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Opinião

O Golpe no Chile: Memória e advertência

O Golpe no Chile: Memória e advertência

Artigo por RED
11/09/2023 05:30 • Atualizado em 12/09/2023 08:51
O Golpe no Chile: Memória e advertência

De LINCOLN PENNA*

Não vou renunciar! Pagarei com a vida meus compromissos com o povo.
Trecho do discurso de Allende no dia do golpe.

Há 50 anos era implantada a ditadura no Chile, tendo no general Augusto Pinochet um dos oficiais executores de uma das mais graves violações da democracia e dos direitos humanos, incomparável em termos de violência com outros golpes ocorridos até então na América Latina.

Havia decorrido nove anos que o Brasil sofrera um golpe, também executado pela alta oficialidade das Forças Armadas, cujos chefes a exemplo de Pinochet procuraram aparentar irrestrito apoio à legalidade e por extensão aos presidentes de ambos os países que se encontravam no exercício de seus mandatos.

A traição de Pinochet começara com a falsa lealdade ao general Carlos Prats, ministro e comandante militar chileno. Este sim leal não apenas ao presidente Salvador Allende como à longeva democracia chilena, que alternava governos de diferentes orientações políticas e ideológicas. Mesmo com o projeto de um socialismo democrático sem rupturas bruscas, essa tradição parecia honrada pelas forças políticas daquele país, incluindo os militares.

Contudo, eram ainda poucos analistas que vislumbraram a reorientação imprimida pelo Departamento de Estado norte-americano, que representa o que o presidente Dwight Eisenhower definiu como Complexo Industrial-Militar direcionado para a fabricação de armamentos e de orientações que atendem aos interesses norte-americanos.

Quando da vitoriosa Revolução Cubana de 1959, e que a partir de 1961 assumiu o rumo ao socialismo explicitado pelo Comandante Fidel Castro, esses interesses ganharam grande apreensão, e a tal declaração de Fidel fez mudar os rumos dessa política orquestrada pelo organismo que de fato comanda a política externa dos EUA, e manifestado por um general das próprias Forças Armadas daquele país que acabou governante sabedor dessa máquina de guerra a afrontar a soberania dos povos.

Não foi, assim, por mera coincidência que ocorreram vários golpes de estado na América Latina desde então. Todos com maior ou menor participação direta dos americanos do Norte levando a Guerra Fria a ganhar uma dimensão até aquele instante restrita praticamente ao cenário europeu e às áreas nas quais já estavam posicionados as bases americanas e os interesses estadunidenses.

O Cone Sul do continente americano foi palco de operações a mirar os estados considerados estratégicos pelo organismo norte-americano, principalmente Brasil, Argentina e Chile. Países emergentes que após a implantação do socialismo cubano passaram a ser objeto de um plano de contenção visando impedir a progressão dos governos populares que se caracterizavam pelo respeito à soberania nacional dos povos.

Daí em pouco mais de dez anos estes países governados por verdadeiros democratas sofreram intervenções militares amparadas por interesses empresariais conectados com o grande capital externo. Operação de cunho imperialista que passaria ao largo da maioria das interpretações a respeito dos fatos que mobilizaram as opiniões públicas desses e de outros países dentro e fora dos limites latino-americanos.

É evidente que grupos internos desses países tiveram protagonismo não desprezíveis nos acontecimentos e nos seus desdobramentos subsequentes. Porém, em nada se compara com as formas adotadas que configuraram o intervencionismo nas questões atinentes à política e as instituições desses países. Agindo insidiosamente e em seguida dando todo o apoio aos novos governantes ditatoriais, o imperialismo se fez presente. Em cada uma dessas ações de modo diferenciado, mas cuja finalidade e seus resultados foram os mesmos.

As correntes verdadeiramente democráticas nos países que conheceram os golpes de classe foram arrastadas de roldão. Em quase todas essas situações levadas pela crença absoluta da prevalência dos valores democráticos. Sobretudo atribuídos à hipotética tradição legalista dos militares e o desprezo pela resistente cultura política conservadora e em alguns casos reacionária, que coexistem nesses países.

Agora mais recentemente manifestadas pelo fenômeno do bolsonarismo e no instante em que escrevo essas linhas, com a candidatura presidencial de Javier Milei na Argentina de teor altamente preocupante porquanto baseada em valores que lembram os dizeres e as práticas fascistas, na mais contundente advertência para as correntes democráticas de nossos povos.

As ditaduras instaladas foram respaldadas pela lógica do capital que se internalizou junto as camadas mais bem aquinhoadas dessas sociedades ao aderirem aos ditames do capital externo e seus interesses.
Essa mesma cultura política muito presente nas classes dominantes desconhecem ou naturalizam a prática da tortura. Tal violação aos direitos humanos a configurar os crimes de lesa humanidade nos estados submetidos ao capricho desses interesses mediante a intervenção via golpes de estado são crimes configurados pelos organismos internacionais como imprescritíveis a demandar o julgamento sumário de seus praticantes. No entanto, esses crimes foram perpetrados como são até hoje cometidos nas comunidades mais vulneráveis e desassistidas pelos poderes públicos.

Fora as providências necessárias para que não tenhamos mais situações de regressão como as que aconteceram com a instalação dessas ditaduras, é preciso que sejam fortalecidas as organizações independentes desses povos.
Neste instante em que se rememora os 50 anos do golpe no Chile é bom que se compare as figuras humanas e voltadas para o interesse popular, como os de Allende e Jango dentre outras. Figuras de governantes devotados como lideranças que foram aos compromissos inegociáveis, radicalmente distintas das figuras desprezíveis como a de Pinochet entre muitos. Certamente a encarnação mais representativa das ditaduras impostas às nações do continente latino-americano.

No caso brasileiro nenhum dos ditadores chegou ao nível mais odiento e cruel, apesar de todos indistintamente se cercarem de organismos que agiam dentro e fora das instalações militares para praticarem as torturas, algumas delas trazidas por instrutores vindos de uma “cooperação” com órgãos norte-americanos. Tal situação prosperou ao longo da vintena cruel que os brasileiros conheceram e que até hoje passados quase sessenta anos não foram culpabilizados em razão de uma Anistia que os tem beneficiado. Silêncio obsequioso que agride a consciência nacional tão vilipendiada.

Não se pode deixar passar o 11 de setembro de 1973 sem renovar o repúdio às ditaduras que subtraíram de nosso convívio patriotas resistentes e que precisam ser constantemente lembrados para que não deixemos reproduzir os atos antidemocráticos que venham a instalar novas e profundas feridas em nossas sociedades. Daí, a necessidade de compartilhar a solidariedade de nossos povos latino-americanos numa só e única corrente em defesa da democracia e do avanço e aprofundamento para que elas sejam cada vez mais inclusivas socialmente, sempre na perspectiva da construção de um novo mundo. Afinal, como nos adverte o historiador Eric Hobsbawm, “o mundo não muda sozinho”.


*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Imagem de Pinochet, arquivo do Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile / Commons.

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