Curtas
Pesquisa inédita do IBGE radiografa precarização de plataformizados
Pesquisa inédita do IBGE radiografa precarização de plataformizados
Entregadores e motoristas que atuam por meio de plataformas digitais recebem, respectivamente, R$ 3,4 e R$ 1,9 a menos, por hora, do que seus correspondentes que não utilizam aplicativos de corridas nem outros instrumentos informacionais e comunicacionais digitais para trabalhar, ainda que trabalhem mais tempo para obter essa renda. Essa é a situação revelada pelo primeiro levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre teletrabalho e trabalhadores via plataformas digitais. A pesquisa, divulgada nesta quarta-feira (25 de outubro), resulta de um convênio estabelecido pelo instituto com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Unicamp.
Os dados coletados pelo projeto integram a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) Contínua e revelam uma situação mais crítica em relação aos entregadores plataformizados, categoria que recebe daquelas empresas, em média, mensalmente, um valor abaixo do salário mínimo (considerando renda/hora trabalhada) por seus serviços, disseram os dois docentes da Unicamp encarregados de liderar os trabalhos empreendidos para viabilizar essa empreitada: José Dari Krein, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) e professor do Instituto de Economia (IE), e Ricardo Antunes, fundador e coordenador do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPMT), sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), ambos da Universidade.
Segundo os docentes, os dados apresentados, de grande amplitude, corroboram análises constantes de estudos anteriores desenvolvidos em diferentes regiões do Brasil e em outros países. Para Antunes, essas são evidências científicas sobre uma realidade na qual se beneficiam em grande medida empresas digitais que operam globalmente. “Nós já tínhamos retratos regionais do que acontece, mas com o rigor, competência técnica e abrangência que o IBGE é capaz de entregar, temos agora o registro de uma tendência mais geral”, avalia o sociólogo.
Procuradora do MPT, Clarissa Ribeiro Schinestsck acredita que a pesquisa contribui para fomentar o debate público em torno da regulação do trabalho em plataformas digitais, inclusive do ponto de vista previdenciário – o que só é possível por meio de dados oficiais. “As estatísticas abrem a possibilidade de criação de políticas públicas efetivas e de planejamento sobre a atuação dos órgãos de defesa do trabalho decente, ao mesmo tempo que demonstram claramente a informalidade presente nesse tipo de trabalho, a forte dependência dos trabalhadores em relação às plataformas, as jornadas mais extensas e o rendimento mais baixo quando comparado com o dos trabalhadores não plataformizados do setor privado”, pondera.
Presidido pelo economista e professor da Unicamp Marcio Pochmann, o IBGE sai na frente, na América Latina, quanto ao mapeamento de uma categoria de trabalho que se alastra pelo mundo e ameaça engolir ocupações tão distintas quanto jornalistas e taxistas. “A transição para a Era Digital tem reconfigurado o trabalho no mundo. A quantidade e qualidade dos empregos em cada país respondem à forma com que cada um participa da divisão internacional do trabalho. A situação das ocupações digitais tende a ser expressão, em geral, da inserção [de cada país] nessa divisão”, analisa o presidente do instituto, que cita a pandemia de covid-19 como importante fator para explicar a disseminação dessa modalidade de trabalho no Brasil.
Trabalho objetivo
O objetivo dos dois grupos de pesquisadores da Unicamp, no convênio, foi pensar questões para fornecer ao IBGE instrumentos capazes de captar com mensuração efetiva o que é o trabalho por meio de plataformas e como as atividades realizadas pelas plataformas no mercado de trabalho se desenham de fato no Brasil.
Para tanto, sublinha Antunes, buscou-se priorizar a objetividade. “A depender de como se faz uma entrevista, do que é perguntado, corre-se o risco de perder a concretude da realidade social e da condição desse ser social que trabalha. Era preciso criar um conjunto de elementos para permitir à pesquisa do IBGE constatar o que, e como, de fato é esse trabalho, compreendendo a jornada do trabalhador, como ele se conecta, quando é acionado pela plataforma e quando não é e, por fim, como recebe seu salário, que, aliás, é chamado de renda pelas empresas”, resume o docente.
Quando da realização da pesquisa, 1,49 milhão de brasileiros pertencentes ao recorte demográfico desejado atuavam por meio desses aplicativos, a maior parte usando ferramentas digitais de serviço como sua ocupação principal. A pesquisa se deu no quarto trimestre de 2022, abrangendo quem se ocupou, pelo menos uma vez nesse período, de qualquer atividade que configurasse trabalho remoto ou teletrabalho – situação na qual a pessoa atua de outro local que não o do estabelecimento ao qual está vinculada, formalmente ou não, a partir do uso de equipamentos digitais (em geral computador, tablet ou celular) com acesso à internet.
Durante o período de realização da pesquisa, a população de ocupados no país a partir dos 14 anos – excluindo funcionários públicos e militares – constituía 87,2 milhões de pessoas, das quais 2,1 milhões realizavam trabalhos por meio de plataformas digitais (Uber e GetNinjas, 99freela, entre outras) ou obtinham clientes e realizavam vendas por meio de plataformas de comércio eletrônico (Shopee, Magazine Luiza, Mercado Livre, por exemplo), como seu trabalho principal. Dessas, cerca de 1,49 milhão trabalhavam por meio de aplicativos de serviços e 628 mil usavam plataformas de comércio eletrônico.
Em relação aos condutores de passageiros que trabalham a partir de aplicativos e aos entregadores – categoria que compõe os plataformizados –, além de mais precarizados, apresentaram, segundo a radiografia, um perfil predominantemente masculino (81%), uma população com níveis intermediários de escolaridade (61%) e uma menor porção de pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto (14%, ante 18% do restante dos ocupados no Brasil, exceto servidores públicos e militares).
Uma realidade bastante distinta apresentou-se quanto aos ouvidos pela pesquisa do IBGE que se enquadraram como teletrabalhadores. Do ponto de vista objetivo, compara Krein, tanto os plataformizados quanto os teletrabalhadores estão vinculados a um mesmo processo tecnológico – vagas de trabalho criadas a partir do desenvolvimento das mesmas inovações. No entanto, “trata-se de dois mundos bem distintos, revelando a desigualdade e a heterogeneidade do nosso mercado. Os contrastes ficaram bastante claros: se no teletrabalho faz-se evidente a presença de mais pessoas brancas e/ou com ensino superior, nos trabalhos mais precários a distribuição por raças é mais equilibrada e há mais pessoas sem o mesmo nível de formação”, nota. “Diferentemente do que dizem as empresas a respeito desses trabalhadores, eles não têm outra alternativa e se submetem a uma situação na qual não possuem direitos e nem segurança social, pois há escassez de ocupações. Não se trata de empreendedores. Há, isso sim, uma massa sobrante muito expressiva e com baixos rendimentos.”
Ao léu
A pesquisa desmonta o discurso enganoso de plataformas digitais de prestação de serviços, que prometem ganhos mais altos a seus cadastrados. O resultado do estudo, frisa Krein, deve ser lido dentro da realidade do mercado de trabalho brasileiro, “em que 56 milhões de pessoas estão em busca de trabalho ou na informalidade e 71% do total ganham menos de dois salários mínimos”. “Isso é fundamental para compreender que o trabalho por meio de plataformas digitais se insere e só se viabiliza em uma realidade muito ruim, marcada por muitas limitações e pelo trabalho precário”, afirma o economista, para quem a nova Pnad torna evidentes os riscos envolvidos na disseminação de um modelo que se impõe como “bomba relógio para a sociedade brasileira” no médio prazo. “Temos de repensar a sociedade em um contexto de crise mais profunda, em um contexto de necessidade de transição ecológica e de superar a crescente desigualdade social. E esses dados mostram a urgência de fazê-lo. Uma sociedade como a nossa tem condições de discutir essas questões de fundo sobre o trabalho na sociedade contemporânea e sobre seu papel.”
A pesquisa deixa claros a precariedade, a insegurança social e também o grau de subordinação de trabalhadores que não conseguem impor limites quanto a sua jornada de trabalho e nem escolher onde trabalham ou escolher quem ou o que querem transportar. Para completar, motoboys e condutores passam horas à disposição dessas empresas durante as quais não são chamados para trabalhar. Por outro lado, se não estiverem sempre disponíveis, acabam preteridos pelos algoritmos das plataformas. “E não recebem nada por isso [pelas horas de ociosidade]. Caso se ausentem devido a um acidente ou por motivo de saúde, não terão direito a licença saúde e previdenciária”, sublinha Antunes.
Além de não contarem com um arcabouço de seguridade social ou com a proteção da lei quanto a seus direitos trabalhistas, essas pessoas enfrentam jornadas de trabalho extensas (motoristas de aplicativos trabalham em média sete horas a mais por mês e entregadores, 4,8 horas) que comprometem sua saúde mental e física, levando-os a um cenário de esgotamento antes mesmo de chegarem à idade de aposentadoria – à qual tampouco terão acesso. “Trata-se de uma realidade trágica com uma perspectiva tenebrosa”, sentencia Antunes. “Os trabalhadores entregadores, por exemplo, não têm lugar para almoçar e nem instalações sanitárias disponíveis. Portanto não surpreende que seus salários sejam muito diferentes dos da classe celetista, porque aqui é que temos o ‘pulo do gato’ das empresas: por não pagarem os direitos trabalhistas, elas beneficiam-se diretamente de uma situação que vem possibilitando sua transformação em grandes corporações de dimensão global.”
Texto de Mariana Garcia.
Publicado originalmente no site da Unicamp.
Na imagem destacada, fotos de Rovena Rosa/Agência Brasil e Antonio Scarpinetti.
Toque novamente para sair.