Opinião
Gaza: as perdas e ganhos nas negociações diplomáticas
Gaza: as perdas e ganhos nas negociações diplomáticas
De DENISE DE ROCCHI*
Desde o dia 7 de outubro até o momento em que este texto é finalizado, em 23 de outubro, a contagem de vítimas no conflito entre Israel e Hamas é de 1400 pessoas mortas no lado israelense e mais de cinco mil pessoas mortas em Gaza, território palestino mantido sob bloqueio por Israel desde 2007. Os números de outubro de 2023 são os maiores registrados desde 2000, em uma série histórica marcada pela diferença entre as mortes de israelenses e palestinos, sendo estas últimas sempre mais numerosas¹.
Rapidamente, o governo brasileiro condenou o ataque a civis em 7 de outubro e buscou repatriar os brasileiros da região, já tendo resgatado mais de 1400 cidadãos que estavam em Israel, enquanto ainda aguarda a abertura da fronteira para retirar outras dezenas que vivem em Gaza. Seguindo sua tradição diplomática, o Brasil vem negociando com outros países para construir alternativas que permitam um cessar fogo e o respeito ao direito humanitário.
O ápice deste trabalho certamente foi a longa negociação para elaborar uma proposta de resolução costurando os diferentes interesses e objeções dos estados membros do Conselho de Segurança da ONU (CSNU), que neste momento é presidido pelo Brasil. Após dias de conversas e ajustes, o texto brasileiro determinando a abertura de um corredor humanitário foi submetido à votação, com 12 votos a favor, duas abstenções (Rússia e Reino Unido) e um voto contrário, dos Estados Unidos.
Ainda na fase de negociação, havia brasileiros colocando em dúvida a capacidade ou conveniência do Brasil tomar a dianteira na busca de uma solução para a crise, ignorando que o país tem quadros muito qualificados para esta tarefa e que não a assumir agora seria negligenciar o papel que lhe cabe no CSNU. O veto americano foi tomado por estes críticos como uma prova de que o Brasil devia se contentar com uma política externa que não divirja das posições de potências mundiais.
A derrota na votação não se deve à falta de capacidade brasileira, mas a uma característica da própria ONU que o Brasil há muitos anos critica. O Conselho de Segurança, a quem cabe aprovar sanções e missões de paz (com ou sem uso da força), possui 15 membros, sendo 10 membros não permanentes eleitos para um biênio e outros cinco permanentes. Estes membros permanentes (Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China) podem vetar e tem vetado ao longo do tempo decisões que possam atingir seus interesses ou de seus aliados. Este é um dos motivos pelos quais Israel nunca foi sancionado por violar determinações da ONU para que as fronteiras de 1967 sejam respeitadas: contar com o apoio incondicional dos Estados Unidos. A única que passou foi a resolução 2334, de dezembro de 2016, aprovada com 14 votos favoráveis e a abstenção dos Estados Unidos. Embora ela condenasse os assentamentos israelenses em território palestino, não estabelecia nenhuma sanção por esta prática.
No curto prazo, o veto americano ao texto proposto pelo Brasil não deixa de ser uma derrota: o conflito prossegue, há bombardeios em áreas habitadas, o número de vítimas cresce, os palestinos seguem presos em Gaza e não conseguimos de imediato atingir o objetivo de abrir um corredor humanitário. Porém, a dificuldade em passar uma resolução sobre um tema tão urgente reforça a posição da diplomacia brasileira quanto à necessidade de que a ONU passe por uma reforma, já que o mundo não é mais o mesmo de 1947, quando a maioria dos Estados membro sequer existia. Corremos o risco de que tal ideia não saia do papel e esta organização internacional se enfraqueça ainda mais.
A médio prazo, o Brasil ter se mantido fiel aos princípios tende a se mostrar um acerto, que mantém o país como um interlocutor em situações de crise. O Brasil não foi conivente com a violência e condenou o ataque indiscriminado a civis em Gaza, que setores da ONU já tratam como um caso de limpeza étnica². Não temos como antecipar neste momento como o conflito será lembrado no futuro, mas quem tiver permitido sua continuidade está sujeito a ser visto como cúmplice de graves violações aos Direitos Humanos. A Anistia Internacional já solicitou ao Tribunal Penal Internacional a investigação de crimes de guerra por confrontos anteriores entre forças de segurança israelenses e palestinos.
Cabe indagar, no entanto, se a percepção de especialista diante destas negociações é compartilhada pelos brasileiros, considerando que o debate sobre Israel e Palestina foi contagiado por disputas políticas domésticas. Tivemos desde queixas sobre o tempo dedicado pelo presidente em conter um conflito distante até tentativas de associar o governo ao terrorismo ou de demonizar grupos étnicos, religiosos ou políticos com base em notícias falsas ou informações distorcidas. Quantos de nossos cidadãos estão mais conscientes e se posicionando sobre política externa e quantos estão imersos na desinformação?
Voltando à resolução proposta pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, devemos ainda lembrar a conjuntura na qual o veto norte-americano ocorreu: o presidente Joe Biden enfrenta baixas taxas de aprovação no âmbito doméstico e a corrida eleitoral norte-americana está começando. O veto na ONU e a ênfase no “direito à autodefesa de Israel” seriam uma resposta às críticas que Biden vinha sofrendo em âmbito doméstico, mas ainda é cedo para assegurar que isto lhe garanta um bom resultado eleitoral.
Isoladamente, esta posição na política externa pode não ser suficiente para angariar o voto do eleitorado do Partido Republicano, que vinha valorizando as relações EUA/Israel. E qual será o impacto entre Democratas? Pesquisa feita pela IPSOS antes do ataque do Hamas e da reação israelense apontava algum grau de descontentamento de eleitores democratas com a política que Netanyahu vinha conduzindo em Israel: 21% deles descreveram Israel como “um estado com segregação similar ao apartheid”. Outra pesquisa feita pelo mesmo instituto, na semana passada, constatou que o apoio a Israel, embora tenha aumentado em relação a pesquisas anteriores, é menor entre o eleitorado mais jovem, aquele que fez a diferença para o Partido Democrata nas últimas eleições³.
No cenário externo, a decisão de apoiar Israel nas atuais condições pode afetar a imagem norte-americana junto à população de outros países, vide o grande número de protestos em vários continentes denunciando o desastre humanitário em Gaza. Um possível agravamento do conflito é fonte de preocupação sobretudo em países árabes, nos quais outras ações da política externa norte-americana (como a invasão do Iraque) não deixaram boas lembranças.
A questão palestina é um tema de interesse para a população de todos os países árabes e 84% dos 33 mil entrevistados ouvidos ano passado eram contra seus países normalizarem relações com Israel sem uma contrapartida quanto ao tratamento dispensado aos palestinos4. Isto não pode ser desconsiderado por quem pretende conquistar o apoio destas bases, o que é diferente de assinar acordos diplomáticos com governantes da região, como Israel estava em vias de fazer com a Arábia Saudita. Neste quesito, a imagem do Brasil corre menos riscos, pelo país reconhecer a existência dos dois estados e se envolver com o tema em bases diferentes daquelas propostas pelos EUA.
*Jornalista, mestre em Relações Internacionais e Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e integrante do Núcleo de Pesquisa sobre Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima/UFRGS).
¹ O grupo de direitos humanos B’Tselem apresenta um total de 10651 palestinos e 897 israelenses mortos em confrontos entre setembro de 2000 e setembro deste ano. Os dados podem ser consultados em Database on fatalities and house demolitions (btselem.org)
² O Comitê de Direitos Humanos da ONU aborda o tema em press release com data de 14 de outubro: https://www.ohchr.org/en/press-releases/2023/10/un-expert-warns-new-instance-mass-ethnic-cleansing-palestinians-calls
³ A pesquisa sobre percepções sobre eleitores Republicanos e Democratas sobre Israel pode ser encontrada no site da Brookings https://www.brookings.edu/articles/is-israel-a-democracy-heres-what-americans-think/ e a pesquisa mais recente da Ipsos em https://www.ipsos.com/en-us/wall-street-journal-ipsos-poll-israel-hamas
4 A íntegra do Arab Opinion Index, feito antes do conflito atual, pode ser consultada em https://arabcenterdc.org/resource/arab-opinion-index-2022-executive-summary/
Imagem em Pixabay.
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