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Opinião

Os povos esquecidos pelo mundo

Os povos esquecidos pelo mundo

Cultura por RED
14/08/2023 05:30 • Atualizado em 15/08/2023 11:33
Os povos esquecidos pelo mundo

De LÉA MARIA AARÃO REIS*

No tenso momento geopolítico do mundo atual, quando a África começa a conquistar protagonismo – pelo menos é coadjuvante, mas soberana, e tentando com voz própria dialogar com europeus, com a Rússia e com a China, – é importante assistir filmes sobre as novas realidades dos países desse continente do Sul Global para entender com precisão o século 21.

Muitas produções cinematográficas recentes trazem a odisseia dos milhares de refugiados políticos e dos imigrantes que fogem da região até então conhecida como “o continente dos povos esquecidos do mundo’’, registrou o jovem presidente de Burkina Faso, na recente cúpula Africa-Rússia, semana passada. Ibrahim Taore acentuou que está acabando o tempo dos “africanos marionetes com cordas controladas pelo imperialismo e novos relacionamentos surgem’’.

Neste novo contexto, a Agência da ONU para Refugiados, a ACNUR, chegou a listar alguns dos filmes por ela recomendados sobre o tema**, ampliando o assunto com a movimentação da emigração massiva global também originada em outras regiões atingidas pelas guerras.

Vale conhecer esses filmes. Apesar das críticas justificadas às produções africanas que entram ‘’na moda’’, recentemente, com o selo oportunista de blockbusters do cinema americano e europeu. E apesar também de muitos deles, além de produções comerciais, embutirem recados finais ambíguos, com ranço ainda colonialista.

Adú,*** lançado em 2020, é um dos filmes que merecem atenção. Produzido pela indústria cinematográfica espanhola, é falado em espanhol, inglês e francês dependendo do momento e do local da ação. É dirigido pelo cineasta Salvador Calvo, de Madri, interessante personagem ex-voluntário da Comissão Espanhola de Ajuda aos Refugiados, quando conheceu histórias que o levaram a filmar as trágicas histórias de imigrantes e refugiados políticos vindos da África.

Em uma bem construída estrutura, Adú conta com três narrativas  que se desenrolam em paralelo no Marrocos, Camarões, Senegal, e convergem para a cidade de Melilla, enclave espanhol no norte do continente com dramática fronteira com o Marrocos. Melilla é uma pequena Europa dentro da África onde refugiados e imigrantes querem e precisam entrar.

A chocante sequência inicial, com a multidão de refugiados forçando a entrada na Europa procurando subir pela cerca de arame farpado da fronteira de Melilla, sinaliza a crueza de  Adú. Mateo, um dos agentes da guarda policial espanhola, tentando inibir a ação dos imigrantes, acaba disparando a arma e atinge um refugiado político idoso que brada o seu documento de identidade antes de cair morto no lado de Espanha. No papel, a confirmação do seu direito à concessão de entrada no velho continente como determinam as leis internacionais.

A trajetória do guarda policial espanhol que vai a julgamento e se sente culpado por ter abatido o velho, é uma das histórias do filme. A segunda é a de Gonzalo, espanhol branco, racista, milionário, e sua filha viciada em drogas que chega de Madri. Ele é proprietário de uma ONG que tenta evitar a caça de elefantes em Camarões. Lá, até hoje pessoas matam elefantes para vender  as presas de marfim dos animais teoricamente protegidos nos parques nacionais. Ganham fortunas.

A terceira história do filme é a de Adú e da irmã que passeando de bicicleta pela floresta quando testemunham homens de sua aldeia matando um elefante. Passam a ser perseguidos, a mãe é assassinada e eles precisam fugir em busca do pai que, supõem, está na Espanha. A fuga do personagem tocante através do Senegal é uma história dramática Ambos – personagem e situação – são realistas, abrem e encerram o filme.

A quarta trajetória é a de Massar, o adolescente homossexual também em fuga e vindo da Síria, que acaba como companheiro de Adú. Tem 14 anos e obtém dinheiro nas ruas se prostituindo para sobreviver e alcançar a Europa pelo mar.

Apesar de um final que adula a guarda policial espanhola de fronteira, porque talvez sem a sua colaboração as filmagens não teriam sido autorizadas, a história se fecha com o garoto Adú, de oito anos, rolando pelas ruas do velho mundo europeu em companhia dos 70 milhões de refugiados dos quais 35 milhões são crianças.


*Jornalista carioca. Foi editora e redatora em programas da TV Globo e assessora de Comunicação da mesma emissora e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Foi também colaboradora de Carta Maior e atualmente escreve para o Fórum 21 sobre Cinema, Livros, faz eventuais entrevistas. É autora de vários livros, entre eles Novos velhos: Viver e envelhecer bem (2011), Manual Prático de Assessoria de Imprensa (Coautora Claudia Carvalho, 2008), Maturidade – Manual De Sobrevivência Da Mulher De Meia-Idade (2001), entre outros.

**Títulos indicados pela ACNUR: Sergio, Mataram o meu pai, Capacetes brancos, Missão no Mar Vermelho, Bests of no Nation.

*** Netflix.

Imagem destacada: reprodução de Adú.

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