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Preciosidades
Preciosidades
De NORA PRADO*
Neste momento de volta ao lar para juntar os destroços e recuperar o que é possível das casas alagadas, nos deparamos com cenas tocantes. Numa delas dois irmãos garimpam, literalmente, sobre os escombros da antiga casa alguma coisa significativa. Estão em busca dos valores sentimentais, de pequenos objetos que lhes restituam a memória de outros tempos, certamente mais felizes. Outra família, unida, seca fotografias resgatadas da água e do barro na esperança de preservar momentos significativos do passado, apaziguando a alma.
Cada um possui suas preciosidades, talismãs, objetos de grande valor dos quais não se apartaria jamais. Lembro-me de uma cena de telejornal na qual um menino dos seus dez anos está sobre uma tampa de geladeira sentado num banco e remando na correnteza da rua transformada em rio. Aos seus pés descansa a sua bicicleta sã e salva que ele conseguiu resgatar com vida. Rema audacioso e destemido pelas águas com o triunfo da sua coragem. Uma fresta de poesia em meio a tanta desgraça e caos.
Nos abrigos mães reencontram filhos ou vice-versa em cenas emocionantes. O bem mais precioso da vida, sangue do meu sangue, segue como alento para corações aflitos. Nos abrigos para animais também testemunhamos, com alegria, o reencontro de tutores com os seus gatos ou cachorros depois de dias de agonia. Algumas pessoas não foram nem capazes de abandonar as suas casas alagadas por não ter como levar os seus pets. No meio da tragédia a maioria conseguiu sair apenas com a roupa do corpo, perderam tudo e tentam ressignificar as suas vidas.
Quando escrevo, a chuva torrencial que cai, desde a madrugada, voltou a alagar ruas e avenidas impedindo o fluxo do trânsito e atravancando a vida na capital gaúcha. Os entulhos retirados das casas e deixados à beira das calçadas agora boiam num cenário triste e desalentador.
Parece não haver trégua para essa tragédia que nos afunda emocionalmente, deixando em suspenso a retomada para a normalidade. Dias cinzentos nos quais os dramas de quem perdeu tudo, perde também, momentaneamente a esperança, testada aos limites da sanidade.
Somos desafiados a seguir em frente apesar de tudo. Sem o aconchego do lar, sem os móveis nem o calor das cobertas, sem o porta retrato com a fotografia mais querida, nem os bibelôs organizadfos sobre a cômoda. Sem o armário com as roupas favoritas, nem a cozinha onde se faziam os melhores quitutes. Sem a maquilagem nem os perfumes, sem os livros prediletos nem os CDs dos artistas preferidos. Cada família enlutada sente a falta dos seus entes queridos ou no cenário da sua casa, seus bens mais preciosos levados pelas águas para nunca mais.
Boiam na lembrança como pedras coloridas, vestígios emblemáticos de um tempo manso quando ainda vivíamos despreocupados com o futuro. Quem diria que ele bateria a nossa porta com tamanha força e crueldade? Seguimos na orfandade que machuca como cicatriz aberta, ferindo fundo como caco de vidro, roubando a brilho de dias ensolarados.
Porto Alegre, 23 de maio de 2024.
*Atriz, Coaching para Cinema e Televisão, Arte Educadora, Poeta e Fotógrafa.
Foto: Reuters/PILAR OLIVARES
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