Opinião
O perigoso controle das sementes em todo o mundo por poucas companhias globais
O perigoso controle das sementes em todo o mundo por poucas companhias globais
De LUIZ RENI MARQUES*
Os astecas, maias e incas jamais se encontraram apesar de terem muito em comum. Eram politeístas, ergueram enormes pirâmides e o milho, seu principal alimento, merecia destaque até nas cerimônias religiosas. As três civilizações foram, ainda na América pré-colombiana, pioneiras na aplicação de técnicas para modificar e aperfeiçoar um vegetal, transformando pálidas espiguetas de baixo valor nutricional em douradas e ricas espigas que consumimos até hoje. Essa iniciativa, séculos depois, inspirou o surgimento da indústria das sementes transgênicas, que produz a esmagadora maioria da comida servida nas mesas de todo o planeta, controlada por algumas poucas corporações multinacionais, três delas participando com 53% do total: Monsanto (26 %), DuPont Pioneer (18,2%) e Syngenta (9,2).
Os três povos indígenas viveram, os dois primeiros onde hoje ficam México e Guatemala, e o terceiro, a partir do atual Peru. Construíram canais de irrigação, escolheram solos, espécies e meses mais adequados para plantar o milho que, a partir dessas experiências bem-sucedidas, se espalhou por todo o continente americano e é encontrado do Brasil ao Canadá. As modernas multinacionais do segmento agrícola partem dos mesmos princípios, porém contam com recursos muito superiores. Elas têm laboratórios sofisticados e investem em pesquisas e experimentos para aprimorar sementes e plantas proporcionando o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos. Ao mesmo tempo, atuam junto a governos e parlamentares de dezenas de países para que criem leis do seu interesse, como a proteção da sua propriedade intelectual. As organizações não governamentais Via Campesina e Grain alertam que as sementes geneticamente modificadas por essas companhias em geral não geram novas sementes, que assim acabam sendo privatizadas e tornam o produtor dependente delas.
As maiores fabricantes de insumos para o agronegócio pressionam também para que os investimentos públicos sejam canalizados para o estimulo às lavouras de grande escala e a cadeia logística voltada para atender esses empreendimentos. Esses interesses nem sempre são os mesmos dos agricultores. O desejo delas coincidiu com a política adotada pela ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, que estimulou a expansão da nossa fronteira agrícola visando a colocar o país entre os exportadores globais de alimentos. E objetivava ainda assegurar o controle do território nacional, que acreditavam ameaçado de invasão por potencias estrangeiras. Viajei várias vezes por essas regiões, em uma delas percorri a costa oeste brasileira do Rio Grande do Sul à Roraima, levantando informações para a reportagem “A Conquista do Oeste”, que publiquei no final dos anos oitenta e mostrava essa estratégia.
As sementes foram o primeiro elo entre a humanidade e a produção de alimentos, surgido há cerca de dez mil anos, quando o homem descobriu que elas podiam germinar e gerar uma nova planta. Resultam do processo de fecundação que ocorre entre os gametas masculino e feminino de um vegetal marcando o estágio inicial de um ciclo de vida. A partir delas é possível acessar as características genéticas de um futuro vegetal que, assim, pode ser geneticamente modificado. O geneticista George Shull (EUA), nas primeiras décadas do século 20, foi o primeiro a testar cruzamentos de plantas. Precursor da transgenia alimentar, ele não tinha interesse comercial com seus estudos, que, no entanto, possibilitaram a chegada da Revolução Verde.
O movimento, liderado pelo agrônomo Norman Berlang, também norte-americano, nasceu nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, impulsionado pela necessidade de produzir mais alimentos em países atingidos pelos combates e mergulhados em crise. Em parceria com cooperativas mexicanas, o cientista realizou pesquisas que permitiram o escalonamento do plantio de trigo em duas colheitas anuais, plantas maiores, capazes de germinarem em solos áridos e mais resistentes às pragas. A Revolução Verde desembarcou no Brasil no final dos anos 1960 estimulada pelo governo e seu projeto de multiplicação da produção agrícola voltada para o mercado externo.
O mercado global de sementes faturou US$ 52 bilhões no ano passado, conforme dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Os Estados Unidos e a China lideraram o ranking com vendas de US$ 12 bilhões e US$ 10,3 bilhões respectivamente. O Brasil está entre os grandes competidores do segmento, e movimentou US$ 7,6 bilhões. O Grupo ETC, referência no estudo das corporações do agronegócio, com escritórios em diversos países, revela que o setor está cada vez mais concentrado, com as empresas maiores comprando outras de menor porte, ainda que algumas dessas sejam igualmente gigantes, intensificando o caráter monopolista que preocupa produtores, concorrentes menores, fornecedores alternativos de insumos, gestores públicos e consumidores de todo o mundo.
O cereal mais consumido no mundo, a soja, tem 98,5% das suas sementes transgênicas e estéreis, ou seja, precisam ser compradas todo ano dos grandes fornecedores. A situação é a mesma em relação ao milho, com 88% e o algodão, com 78%. Os índices são igualmente elevados nas lavouras de cana-de-açúcar, trigo, mamão papaia, maçãs, feijão, arroz e dezenas de outras plantas cultivadas em todos os continentes. A transgenia está também nas frutas utilizadas para suco, nas sem sementes que agradam boa parte da população e nas bebidas alimentares, por exemplo, produzidas a base de soja, fartamente oferecidas nas redes de supermercados.
Pesquisa recente do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) advertiu, após estudo de diversos cultivos transgênicos, que esses produtos podem oferecer riscos à saúde humana que começam a ser identificados, como alergias e resistência a antibióticos. A Royal Society of London, instituição cientifica fundada há mais de 400 anos, divulgou relatório recente apontando que plantas geneticamente modificadas causam sérios danos à fauna e à flora silvestre. A conclusão resultou de pesquisa realizada durante cinco anos em 65 fazendas do Reino Unido. A OMS (Organização Mundial da Saúde) não condena as sementes transgênicas, mas alerta que a utilização e o conhecimento sobre elas devem ser mais transparentes e rigorosos.
A pressão exercida pelas megaempresas do agronegócio para a expansão da produção em larga escala, mecanizada, empregando poucas pessoas, facilitando a fixação dos preços e a distribuição e movimentação das sementes e reduzindo seus custos logísticos, provocou o êxodo rural, forçando a migração de camponeses desempregados e suas famílias para as cidades, formando imensas favelas no entorno delas, sobretudo nos países pobres ou em desenvolvimento da América Latina, África e Ásia. Os negócios e os lucros dessas companhias se multiplicam, mas, nos últimos anos, vem crescendo a busca em todo os continentes por alternativas a esse sistema que abala o meio-ambiente, causando desmatamento e o esgotamento dos nutrientes do solo, entre outros danos.
A partir dos anos 1990, iniciativas de resistência a esse modelo predador de produção que, apesar dos seus males, tem aspectos positivos, como o maior volume de alimentos produzidos. Mas a evolução da qualidade das plantas, alardeada pelas indústrias do setor, é vista com desconfiança por alguns pesquisadores, que citam doenças provocadas por insumos utilizados nas lavouras. Alternativas vão surgindo por toda a parte. A União Europeia recentemente criou um “banco verde”, na Noruega, para guardar sementes e grãos de milhares de plantas, apelidado de “Arca de Noé dos Vegetais”. Fundações, institutos e governos preocupados com a necessidade de combater a carência alimentar, e também em preservar o planeta e sua população, investem em pesquisas que ofereçam soluções, sem descartar os benefícios gerados pela Revolução Verde.
Exportador de alimentos, o Brasil, por meio de políticas governamentais e ações de organizações do segmento, investe na criação de modelos de produção que garantam o sucesso das safras, possibilitem a soberania do pais no controle do fornecimento dos insumos para produzir alimentos mais saudáveis e menos nocivos à natureza e a população. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), fundada em 1973 pelo governo federal, visando a elevar a nossa participação no mercado internacional de commodities, nos últimos anos passou a atuar de forma mais incisiva na defesa da tecnologia nacional como alternativa às corporações globais, realizando pesquisas e experiências que levam ao aperfeiçoamento das sementes, técnicas de manejo adequado de plantas e outros melhoramentos. A estratégia brasileira se soma às que se espalham pelo mundo, empenhadas em evitar a ameaçadora concentração no campo por meio do domínio e do controle tecnológico por algumas poucas empresas multinacionais.
Essa movimentação remete a um retorno à Antiguidade, quando os homens saíam para caçar e pescar e as mulheres permaneciam nas aldeias coletando frutos, cuidando das primitivas roças e cumprindo o papel de guardiãs das sementes, consideradas sagradas por sua importância para a sobrevivência de todos.
*Estudou Direito e História. Formado em Jornalismo. Foi repórter em Zero Hora, Jornal do Brasil, o Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Senhor e Isto É, e correspondente free lancer da Reuters, entre outros veículos de comunicação. Redator e editor na Rádio Gaúcha, diretor de redação da Revista Mundo, professor de Redação Jornalística na PUCRS e assessor de imprensa na Câmara dos Deputados durante a Assembleia Nacional Constituinte. Atualmente edita blog independente.
Imagem em Pixabay.
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