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1969: uma criança em Belfast
1969: uma criança em Belfast
Há cidades que permanecem inscritas na memória para sempre. No caso da capital da Irlanda do Norte, no Reino Unido, Belfast parece ser, para o ator Kenneth Branagh, de 63 anos, um emblema. Foi onde ele nasceu, onde passou a primeira e feliz infância e de onde precisou fugir com a família naquele verão de 1968/1969, aos nove anos de idade, quando as violentas disputas nas ruas entre católicos e protestantes deixavam o mundo atônito.
Com base no roteiro que ele próprio escreveu, o filme Belfast foi lançado há três anos com grande sucesso. Foi um dos principais favoritos ao Oscar em 2021 e indicado em sete categorias para o prêmio. Mantém-se no topo do catálogo da plataforma de streaming até hoje.
O ator usou a ficção para sustentar o encanto de algumas passagens de sua vida real, outras delas assustadoras, vivenciadas antes de partir para a vida adulta em Londres, onde estudou na mitológica Royal Academy of Dramatic Art.
Engana-se quem acredita que vai acompanhar, no filme, os lances das batalhas, algumas mortais, travadas nos bairros onde católicos e protestantes moravam até então em paz e boa vizinhança. Ou se informar sobre questões históricas e políticas que causaram a guerra civil na província do Ulster, que perdurou por 30 anos.
Belfast se inicia com uma lânguida sequência em cores da geografia da capital atual e, em seguida, vai se desenrolando ao som muito bem escolhido de uma trilha com canções cativantes do cantor e compositor norte-irlandês Van Morrison. Elas permeiam a narrativa da infância amável do garoto Buddy, que é o tema do filme, com a clássica música “Down to Joy”.
O que encanta em Belfast, além do enredo bem roteirizado – Oscar de Melhor Roteiro Original –, é a conhecida beleza e arte da força de interpretação da tradicional escola dramática britânica, sempre reforçada pela severa fotografia preto e branco do seu cinema, neste caso a do famoso Haris Zambarloukos, que banha todo o elenco, desde estrelas famosas e estreantes até atores e atrizes mais ou menos conhecidos do grande público. Jude Hill (o menino Buddy, personagem alter ego do diretor), Caitriona Balfe, Jamie Dornan, todos comoventes e precisos, em particular os que fazem os avós de Buddy: o ator Ciarán Hinds e a avó, nada menos que Judi Dench.
Um dos mais importantes intérpretes de Shakespeare dos dias de hoje, Branagh se tornou célebre entre os jovens ao fazer Gilderoy Lockhart na adaptação cinematográfica de Harry Potter e a Câmara Secreta. Talvez por isso ele tenha se detido conscientemente nas impressões da sua infância – e do menino Buddy – pouco se dedicando a uma digressão sobre a guerra civil religiosa que então se iniciava, rachando a população da Irlanda do Norte em duas metades iguais: quarenta e cinco por cento de católicos, nacionalistas, e 43% de protestantes.
Buddy morava com os pais, o irmão mais velho e os avós justamente em um dos epicentros da guerra, próximo a uma barricada na chamada zona mista, um emaranhado de concreto e arame farpado dividindo as ruas Shankill, protestante, e Falls, católica, hoje conhecida como O Muro por alguns e Linhas da Paz por outros, na capital norte-irlandesa. O trânsito é livre em alguns pontos de passagem e, quando anoitece, são fechados.
O pano de fundo é a contínua discussão entre o pai e a mãe de Buddy: ele querendo mudar para Londres em busca de um salário melhor e por motivo de segurança física para a família, e a mãe resistindo a partir, apesar de viver uma situação financeira precária, com cobradores constantes na porta, pagamento do aluguel da casa sempre em atraso e atormentada com os altos valores de impostos que Londres cobra da população. Mas seu coração está em Belfast, de onde nunca saiu.
O filme vale a pena ser revisto ou conhecido por quem ainda não teve a oportunidade de vê-lo. Como lembrete final, um aplauso particular para o fotógrafo Zambarloukos, na sequência final de Belfast, essa saga da família Branagh em meio às The Troubles, como eram designados, com eufemismo britânico, os muros, as barricadas, a guerra civil religiosa. O fecho do filme é um adeus discreto e rápido, excepcional. Contido, é de uma comovente e rara beleza cinematográfica.
*Na Netflix.
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