se diz contra a guerra.
A estratégia norte-americana, ao rejeitar iniciativas confiáveis de aproximação de Moscou com o Ocidente, como essas, simplesmente expôs a determinação de preservação da hegemonia dos EUA em todo o mundo. Entretanto, num período curto de tempo, grandes mudanças econômicas e políticas ocorridas no planeta tornaram obsoletas as pretensões hegemônicas de Washington. A China se tornou a segunda maior economia mundial, a Rússia manteve sua paridade estratégica com os EUA e a Coreia do Norte se tornou uma potência nuclear capaz de desafiar o Império – com um elevado nível de irresponsabilidade de seu governante.
Isso acentuou o risco para a toda a humanidade de guerras nucleares catastróficas, agora com o virtual renascimento da Guerra Fria, sobretudo tendo em vista a reação russa às provocações ocidentais na Ucrânia. Isso porque, antes da guerra, a Rússia avisou várias vezes, apoiada por advertências conciliadoras, porém claras, de seu aliado chinês Xi Jinping, de que o Ocidente deveria levar a sério as alegações sobre a segurança em suas fronteiras. Ao contrário do que os chineses pediam, ela não foi levada a sério.
É nesse sentido que o presidente Luís Inácio Lula da Silva tem plena razão ao atribuir aos dirigentes da Ucrânia parte das responsabilidades pela guerra. A imprensa ocidental está vendo a guerra como um fato isolado, sem causas remotas. O fato é que se Zelensky, um palhaço de televisão sem experiência política, não tivesse insistido tanto em entrar para a OTAN, com uma demonstração infantil de absurda irresponsabilidade política, a Rússia não teria razão para realizar a “operação especial” contra a Ucrânia.
Obviamente, desde o início, os Estados Unidos exerceram um papel preponderante em todo esse processo. Eles estiveram por trás do estímulo à Ucrânia para buscar a adesão à OTAN, e tiveram, junto com nações europeias, oportunidades de evitar a guerra vetando essa adesão. Não vetaram. Ao contrário, alegaram que a Ucrânia, como nação “soberana”, tinha o direito de pedir a adesão. Como se veria à frente, esse Estado “soberano” só não foi liquidado pela Rússia até agora porque faz uma “guerra de procuração” contra a Rússia, com armas estrangeiras. Portanto, não tem “soberania” de fato!
O que a imprensa ocidental não se pergunta é a razão pela qual a OTAN buscou a expansão para o Leste, mediante a incorporação da Ucrânia a seu bloco. A resposta se encontra no novo estilo de recuperação de hegemonia que os Estados Unidos estão tentando impor ao mundo, na era nuclear. Os norte-americanos querem usar a longa linha de fronteiras entre a Ucrânia e a Rússia como uma rota de penetração para as guerras “híbridas” do tipo das que provocaram na chamada Primavera Árabe, desestabilizando países como Líbia, Egito, Síria e outros, de linha política simpática aos russos, ou de países independentes, como o Brasil, como o Brasil, que se atreveram a liderar a construção do bloco BRICS.
De fato, sem possibilidade real de um confronto direto com seu principal adversário estratégico, Washington procura o caminho alternativo de destruí-lo por dentro. Nesse jogo, todo tipo de intrigas políticas são usadas, nas chamadas guerras “híbridas”, com o objetivo de levantar as massas contra governos acusados de autoritários – ou mesmo democráticos, como aconteceu com o Brasil em 2014/15. Mais próxima da Rússia, através da Ucrânia, a OTAN teria melhores condições logísticas para introduzir dentro dela seus espiões e instigadores de violência social e civil.
É preciso recordar que uma das maiores ONGs estrangeiras, a Open Society, presente na Ucrânia desde 1990 com o objetivo de “promover a democracia”, esteve claramente envolvida na incitação de guerras “híbridas” para derrubar, em 2014, um presidente legítimo, Viktor Yanukovych. A razão para a derrubada foi uma proposta da Rússia à Ucrânia para um financiamento de US$ 15 bilhões para compra de gás. Isso aproximaria os dois países num nível não aceito pelos ocidentais. Explodiu então uma “revolução”, em nome da “democracia”, promovida pelos ocidentais, sendo que a resposta de Putin à derrubada de Yanukovych foi a anexação da Crimeia.
Vieram logo em seguida os acordos de Minsk para suspender a guerra. A parte ucraniana, apoiada por milícias nazistas, rejeitou na prática acordos de proteção das populações russófilas do leste do país. Não houve estabilidade. Reunindo suas preocupações de segurança com a intenção de proteger essas populações, Putin decidiu incorporar também seus territórios, já no curso da guerra, legitimando essa decisão com plebiscitos sob seu controle.
Agora estamos no terreno dos fatos consumados. Não há saída a não ser negociações, que serão extremante difíceis. Para isso, os dois lados têm que manifestar interesse na paz, conforme também insiste o presidente brasileiro. Mas parece que, por enquanto, isso não existe.
Realisticamente, como por trás do conflito na Ucrânia o que determina a condução e o curso da guerra são os próprios Estados Unidos, usando Zelensky como um simples fantoche, o mundo não terá verdadeira paz se Washington não recuar de sua pretensão de retomar a posição hegemônica no planeta. Como o grande hegemon anticomunista, o país envolveu-se, ao longo da história, em iniciativas bélicas na Coreia, na proteção a Taiwan e Israel, e na fracassada intervenção no Afeganistão, entre outras. Atualmente, fora a derrota vergonhosa para os guerrilheiros esfarrapados do Afeganistão, todos esses são pontos nevrálgicos que poderão levar a uma guerra catastrófica. E tudo isso, como um legado da hegemonia política que se revelou totalmente fracassada no contexto da civilização ocidental.
O que há de mais asqueroso, nesta guerra, é o comportamento da imprensa ocidental, com raríssimas exceções. Ela ignora sistematicamente essas sucessivas provocações à Rússia que vêm ocorrendo desde o fim da União Soviética, inclusive as intervenções militares pela OTAN na antiga Iugoslávia e na Tchecoslováquia. Um golpista internacional, como o bilionário George Soros, dono da ONG Open Society, que se apresenta como “filantropo”, e que, como Elon Musk, se considera dono do mundo, teve participação direta no movimento de 2014 que derrubou o governo legitimamente eleito na Ucrânia, a fim de abrir caminho para os neofacistas que assumiram o poder sob o comando do fantoche Volodymir Zelensky.
Na verdade, a guerra na Ucrânia foi fomentada, internamente, por uma rede de ONGs vinculada ao “Projeto Democracia”, e ao próprio Open Society Institute, que receberam nas últimas décadas cerca de US$ 6 bilhões do Departamento de Estado norte-americano para financiar movimentos contra países simpáticos à Rússia, segundo a agenda geopolítica do eixo Washington-Londres. Após a derrubada do governo legítimo da Ucrânia, em 2014, George Soros fez uma ameaça direta a Putin, de acordo com a insuspeita revista americana “Foreign Affairs”, de setembro de 2.2014, afirmando que esse seria o destino também da Rússia e, pessoalmente, do presidente do país.
O próprio Soros não faz segredo disso, já tendo admitido que as suas ONGs ucranianas têm tido uma participação relevante nos acontecimentos no país, como fez em uma entrevista ao apresentador da rede CNN Fareed Zakaria, em 25 de maio de 2014. Sua rede golpista opera na Ucrânia desde 1989, dois anos antes da implosão da União Soviética. Desde então, a International Renaissance Foundation (IRF) e o Open Society Institute investiram mais de 100 milhões de dólares, para criar e apoiar ONGs locais, com treinamento, seminários e outros meios, com o objetivo expresso de promover a integração da Ucrânia à UE e afastá-la da influência da Rússia.
*J. Carlos de Assis é economista, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e autor de mais de 20 livros sobre economia política.
Ilustração da capa: Latuff/MintPressNews.
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