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Ditadura à brasileira: comédia e horror
Ditadura à brasileira: comédia e horror
Lourenço Cazarré*
Dono de um dos melhores textos do jornalismo pelotense e editor de três belos livros sobre a Princesa do Sul, Ayrton Centeno mais uma vez ataca nas livrarias e bancas. Agora com Dicionário da Ditadura (Autografia Editora), livro que mostra em, digamos, pílulas de 15 a 30 linhas todas as facetas de um evento político que por uns é chamado de Golpe de (1º. de abril, dia dos bobos) 1964 e por outros de Revolução (de 31 de março) Redentora.
Recorrendo à fórmula que adotou para conduzir a criação do bem-sucedido Almanário de Pelotas, o rapaz que se formou pela Faculdade de Direito de Pelotas em 1975 – mas que nunca foi buscar seu canudo – diz, na introdução, que seu trabalho “é uma tentativa modesta de clarear um pouco as trevas. Não apenas as dos tempos passados, mas, iluminando, aquele palco, jogar alguma luz sobre as práticas de ontem que ameaçam ressuscitar nos tempos de agora”.
Simplificando, a obra representa um esforço para esboçar, em apenas 300 páginas, o movimentadíssimo quadro histórico que se esparramou por 21 anos, de 1964 a 1985.
Para dar uma ideia ligeira do que trata o livro, vamos pegar os verbetes de algumas poucas letras.
No capítulo dedicado a letra A, por exemplo, somos informados sobre a verdadeira dimensão da guerrilha do Araguaia, evento mantido em sigilo naquela época e ainda hoje quase desconhecido. Foi a única experiência de luta armada rural, levada adiante por seis dezenas de guerrilheiros, e se estendeu por três estados: Maranhão, Pará e Goiás.
Na letra B, por exemplo, ficamos sabendo que o bem-humorado embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, quando sequestrado por um grupo guerrilheiro, costumava jogar canastra com seus captores. Entre seus parceiros de jogatina o mais conhecido era o capitão Lamarca.
Por falar em Lamarca, é bom lembrar que ele foi rapidamente retratado – enquanto tenente do Batalhão de Suez (Suez, gente, fica no Oriente Médio!) – por um dos seus mais indisciplinados subordinados: Carlos Eduardo Von Beherensdorf, Príncipe Herdeiro da Pomerânia, o Berê, mais conhecido nas rodas da boêmia pelotense (nos anos 1960, gente!) como Garça.
Para fechar esse parêntese gigantesco, o referido texto do Berê – que leva como título “Memórias de um recruta encrenqueiro” – é um dos mais divertidos do afamado A língua de Pelotas e outras barbaridades.
Sigamos com a nossa resenha.
Passemos à nossa letra C, de China. Após o golpe revolucionário, o governo Castello Branco meteu no xilindró nove integrantes de uma pacífica missão chinesa que se encontrava a trabalho no Brasil. Pobres rapazes! Só foram libertados e deportados em 1965, quando o homem que os convidara, Jango, já se encontrava há muito tempo mateando e churrasqueando no Uruguai.
Aliás, não sei se é uma boa estratégia lembrar este fato em livro, tendo em vista que, hoje em dia, são os chineses que, comprando nossa soja, nos permitem pagar as nossas impagáveis contas.
A minha atração pelo anedótico, pelo ridículo, me leva a registrar que, na letrinha D, temos a definição de “desbunde”, termo criado pelos guerrilheiros para apontar seus antigos companheiros que depuseram a artilharia em favor da paz e do amor. Daí vêm “desbundado”, palavra de largo uso nos anos 1970 e 1980 para apontar sujeitos que, naquele tempo tão tenebroso, preferiam – e faziam bem, digo eu – se manter longe da pantanosa vida política tupiniquim.
Vamos de Empreiteiras, na letra E. Surgidas nos anos JK, quando a histeria construtivista nos presenteou com Brasília, e cevadas depois com as grandes e gordas obras megalomaníacas do pós-64, essas notórias empresas ainda estão na moda. Quase morreram, mas estão se levantando. Elas patrocinaram a tétrica Operação Bandeirante (OBAN), que fez muitas vítimas, diz Centeno. E outras malfeitorias, em datas mais próximas de nós, acrescenta este modesto redator.
Paremos por aqui. Mais uma vez, eu, beletrista convicto, falo de estilo. Centeno é homem de pena afiada e olho de lince (não achei um errinho de grafia ou concordância). Como se dizia antigamente na Atenas do Continente de São Pedro, aquele que um dia foi um guri maloqueiro da Barroso escreve bem pra burro.
Para os inteligentes também, ajunto.
Este seu mais recente trabalho – Dicionário da Ditadura – certamente terá longa vida, especialmente na academia, nos cursos superiores, posto que nele temos um painel, embora sintético, muito bem delineado de uma época marcada por atos de coragem, por grossas patifarias, por comédias hilariantes e por um horror quase inenarrável.
Neste ponto, devo advertir que o livro tem muitos verbetes – que tratam de tortura e assassinatos – difíceis de serem enfrentadas por pessoas sensíveis e delicadas.
Encerro fazendo um comercial dos três volumosos volumes pelotenses editado por este senhor autor que é também conhecido, entre seus amigos pró-ianques, como Ayr Rye: Mais perfeito que o paraíso e outros desatinos de Pelotas, A língua de Pelotas e Almanário de Pelotas.
*Jornalista e escritor.
Fotos: Divulgação
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