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Governo publica novas regras de apoio à Cultura. Confira as mudanças
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De Congresso em Foco O governo federal publicou no Diário Oficial da União (DOU) desta sexta-feira (24) as novas regras de apoio ao setor cultural. O Decreto Nº 11.453 prevê alterações nas Leis Paulo Gustavo, Aldir Blanc e Rouanet, além de outras políticas públicas culturais. As mudanças foram anunciadas nessa quinta-feira (23) pelo presidente Lula (PT) e pela ministra da Cultura, Margareth Menezes. Confira as principais alterações: Descentralização regional e participação de minorias Segundo o decreto, os mecanismos de incentivo fiscal deverão conter “medidas de democratização, descentralização e regionalização do investimento cultural” e implementar ações que estimulem a ampliação dos investimentos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e em projetos de “impacto social relevante”. O objetivo principal é de incentivar a realização de projetos culturais fora do eixo Sul e Sudeste, um dos grandes problemas na aplicação da lei. As medidas serão estabelecidas em ato do Ministério da Cultura e levarão em conta parâmetros como o perfil do público a que a ação é direcionada; o objeto da ação cultural que aborde linguagens, expressões, manifestações e temáticas de grupos historicamente vulnerabilizados socialmente; e mecanismo que estimulem a participação de agentes culturais e equipes compostas por mulheres, pessoas negras, povos indígenas, comunidades tradicionais, pessoas com deficiência, membros da comunidade LGBTQIA+ e outros grupos minoritários. Ações afirmativas Os mecanismos que fomentam a Cultura no país deverão incentivar ações afirmativas para combater injustiças sociais e promover a diversidade, a superação do patriarcado e a erradicação de todas as formas de preconceito. Atividades artísticas e culturais promovidas por povos indígenas e comunidades tradicionais também deverão ser estimuladas pelas políticas públicas culturais. Paralelamente, qualquer proposta que apresente qualquer forma de preconceito de origem, raça, etnia, gênero, cor, idade ou outras formas de discriminação será desclassificada dos chamamentos públicos. Comissão Nacional de Incentivo à Cultura Outra mudança implementada é a retomada da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic). O colegiado terá a função de avaliar os projetos apresentados e definir se estão aptos ou não a captar os recursos solicitado. A comissão será presidida pelo ministro da Cultura, e terá como membros presidentes de entidades vinculadas ao Ministério e representantes da sociedade civil. O órgão é considerado essencial para assegurar o funcionamento correto da Lei Rouanet. O Ministério tem até 30 dias para editar a Instrução Normativa necessária para o cumprimento das novas regras, com os procedimentos detalhados para apresentação, recebimento, análise, homologação, execução, acompanhamento e avaliação de resultados dos projetos financiados. Em seu discurso na noite dessa quinta, a ministra da Cultura afirmou que o decreto “harmoniza” as regras atuais das políticas culturais. “O decreto harmoniza as regras que antes eram uma colcha de retalhos, juntando o que de melhor tinha no projeto da lei Procultura, no projeto da lei do Marco do Fomento à Cultura, no programa Cultura Viva e nas leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc”, destacou Margareth. No evento, o presidente Lula reforçou que a Culta está de volta ao país. “Eu vim aqui para dizer a vocês que a cultura voltou de verdade no nosso país e que ninguém mais ouse desmontar a experiência cultural e a prática cultural do povo brasileiro”, discursou Lula. Por Caio Matos Foto: Ricardo Stuckert/PR Para receber os boletins e notícias direto no seu Whatsapp, adicione o número da Rede Estação Democracia por este link aqui e mande um alô.

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Ministério da Saúde é alvo de dois processo por falhas na proteção de dados em 2022
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Duas ações foram abertas em março e em setembro de 2022 contra o Ministério da Saúde por falhas na proteção de dados. As investigações são feitas Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Um dos processos diz respeito à falta de um funcionário para fazer a proteção dos dados, infligindo a determinação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A outro processo não foi detalhado publicamente. De acordo com o UOL, não há informações sobre o tipo de dado afetado pelas falhas. O Ministério da Saúde afirmou que não foram identificados vazamentos de informações ou alterações nos dados da população. "As eventuais punições servirão para mostrar que a proteção de dados pessoais existe no Brasil, é um direito fundamental e que todos precisam se adequar a ela. Nosso objetivo não é punir, mas proteger as informações", declarou o diretor presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior. A pasta não é a única a responder processos desta natureza: A Secretaria do Desenvolvimento Social de Pernambuco, a Secretaria da Educação do Distrito Federal, a Secretaria de Saúde de Santa Catarina, o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o Instituto de Assistência ao Servidor Público do Estado de São Paulo (Iamspe) também são alvos do ANPD. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil Para receber os boletins e notícias direto no seu Whatsapp, adicione o número da Rede Estação Democracia por este link aqui e mande um alô.


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A hora e vez do marreco

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A hora e vez do marreco
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De LEONARDO MELGAREJO* Nesta semana, descoberta e anulada ação criminosa do PCC (primeiro Comando da Capital) , que planejava homicídios e extorsão mediante sequestro de autoridades, em pelo menos cinco estados (Rondônia, Paraná, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul e São Paulo), o ex-juiz Sérgio Moro se apressou em dizer que o senador ameaçado de morte seria ele. Com isso, a grande mídia tratou de amenizar os impactos da magnífica entrevista ao vivo do presidente Lula à TV 247. Nela, além de fazer declarações essenciais sobre seu projeto de governo, como sobre as medidas para a recuperação nacional, o combate a fome, a retomada da credibilidade das instituições e o tratamento que há de ser concedido a todos, o presidente se expôs por inteiro. Afirmou, por exemplo, que Jair Bolsonaro deve receber a presunção de inocência que não lhe foi concedida, e se emocionou às lágrimas, revivendo momentos de dificuldade extrema a que foi submetido ao longo daqueles 580 dias de prisão sem provas e sem culpa. A perseguição midiática e judicial, a morte do irmão, da esposa e do neto dominaram seu espírito e, em determinado momento, revelou que, questionado naquele tempo de prisão, costumava afirmar aos visitantes que –assim pensava na ocasião- as coisas só ficariam bem depois dele “foder com o Moro”. E esta expressão, que é comum aos milhões de brasileiros que enxergam a ruína nacional provocada pelas ações do ex-juiz venal, merece ser revivida nesta hora. Afinal o ex-juiz, ex-ministro da justiça, ex-super boneco inflável, foi artífice fundamental da destruição de políticas de soberania nacional em geral, em particular de políticas de combate à fome. Basta lembrar que em 2014, graças às medidas de inclusão social do governo Lula, ao fortalecimento da agricultura familiar e à incorporação da sociedade organizada no planejamento de ações da máquina pública, o Brasil saiu do mapa da fome das Nações Unidas. E em 2018, apenas dois anos depois do golpe que depôs a presidente Dilma, eram 13,5 milhões os brasileiros que já viviam abaixo da linha da pobreza. E em 2022, ao final do governo fascista eleito graças ao desmonte do estado que se seguiu à prisão irregular e inepta de Lula, determinada pelo ex-juiz Sergio Moro, 33 milhões de brasileiros passam fome. Qual seria o sentimento daquelas pessoas e dos desempregados, dos subempregados, ou daqueles que vivem na condição de semiescravidão, em relação àquele ex-juiz, que viabilizou tudo isso? Creio que eles, como todos aqueles com acesso ao relatório sobre o avanço da fome e sobre a relação entre a fome e o autoritarismo implantados no Brasil haverão de concordar com a punição exemplar dos responsáveis. Sérgio Moro, enquanto ensaiava para a farsa da Lava Jato, que culminou com a prisão de Lula, patrocinou a operação Agro Fantasma. Nesta, atacando o Programa de Aquisição de Alimentos-PAA, o ex-juiz arruinou a vida de agricultores, desmontou sistemas cooperativados e destruiu a conexão entre o fortalecimento da agricultura familiar e a distribuição de produtos de qualidade para consumidores de baixa renda e populações em situação de vulnerabilidade alimentar. Agricultores sem antecedentes criminais, que jamais haviam pisado numa delegacia, foram recolhidos em casa por policiais fortemente armados, algemados e levados para a prisão em Curitiba. Foram pressionados, coagidos a assumir os crimes denunciados e, mesmo comprovando renda de até 2 salários mínimos, foram comparados a criminosos de “colarinho branco” e questionados, pasme-se, até sobre onde estariam escondidos o “iate, dólares e os carros do ano”. Famílias desestabilizadas, safras e saúde física destruídas, associações pulverizadas, vergonha e tristeza decorrentes de processos posteriormente anulados por falta de elementos objetivos que lhes dessem sustentação. Absolvidos pela justiça, alguns daqueles agricultores passaram a acusar o ex-juiz e ex-ministro, sempre marreco e atual senador Sergio Moro, de promover ações persecutórias que estragaram suas vidas, desmontaram o Programa de Aquisição de Alimentos, levaram à desorganização de processos cooperativos e cortaram vínculos necessários ao enfrentamento da fome. A última daquelas ações penais, que envolvia a Associação de Hortifrutigranjeiros do Município de Ponta Grossa, onde sete agricultores e um funcionário da Conab eram acusados de formação de quadrilha, estelionato, peculato e prevaricação, foi cancelada por “falta de provas para as acusações”. Depois de quase sete anos, com todos os acusados absolvidos, como o Ministério Público não recorreu a nenhuma das sentenças (e isso ainda durante o governo Bolsonaro), resta supor que a operação Agro-Fantasma de fato se orientava por objetivos políticos, que foram alcançados no rastro da operação Lava Jato. Em outras palavras, a intencionalidade de atacar políticas públicas como o PAA antecipava ações voltadas à desestabilização do governo de Dilma Rousseff, e ia além. Incorporando discursos de combate à corrupção, com apoio da grande mídia e cooptação de movimentos de rua, os golpistas consolidaram a operação Lava-Jato e a imagem “justiceira” de Sergio Moro e seus minions do MPF. Enfim, logo após a prisão de Lula, o ex-juiz assumiu alegremente o ministério da justiça do governo que ajudou a eleger. Literalmente, fodeu-se e foi defenestrado quando acreditou que poderia ser ministro do STF  e disputar com o próprio mito. Mais adiante foi recolhido pelo mito, para figurar de papagaio de pirata nos debates de outubro e, agora, cotidianamente, passa vergonha no senado federal. Compreende-se, assim, o sentimento de milhões de brasileiros que também entendem o desabafo do Lula. Aliás, eu também quero que o marreco se foda. Deixo como sugestão de leitura o volume 3 da Revista Ciência Digna. E também a música "É ", de Gonzaguinha. https://www.youtube.com/watch?v=tvMjV0fdJ84 *Engenheiro Agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio  e presidente da AGAPAN. Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL. As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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‘Calar sobre o fascismo em nosso país equivaleria a calar sobre o que não queremos enxergar em nós mesmos’, diz Luiz Eduardo Soares

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‘Calar sobre o fascismo em nosso país equivaleria a calar sobre o que não queremos enxergar em nós mesmos’, diz Luiz Eduardo Soares
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Em entrevista à Casa de Oswaldo Cruz, escritor, antropólogo e cientista político, que dá aula inaugural no dia 22, fala sobre temas centrais para a democracia Fascismo é um tema premente em um país onde, frisa Luiz Eduardo Soares, praticamente metade dos leitores “votou em um projeto fascista”. Convidado a abrir o ano letivo da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), nesta quarta-feira, 22 de março, o escritor, antropólogo e cientista político retoma a questão em aula inaugural sobre A demanda por ordem ontológica e o fascismo no Brasil. O evento será realizado no Salão de Conferência do CDHS, às 10h, com transmissão ao vivo pelo canal do YouTube e tradução para Língua Brasileira de Sinais (Libras).  Em entrevista à Casa, concedida no início desta semana, Soares, considerado um dos mais importantes especialistas em segurança pública do país, avalia que, atualmente, os problemas da área são mais graves do que os existentes no Brasil de duas décadas atrás, quando ocupava o cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública, dando continuidade à experiência na gestão pública iniciada em 1999, como Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro: “A corrupção policial se expandiu e se materializou em agências autônomas poderosas, as milícias. Hoje, colhemos a tempestade que eu previra na época”. Com destacada trajetória também no meio acadêmico, construída como professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade de Campinas (Unicamp) e visiting scholar em universidades norte-americanas (Harvard, Virginia, Columbia, Pittsburgh), Soares, durante a entrevista fala ainda sobre racismo, fake news, ditadura, movimentos sociais, assuntos igualmente fundamentais no Brasil de hoje e que, embora diversos, se tocam, pois remetem à importância de democracia e ao perigo que corremos quando ela está em risco. Formado em Literatura, mestre em Antropologia e doutor em ciência política com pós-doutorado em Filosofia política, professor aposentado da Uerj, Soares está prestes a lançar o romance Enquanto anoitece, somando cerca de duas dezenas de títulos, entre ficção e não-ficção, que inclui, Meu casaco de general, Elite da Tropa e Elite da Tropa 2, O Brasil e seu duplo e Dentro da noite feroz – o fascismo no Brasil. Além disso, segue com suas análises, publicadas também em site pessoal e nas redes sociais, estuda, lê, pesquisa e diz que procura “manter a velha militância pelos direitos humanos”. E isso é patente e louvável.  Abaixo, a entrevista na íntegra. O senhor, que é uma referência na área de segurança pública no país e já escreveu vários livros sobre o assunto, lançou, em 2020, “Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil”. De que forma essas duas temáticas se ligam?    Ambas as temáticas se situam no centro da questão democrática, porque dizem respeito aos modos de pensar e agir sobre os direitos individuais e coletivos e suas garantias, sustentadas pelas agências coercitivas em articulação com os mecanismos da Justiça criminal, orientada pela política criminal que, supostamente, no Estado democrático de direito, encontraria suporte na vontade popular soberana. Ambas dizem respeito à relação entre Estado e sociedade, entre as instituições públicas e a sociedade, entre os poderes republicanos e o uso da força, cuja legitimidade é delegada e limitada, em última instância pela política, oriunda do voto e da participação popular. No Brasil, desde a promulgação da Constituição, em 1988, as polícias nunca foram comandadas pelo Poder político, civil, democrático, a despeito do que diz a letra da Lei. Antes, a ditadura mandava, ou seja, o Exército mandava. Depois, o artigo 144 constitucionalizou esta subordinação umbilical, amarrando as polícias ostensivas uniformizadas ao Exército, seja as obrigando a imitarem-no, organizacionalmente, seja as submetendo à sua inspeção e orientação -aqui, as determinações constitucionais se somam às normas infraconstitucionais, todas em contradição com os princípios sistêmicos afirmados na própria Constituição. Não tivemos Justiça de transição, nem mesmo transição, nas áreas da Defesa e da Segurança Pública. Criou-se, assim, um enclave institucional, formado pelas polícias, que permaneceram praticamente intocadas pelo processo de democratização. Por isso, a despeito de mudanças, variações e heterogeneidades, elas expressam as culturas corporativas do passado ditatorial, que, por sua vez, ecoava toda uma história que remonta à escravidão, isto é, ao racismo estrutural e à brutalidade de classes, para não falar no patriarcalismo. Tenho afirmado que, apesar das diferenças entre regiões e períodos políticos, as polícias brasileiras, hegemonicamente, eram bolsonaristas avant la lèttre, bolsanaristas antes de Bolsonaro, cuja liderança apenas inscreveu na política os valores antidemocráticos, racistas e misóginos que já dominavam a intersubjetividade e as práticas, nesse campo. Em torno de um mesmo eixo é que, ao menos em parte, giram as matrizes da segurança pública racista e classista e o fascismo brasileiro: produção da identidade via definição belicista do inimigo; exaltação da violência como apanágio do poder patriarcal e negação da política; confusão entre vingança e justiça; reverência idólatra ao ódio, à morte e à tortura; devoção insurrecional à promoção do caos e do sofrimento, com vistas à abolição do mal e à expiação de seus portadores; substituição da legitimidade democrática pela auto-afirmação do poder, que se autoriza a si mesmo pelo exercício puro e simples da força, repelindo mediações; e a recusa ao controle externo e à natureza comedida -ou seja, comprometida com a vida e com os direitos humanos- do uso da força. Qual a importância de se falar sobre o fascismo nos dias de hoje para uma turma de estudantes de pós-graduação em História?   Falar sobre o fascismo é falar sobre o Brasil. Metade do país votou em um projeto fascista. Sua derrota eleitoral está longe de tê-lo esgotado e sepultado. O fascismo à brasileira retoma as bandeiras do movimento Integralista dos anos 1930, combinando-as à agenda neoliberal e introduzindo novas conexões religiosas, novas técnicas de comunicação e mobilização, e novos apelos geopolíticos. Calar sobre o fascismo em nosso país equivaleria a calar sobre o que não queremos enxergar em nós mesmos. O que o vigor do bolsonarismo nos ensina sobre nossa história, nosso país, hoje, e a democracia que pensávamos estar construindo? Essas são perguntas-chave. No Brasil, fascismo tem sido usado como termo sinônimo ao bolsonarismo. Isso é dar nome aos bois ou uma forma equivocada de analisar a realidade?    Coitados dos bois. Eles têm sido associados à devastação ambiental, aos ataques às sociedades originárias, ao agronegócio predador. Mas, aqui, vale a expressão: tratar o bolsonarismo como fascismo é, sim, a meu juízo, dar nomes aos bois. Isso não significa que se esteja sugerindo um anacronismo, ou seja, que estejamos propondo considerar iguais experiências separadas por quase um século de história, cujos contextos de emergência são inteiramente diferentes. O fascismo e o nazismo nasceram e prosperaram numa Europa varrida pela primeira guerra mundial, quando o capitalismo enfrentava crises profundas e era confrontado pelo movimento comunista internacional, nutrido pelo fortalecimento da União Soviética. Nosso mundo é completamente diferente, embora algumas analogias sejam possíveis. O compromisso do fascismo com o capital era mediado pela adoção do modelo corporativista de organização social, econômica e política. Nada mais distante do neoliberalismo. Entretanto, vozes importantes do liberalismo da época aderiram ou admitiram apoiar o nazifascismo, naquele período, em nome da destruição de tudo o que limitasse o “mercado” e a voracidade do capital. Se a propriedade privada e o livre mercado fossem preservados ou estabelecidos, a mais bárbara ditadura seria tolerada e até mesmo exaltada. Isso não aconteceu apenas antes da segunda guerra. Lembremo-nos do Chile de Pinochet e dos experimentos imperiais estadunidenses na América Latina, desde os anos 1960 e 70. Os economistas da chamada Escola de Chicago orientaram a implantação do modelo neoliberal, sob Pinochet, no momento em que o Consenso de Washington ainda se forjava, sob a liderança de Reagan e Thatcher. Somente a partir do fim da guerra fria, o novo padrão de dominação do capital, crescentemente globalizado e financeirizado, se impôs em sua, digamos, plenitude -plenitude sanguinária, eu ousaria dizer. Enquanto o mundo era dividido por duas superpotências, o arranjo social-democrata era necessário, para bloquear o poder de atração do polo soviético e domesticar os movimentos dos trabalhadores. Encerrada a era bipolar, o capitalismo passaria a prescindir de cautelas e pudores, mediações, regulações, limitações, garantindo algum nível de distributivismo, direitos e benefícios aos mais pobres. As explosões sociais não ofereceriam maior perigo, nada que não pudesse ser contido com polícia e prisões. O grande mecanismo de controle seria o fim do emprego, a insegurança, o drama da miséria como realidade ou perspectiva. O poder de chantagem do capital é muito maior do que qualquer ameaça de repressão. Disseminou-se também um certo tipo de individualismo meritocrático, endossado pela chamada cultura da autoajuda e por determinadas tradições evangélicas. Um lado passou a ser medo e incerteza, o outro, expectativa de integração mesmo subalterna, rendendo bônus em status e acesso ao consumo. Essa, digamos, compensação vai até certo ponto, não é infinitamente elástica. A partir de certo ponto, rompe-se em crises sucessivas, profundas e multidimensionais, que se fecundam, reciprocamente. Até porque, na outra margem, florescem movimentos sociais vibrantes e diversos, denunciando a perversidade desse quadro e apontando alternativas. Não são mais os sindicatos, ou apenas eles. São feministas, LGBTQIA+, antirracistas, etc. O contexto se complexifica. Além disso, a disputa eleitoral começa a desestabilizar a dinâmica de reprodução do capital, em sua lógica espoliadora exponencializada. O jogo fica mais pesado e as classes dominantes começam a abandonar veleidades democráticas. Aceitam a mais deslavada boçalidade, a brutalidade mais extrema, viram o rosto para não corar, lavam as mãos, e o neofascismo sai do armário, limpa o bolor do uniforme, e se afirma como uma das faces do capitalismo contemporâneo. Fascismo é neoliberalismo no osso, sem mediações: o projeto revolucionário da destruição. Ele está sendo retomado - e atualizado, adaptado - porque, ao contrário das velhas ditaduras militares, tem capacidade de mobilizar setores populares expressivos. E aqui está o busilis: como essa sensibilização popular tem sido possível? O que é que temos de repensar sobre as teorias sociais para compreender esse fenômeno? Em síntese, sustento que é legítimo classificar o bolsonarismo como variação da família político-ideológica que denominamos fascismo, família que admite muitas variações, assim como foram chamados socialistas, nos anos 1980 e 1990, projetos, movimentos e governos europeus que pouco tinham a ver com seus pares nos anos 1920, por exemplo. As afinidades foram suficientes para justificar a integração à mesma linhagem. Além disso, gostaria de acrescentar o seguinte: nada mais falso e perigoso do que adotar uma classificação benigna que normalize o bolsonarismo. Adjetivos como populista ou direitista têm servido para neutralizar sua diferença radical e edulcorar sua natureza brutal. Ao longo dos últimos quatro anos, foi muito comum ler na imprensa ou ouvir na TV comentários que consideravam Lula e Bolsonaro representantes de posições extremas, como se fossem deslocamentos em rumos opostos sobre um mesmo plano, ou gradações sobre uma linha contínua, duas expressões de um mesmo fenômeno: o populismo ou o extremismo. A distinção profunda de natureza entre as posições dessa forma se diluiu. Se a mídia tratasse o bolsonarismo como fascismo ou neofascismo, sinalizaria sua natureza distinta e impediria que se naturalizassem os apoios, as alianças, as adesões.  Portanto, não se trata apenas de uma questão conceitual ou epistemológica, ela é essencialmente política. As fake news propagadas pela máquina bolsonarista estão cotidianamente “reinventando passados”.  Há grupos organizados e financiados, numa estrutura de grandes dimensões. O senhor considera ser possível fazer com que pelo menos parte dos que compartilham essas notícias tenham uma postura crítica em relação ao que recebem? Como a História pode contribuir nesse processo?    Essa pergunta é decisiva e é minha também. Duvido que alguém tenha a resposta. Seria fácil se o problema se reduzisse a desinformação. Ora, se as pessoas estão recebendo informações falsas, bastaria fazer chegar a elas as correções necessárias. Esse tipo de formulação do problema traz consigo a solução, mas não se sustenta, justamente porque não há mais a hipótese de trabalharmos com o velho conceito iluminista de uma razão (habitando cada consciência individual) à espera do esclarecimento e sempre disposta a se reconciliar com a verdade das coisas como realmente são. Afinal, a epidemia Freud, a avalanche Freud chega à “ciência política”. Somos abismos de linguagem e desejo, povoados de fantasias e fobias, construindo realidades enquanto nos relacionamos, sob tensões diversas, com alteridades que nos interpelam, desafiam, e que também somos nós. Literatura, arte, ficção, cinema, mitologias, imaginação: vamos chamar para essa conversa, com muita humildade e genuína abertura autocrítica, quem ficou de fora do sarau pretensiosamente intelectualizado nas cortes acadêmicas. Até que ponto o esforço antropológico anticolonial de relativização dos saberes ajudou a erodir barreiras que freavam as ousadias negacionistas? Por outro lado, a crítica aos positivismos era e é indispensável. Figuras como diálogo e razão argumentativa perderam credibilidade e prestígio, enquanto contratualismos pragmático-performativos talvez estejam se credenciando para recolocar no jogo a velha dialogia. O fato é que política não pode mais ser pensada sem a ampla problemática da intersubjetividade. A teoria dos jogos foi a culminância do sonho racionalista e positivista, que acoplaria o individualismo neoliberal utilitário à ciência, fundando uma utopia (ou sua negação) rebatida sobre a épura do presente. Culto chique à resignação. O que sei -até onde faça sentido a audácia de saber, no meio socia l- é que não avançaremos enquanto não trocarmos o debate sobre conteúdos nas redes pela discussão a respeito da arquitetura da comunicação, ou seja, como diz Bruno Torturra: a respeito dos mecanismos de difusão das mensagens, as lógicas dos algoritmos e a dinâmica política de seu controle. Em março de 2000, o senhor foi exonerado do cargo de coordenador de Segurança e Cidadania pelo então governador do Rio, Anthony Garotinho, após ter denunciado a existência de uma “banda podre” no comando da polícia. Na época, o senhor decidiu sair do país em razão de ameaças, mas seguiu atuando na área de segurança pública. Qual a sua avaliação sobre a política de segurança pública atualmente, considerando o contexto nacional e estadual?   A situação se agravou. A corrupção policial se expandiu e se materializou em agências autônomas poderosas, as milícias. Se, antes, a autorização para as execuções extrajudiciais incrementava o processo de autonomização inconstitucional, que a gestação do enclave -citado na primeira resposta- havia hipertrofiado, hoje, colhemos a tempestade que eu previra na época. Em termos nacionais, o que temos? (A) Homicídios dolosos em grande escala, cerca de 50 mil ao ano, vitimizando sobretudo jovens negros e jovens pobres. (B) Taxas baixíssimas de elucidação dos homicídios e impotência preventiva. (C) Encarceramento em massa de negros e pobres, sobretudo por participação no varejo do comércio de substâncias ilícitas. (D) A imensa maioria das prisões se dá em flagrante, porque a PM é proibida de investigar e pressionada a prender, o que a leva a recorrer à infame, hipócrita e irracional Lei de Drogas, como seu principal instrumento. O resultado é a prisão de pequenos varejistas, que já respondem por cerca de 40% dos quase 900 mil presos (temos a terceira população carcerária do mundo e a que mais cresce, desde 2001). (E) Nessa tenebrosa guerra às drogas, todos perdem, inclusive muitos policiais e as comunidades. (F) Nas unidades prisionais, como a LEP (Lei de Execuções Penais) raramente é cumprida, mandam as facções criminosas. Quem chega precisa de sua proteção, a qual será comprada com a promessa de lealdade e vinculação, subsequentemente à saída da prisão, cinco anos depois. (G) Conclusão: o país está alimentando as facções com mão de obra barata, ao preço da destruição de gerações e suas famílias. Isso se deve ao casamento perverso entre o modelo policial que herdamos da ditadura e a Lei de Drogas, esse desastre que promove banhos de sangue absolutamente inúteis, aprofundando o racismo e as desigualdades. Alguma racionalidade nas operações policiais cariocas? O que há é o endereçamento da abjeção social. Ou seja, a operação é racista e socialmente abjeta, não controla, não reduz criminalidade, sequer desacelera o tráfico. (H) A flexibilização do acesso a armas foi um desastre, intensificando ameaças à democracia e à vida, contribuindo para o crescimento dos crimes de ódio, em especial os feminicídios. (I) A segurança privada continua sendo um imenso desafio sobre o qual paira pesado silêncio. Quais as suas expectativas em relação ao governo Lula em relação à área de segurança pública? Diante da sua experiência, sugere caminhos que, a seu ver, obrigatoriamente precisam ser percorridos para alcançar melhoria em uma área tão sensível?    Ainda aguardo pronunciamento do governo federal democrático e progressista, eleito em 2022, sobre a agenda mínima: modelo policial; encarceramento em massa; política de drogas; respeito à LEP no sistema penitenciário; valorização profissional dos policiais; subordinação do enclave ao controle democrático que a Constituição estabelece; negociação com o MP, visando o sempre negligenciado cumprimento de sua obrigação de exercer o controle externo da atividade policial; controlar a segurança privada e prevenir a epidemia de homicídios, prevenção indissociável do controle das armas e do tráfico de armas. Mas, justiça seja feita: o ministro Silvio Almeida já trouxe à baila o tema das drogas, numa perspectiva crítica, corretíssima.  Em 1999 e 2000, quando o senhor tentou colocar em prática um novo modelo para a política de segurança no Estado do Rio, as milícias estavam engatinhando. Mais de duas décadas depois, como você vê a expansão das milícias? O modo miliciano de ser extrapolou a esfera policial?   Não havia milícias, na época. Havia embriões, que chamávamos “Polícia Mineira”. Eram espasmos de autonomização inconstitucional, expressões hiperbólicas, na ponta, banhadas em sangue e marcadas pela corrupção, da autonomia ilegal que caracteriza o que tenho denominado enclave. Enclave institucional porque refratário à Constituição, aos direitos humanos e à autoridade civil, política, republicana. Esses nichos existiam sob nomes diversos, sempre com a cumplicidade ou o beneplácito, por vezes o estímulo direto, das autoridades superiores. Eram os Esquadrões da Morte, a Scuderie LeCocq, etc... Esses nichos se desenvolvem, aprendendo que podem extrair mais lucros se ocuparem o lugar do tráfico de drogas, em vez de apenas tornarem-se sócios. Ocuparem o lugar não só para comercializar as substâncias ilícitas, mas para impor taxas ilegais a todas as atividades econômicas, a todos empreendimentos locais, da venda de gás ao transporte, do comércio aos imóveis. As milícias crescem e percebem que podem transformar o domínio territorial em pretensões político-eleitorais, e assim aprofundam sua imersão na institucionalidade. Vieram das polícias, ainda se ligam a elas, conformam com ela constelações para-institucionais complexas, em que choques de interesse e alianças se articulam e se confrontam. Em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 6.145 pessoas foram mortas por intervenções de policiais civis e militares em serviço ou fora dele. O levantamento apontou também que a taxa de pessoas negras mortas pela polícia cresceu 5.8%. No país, parte da população compra o discurso da violência e acusa o “pessoal dos direitos humanos” de proteger bandido. Por qual razão a mentalidade de resolver os problemas por via da violência persiste?   Se eu soubesse, muitos outros e muitas outras já saberiam, e nós provavelmente teríamos superado esse dilema. Precisamos repensar o que sabemos sobre a sociedade brasileira. Por isso, remeto à primeira resposta. Seguindo esse fio, vamos dar no fascismo e em suas condições socioculturais e político-econômicas de possibilidade. Na invasão do Congresso Nacional ocorrida nos primeiros dias do governo Lula, a polícia pode ter sido omissa e complacente com os manifestantes. Sabemos que, na corporação, é grande o apoio a Bolsonaro. Mas o corporativismo não explica totalmente esse cenário, correto?   Correto. Como disse, os valores e as práticas predominantes no universo policial brasileiro, a despeito das enormes variações, nos foram legados por toda uma história que se estende à escravidão e ao modo de configuração colonial da sociedade brasileira. Essa triste história foi condensada nos porões da ditadura. Não tendo havido transição, na reconstrução democrática, nos anos 1980, herdamos a arquitetura institucional, o modelo policial, e a cultura corporativa que também formou ex-agentes da ditadura, como Bolsonaro. Portanto, a identificação com o personagem canhestro e sua ideologia estava dada, historicamente. Nesse sentido, massas significativas de policiais eram bolsonaristas antes e independentemente de Bolsonaro, cujo papel foi lhes oferecer representação política, encarnar esse “espírito” comum e inscrevê-lo na institucionalidade política.  O Senhor já escreveu que “a violência policial contra pobres e negros é absolutamente chave para a democracia”. Se formos considerar exclusivamente essa questão, o Brasil já tem dados de sobra para apontar quão precária é a nossa democracia. Qual a importância das chamadas pautas identitárias para a democracia?   De meu ponto de vista, elas são importantes porque, ao menos em suas principais manifestações, não são “identitárias”. Esse é um modo muitas vezes involuntário de diminuir essas pautas e esses movimentos. Eles dizem respeito à grande revolução libertária que redefine a experiência da individuação, transcendendo o individualismo e radicalizando o sentido da agência humana, ou seja, da liberdade e da imaginação, explodindo a compulsão neurótica ao controle e à classificação. Paralelamente, ou melhor, de modo articulado, combinam essa caminhada à defesa de direitos democráticos fundamentais e promovem novos modos criativos de agregação. Sabemos também que a corporação policial não é um todo homogêneo e que, além disso, há diversas questões relacionadas ao trabalho na polícia que são fontes de adoecimento mental. Os baixos salários e o estado constante de atenção, entre outros fatores, provocam desgastes. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, o suicídio entre policiais cresceu 55% entre 2020 e 2021. Quais caminhos seriam viáveis para sentirmos mais respeito e admiração pela polícia?   Policiais são trabalhadores e cidadãos. É preciso ouvi-los, levar a sério suas reivindicações, compreender que os regimentos disciplinares das PMs, em geral, são tirânicos. Muitas vezes, esses regimentos dão mais importância a detalhes formais e internos do que ao cumprimento das tarefas junto à sociedade. Os policiais militares são proibidos de se manifestar e se organizar, suas vozes são caladas. Isso é tão injusto e nocivo, que o tiro sai pela culatra, para empregar uma metáfora apropriada: explodem greves selvagens, multiplicam-se manifestações de teor eminentemente fascista nas redes sociais e se normalizam comportamentos agressivos, os quais, não raro, parecem indicar a personalização de atritos em que deveriam atuar como profissionais, a conversão em ódio pessoal do que deveria estar marcado pelo distanciamento técnico. As condições de trabalho muitas vezes são indignas. Como esperar respeito de quem não é respeitado por sua própria instituição? Como cobrar profissionalismo, quando não se é tratado desse modo por governos e corporações? Além da melhoria das condições de trabalho, seria indispensável investir em atendimento ao sofrimento psíquico, que é constante e crescente. Quanto à população, creio que ela só passará a desenvolver uma percepcão positiva sobre as polícias quando as fizerem por merecer. Argentina, 1985, que concorreu este ano ao Oscar de melhor filme estrangeiro, narra o processo que levou o país a ser o único da América Latina a julgar e condenar os principais líderes da ditadura por crimes contra a humanidade. Em que medida essa responsabilização foi e é importante para a manutenção da democracia e de que forma o perdão ocorrido no Brasil aos responsáveis por crimes cometidos durante o regime militar pode estar associado ao negacionismo, tão presente no movimento bolsonarista?   A meu ver, a responsabilização teria sido fundamental e, provavelmente, teria impedido que o passado retornasse, nos assombrando, como ocorre quando violações graves e tragédias não são devidamente elaboradas. Na ausência da elaboração, o que emerge é o trauma, o sofrimento sem nome e lugar, que insiste em nos desestabilizar e desordenar a coletividade. Não culpo os negociadores que atuaram na transição, porque a correlação de forças não favorecia avanços. Aceitou-se o possível, sacrificando-se o ideal, talvez na esperança de que viessem a surgir oportunidades futuras de responsabilizar torturadores e assassinos, em melhores condições de fazer valer uma verdadeira Justiça de transição. Isso não aconteceu, infelizmente. Hoje, pagamentos o preço. O mais importante, de meu ponto de vista, nem seria propriamente a responsabilização individual, mas o reconhecimento público e transparente das responsabilidades políticas da ditadura. Que nos sirva de lição para o futuro. O senhor tem uma formação em diferentes áreas do conhecimento. Graduação em Letras, mestrado em Antropologia Social, doutorado em Ciência Política e pós-doutorado em filosofia política.  De que forma essas escolhas impactaram na sua trajetória?    Essa é a pergunta impossível, ou de resposta impossível. Minha história sou eu. Tudo isso está tão ligado a mim, ao que faço, ao modo como me vejo, que não me sinto em condições de assumir a distância necessária para responder. Talvez o futebol tenha sido mais importante, ou a música, ou a psicanálise, ou os livros que li, os filmes e peças que vi, os crimes que presenciei, as histórias que testemunhei, ou os afetos, as pessoas que me ensinaram a ser, pensar e agir. Não sei. Em “Meu casaco de general”, o senhor relata que, já nos primeiros meses no governo Garotinho, se deu conta de divergências entre o seu modo e o modo dele de pensar a segurança pública. No entanto, conta ter permanecido na gestão para “desenvolver o trabalho na prática”, adquirir experiência, pois “temia ser visto como um teórico, um romântico”. O que essa experiência revelou para o senhor sobre essa separação entre teoria e prática?   Vou ao clichê: não há uma sem a outra. Iria mais longe: teoria é uma prática e não há prática cuja inteligibilidade prescinda de teoria, mesmo que ela não seja consciente. Por isso, a primeira tarefa da teoria é elucidar a teoria entranhada na prática, se ela não for consciente, e questioná-la, se for. Assim, a prática teórica se aplica sobre as ações e, se também a teoria é prática, sobre si mesma, reflexiva e autocriticamente. A prática mais radical e necessária é a autocrítica. Essa é a vacina auti-dogmatismo. O dogmatismo é a morte da teoria e a esterilização da prática. Não por acaso, o dogmatismo está sempre ligado à arrogância e ao autoritarismo -à onipotência, à onisciência. Se me permite, vale até uma citação bíblica, numa perspectiva nada ortodoxa: o pecado dos pecados foi a Hybris, não foi? O senhor é professor aposentado da Uerj, com reconhecida carreira acadêmica no Brasil e no exterior, experiência em políticas públicas, vasta produção em livros de não ficção e também autor de obras ficcionais. Como é a sua rotina hoje?   Estou na batalha para pagar as contas. O seguro saúde sobe com a idade. As necessidades não dão descanso. Fora disso, escrevo, estudo, leio, ouço colegas, pesquiso, falo quando me convidam, tento ser positivo com a família e amigos, e procuro manter a velha militância pelos direitos humanos, que só existe em coletividade. Nada especial, nada glamoroso, cotidiano de trabalhador. Entrevista originalmente publicada no site Casa de Oswaldo Cruz Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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Raul Carrion Versus Bolsonarista Lasier Martins

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Raul Carrion Versus Bolsonarista Lasier Martins
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De JORGE ALBERTO BENITZ* Às vezes assistimos programas não porque nos agradam. São aqueles que vemos para nos atualizar ou nos informar acerca do pensamento de  nossos adversários políticos, para melhor entendê-los.  O sacrifício é compensado pela informação colhida assim: Lasier Martins debatendo com Raul Carrion no programa “Cruzando as  Conversas”, da RDC TV, é um “Case” da baixeza ideológica da direita virada extrema direita com Bolsonaro. Primeiro, tem que ter estômago forte para ouvir as bobagens, fakenews, provavelmente colhidas nas redes sociais bolsonaristas, ditas por Lasier. Segundo, a julgar pelos comentários de telespectadores, lidos pelo coordenador do debate, tem que se ter consciência de que se está em território inimigo em um programa deste tipo. A audiência maior deste programa parece ser  bolsonarista. Raul Carrion se encaixa, como comunista histórico, na propaganda ideológica anticomunista do tempo da guerra fria e que foi requentada agora com Bolsonaro, como aquele que come criancinha no café da manhã. Lasier Martins, como opositor seria o defensor da democracia e da civilização ocidental. No entanto, o que se passa no debate é o inverso, isto é, o primeiro defendendo a democracia e os valores civilizatórios e o segundo encarnando o fascismo com um discurso antidemocrático e anticivilizatório. Raul Carrion, alto de sua experiência e cultura ideológica, demonstrou estar bem preparado para este tipo de embate hostil. Não se deixou levar pelos absurdos dito por Lasier Martins e manteve a racionalidade e equilíbrio psicológico. Para ser justo, na parte que assisti – quando comecei a vê-lo o programa já tinha iniciado – o coordenador, Renato Martins, demonstrou estar conduzindo bem o debate, não “puxando brasa para o assado” do Lasier Martins. Curiosamente lembra o Lasier Martins do programa de Debates da TVCOM antes deste virar mais um vulgar apoiador do Bolsonaro. Se comparar com o coordenador anterior do programa de Debates da RDC TV houve uma melhora importante. O coordenador anterior interferia, pelo menos nos debates que assisti, com juízos de valor, pegadinhas, nitidamente de cunho neoliberais, jogando fora o mínimo de imparcialidade que deve reger alguém nesta função jornalística.  Neste particular, relativize meu juízo de valor, dado que não sou um telespectador assíduo do programa. Logo, a amostragem que sustenta minha opinião, é pequena. Lasier Martins, na cara dura, trouxe à baila, fez desfilar diante de nós, telespectadores, toda a agenda tosca e mentirosa de Bolsonaro. Só faltou defender que a terra é plana. Defendeu que Lula era um condenado e a toda réplica de Raul pedindo provas, ele desconversava, afirmando que ele foi condenado na primeira, segunda e terceira instância do judiciário. Quando confrontado com o fato de que o processo foi anulado, justamente, pela inconsistência de provas e pela parcialidade e partidarismo ideológico de Moro e Dallagnol, que atropelaram todos os procedimentos legais e republicanos, ele alegava que o STF é que foi parcial. O parcial só vale quando é praticado com o que considera inimigo. Usava da forma banalizada a linguagem típica do bolsonarismo e da extrema direita afirmando que todos do STF eram comunistas. Mais simplório e tosco impossível. Depois, mais para o final do programa, veio com o que os bolsonaristas entendem como sua bala de prata que é a fraude nas urnas. Argumento igual, sem tirar nem pôr, usado por qualquer bolsonarista desqualificado e ignorante. Para finalizar veio com a arenga mais sem noção: Afirmou que o 08 de janeiro foi obra de petistas infiltrados. O Raul foi até elegante, relevando tanta mentira e infâmia proferida por ele, Lasier, apostando que em algum momento ele possa retomar um mínimo de racionalidade, contaminado que está pelo vírus do bolsonarismo, o que duvido. Lasier Martins sempre praticou como profissional do jornalismo, jornalismo chapa branca. No entanto, mantinha decoro, dentro dos limites do republicanismo, quando coordenava os programas de entrevistas na RBS TV. Decoro que jogou fora apostando no bolsonarismo e sua agenda de extrema direita. Até foi candidato por um partido de centro esquerda, PDT, onde logo se incompatibilizou, suponho, devido a impossibilidade de conciliar defesa da mídia golpista e agenda democrática e progressista do partido de Brizola. No mais, saudações ao retorno de um espaço na programação televisiva para o acolhimento de debates entre visões político- ideológicas contrárias no Estado e na cidade.  Retorno que, ao meu juízo, representa alargamento do espaço para o contraditório, sem risco para as “Lives” na internet que vieram para ficar. *Engenheiro, escritor e poeta. Imagem: reprodução. As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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Lula 3.0 e o poder do financismo

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Lula 3.0 e o poder do financismo
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De PAULO KLIASS* A importante vitória de Lula nas eleições de outubro passado gerou uma enorme expectativa de mudança para mais da metade da população, aqueles e aquelas que optaram por enterrar de vez o trágico e criminoso quadro deixado pelo quadriênio em que o bolsonarismo tomou conta do governo federal. O estado de terra arrasada em que o governo do genocida deixou o Brasil e, em especial, a sua população mais pobre estão a exigir ações e programas urgentes por parte da nova equipe governamental. Trata-se de criar as condições para se reconstruir o Estado, as políticas públicas e oferecer perspectivas de superação da crise para a grande maioria. Ocorre que, apesar de ter sido fundamental para o futuro do País, a derrota de Bolsonaro por si só não alterou aspectos intrínsecos de nossa estrutura econômica e social. O quadro de profunda injustiça na distribuição da renda e do patrimônio permaneceu o mesmo após a maravilhosa e emocionante posse do dia primeiro de janeiro. A raiva e o inconformismo dos derrotados no pleito também se fazem presente ainda, como bem demonstraram as tristes e chocantes cenas dos atentados terroristas perpetrados em Brasília antes e depois do 8 de janeiro. A grande diferença é que agora temos um governo que se pauta pelos valores democráticos, populares e republicanos. Assim, estão sendo retomados os processos contra o trabalho escravo, a expulsão o garimpo ilegal das terras yanomani e vem sendo dada sequência aos inúmeros processos policiais e judiciais contra os atos de corrupção e arbítrio levados a cabo por Bolsonaro e sua quadrilha. Enfim, apenas alguns exemplos de um amplo leque de inciativas do novo governo. No entanto, apesar disso, algumas esferas da nossa complexa formação social ainda não foram tocadas. Refiro-me, em particular, aos poderes do financismo em nossas terras. Lula já declarou em alguns momentos que se arrependeu de não ter conseguido promover mudanças substantivas e duradouras em dois domínios nos quais as políticas públicas poderiam ter contribuído para algum tipo de rearranjo de natureza mais estrutural. E costumava mencionar o sistema financeiro e os grandes meios de comunicação. Na verdade, talvez ele tenha percebido que a política de boa vizinhança e do “lulinha-paz-e-amor” não tenham sido suficientes para que as elites brasileiras o aceitassem como legítimo representante da vontade da maioria da população. A tentação golpista reiterada ao longo dos 14 anos em que o PT esteve no governo e a adesão incondicional a Bolsonaro a partir de 2018 são provas cabais de tal comportamento de nossas classes dominantes. Financismo segue firme e forte O sistema financeiro segue achando que pode mandar e desmandar, como sempre fez. Essa postura arrogante e de defesa intransigente de sua pauta conservadora entrou em operação antes mesmo da realização das eleições. Depois de perceberem que o flerte com Bolsonaro não teria o efeito que conseguiram produzir em outubro de 2018, os representantes da banca passaram a assediar o futuro governo pelas bordas. Criaram factoides de candidatos ministros da área da econômica e impuseram, mais uma vez, sua terna agenda conservadora e monetarista. Alguns dos motes seguiam a linha da impossibilidade de se colocar um freio no processo da privatização, da necessidade de se manter a linha da austeridade fiscal ferro e fogo, que o novo governo não ousasse rever dispositivos da reforma trabalhistas de Temer/Bolsonaro e que a independência do Banco Central não fosse colocada em discussão. A estratégia de criar um clima de alarmismo e de chantagem, caso suas propostas não sejam adotadas pela equipe de Lula, segue a pleno vapor. Assim tem sido, por exemplo, o debate a respeito da necessidade de revogar o criminoso “Novo Regime Fiscal”, o eufemismo inserido na Emenda Constitucional nº95, que criou o teto de gastos em 2016. A defesa enérgica do austericídio, levado á frente por parte dos “especialistas” a soldo do financismo, parece que colocou na defensiva os principais expoentes do novo governo na área econômica, que parecem morrer de medo de se opor aos interesses da banca. Ocorre que não há caminho possível para cumprir minimamente com o programa com que Lula foi eleito sem tocar nos ganhos fáceis do parasitismo financista e sem romper com as amarras que a austeridade fiscal burra e cega coloca no conjunto da política econômica. É bem verdade que o governo mal começou, nem apresentou seu balanço dos 100 primeiros dias ainda não completados. No entanto, alguns casos da agenda da Esplanada, já sob nova direção, oferecem elementos de preocupação para quem se coloca na expectativa da mudança necessária. Em especial, vale a pena conferir 3 itens da pauta em movimento: i) a definição do novo arcabouço fiscal; ii) a relação do governo com a direção do Banco Central e a definição da SELIC; iii) a discussão em torno do crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS. Austeridade fiscal a todo custo? No caso da indefinição do pacote fiscal, pode até parecer infantil e ingênuo o jogo de quem acha que pode atender a todas as demandas do sistema financeiro e dos economistas do campo conservador, ao mesmo tempo em que busca convencer o Presidente da República de que não há outra alternativa que não seja o respeito a uma indefinida responsabilidade fiscal returbinada. A rápida reconversão daqueles que se diziam oposição a Paulo Guedes assusta qualquer analista mais isento. Manter elementos de austeridade em nome de um suposto respeito à reponsabilidade fiscal é trair o resultado das eleições e abrir o caminho para frustração de parcela importante da sociedade que aguarda por sinais de mudanças. Os analistas dos grandes conglomerados não escondem seu desejo apontam para exigência de uma “âncora”, em lugar do termo “arcabouço” para tratar do novo arranjo fiscal. O assunto seguiu por semanas tratado a boca pequena, sem vazamento para imprensa. É importante esperar para conhecermos a última versão daquilo que vai ser apresentado ao Congresso Nacional em nome de Lula. Mas pelo que se pode imaginar, a preocupação da equipe da Fazenda é guiada mais por não contrariar o financismo do que em propor uma mudança necessária na abordagem do tema fiscal. A armadilha de Campos Neto e do COPOM A relação com Roberto Campos Neto segue na mesma linha. Lula não poupou críticas ao nomeado por Bolsonaro para comandar política monetária, juntamente com os demais 8 integrantes da diretoria do órgão regulador e membros natos do COPOM. A independência do banco e a novidade dos mandatos fixos de seus diretores funciona como um sério obstáculo à implementação de uma política econômica voltada para o crescimento e o desenvolvimento. Mas a preocupação do Ministério da Fazenda parece se resumir a não criar nenhuma aresta com o neto de Bob Fields, com a ilusão de que essa postura submissa e de bom mocismo pode provocar alguma redução na SELIC. Já houve 2 reuniões do comitê responsável pela definição da taxa oficial de juros depois da eleição de Lula. Em 7 de dezembro do ano passado e em 1º de fevereiro deste ano o colegiado optou por manter a SELIC nos estratosféricos níveis de 13,75%. Trata-se de flagrante sabotagem ao governo legitimamente eleito. Dentre outros problemas, Campos Neto representa os interesses do bolsonarismo no interior da nova equipe econômica. É até possível, ainda que improvável, que COPOM resolva demonstrar alguma boa vontade e decida por baixar a taxa 0,25%, por exemplo, na próxima reunião prevista para ocorrer nesta semana. Seria uma mera demonstração de cosmética, sem alterar a essência da política monetária. E não adiantaria nenhuma tentativa de festejar por parte de integrantes da linha moderada do governo, pois não há nada a comemorar com esse patamar da SELIC. Mas como avaliam onze em cada dez economistas não vinculados ao financismo, o fato que importa reter é que esse nível de juros inviabiliza qualquer projeto de desenvolvimento de longo prazo. Em evento organizado pelo BNDES e praticamente ignorado pela grande imprensa, o economista condecorado com o Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, não poupou palavras a respeito dos equívocos de nossa política monetária, mesmo estando junto a representantes do governo e do Ministério da Fazenda. (...) “A taxa de juros de vocês é realmente chocante. Os números de 13,75% e 8% [taxa real] são o que vai matar qualquer economia. O que é impressionante é que o Brasil sobreviveu ao que é uma pena de morte. O que surpreende é que vocês tenham sobrevivido” (...) Crédito consignado: governo não pode se humilhar No desenrolar da questão dos juros consignados, mais uma vez fica demonstrado que os interesses do financismo seguem muito bem assegurados por setores deste governo. Tudo começou com uma decisão adotada pelo Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) no dia 13 de março. Por iniciativa do Ministro da Previdência, Carlos Lupi, o colegiado decidiu reduzir o limite máximo para a taxa na modalidade de crédito consignado para aposentados e pensionistas do INSS. A taxa máxima autorizada para os bancos realizarem tal operação era de 2,14% ao mês e ela passou a ser 1,7%. A medida começou a ser bombardeada pela grande imprensa e por integrantes do próprio governo, como o Ministro Chefe da Casa Civil e o Ministro da Fazenda. O boicote orquestrado para inviabilizar a mudança chegou ao ponto de os bancos federais, Banco do Brasil (BB) e Caixa Econômica (CEF), pararem de oferecer tal alternativa de empréstimo a seus clientes, assim como fizeram os grandes bancos do oligopólio privado. Independentemente dos aspectos da disputa interna por espaço no primeiro escalão, o fato é que chega a ser constrangedor ver ministros de Lula argumentando contra a redução decidida, pois ela seria inviável do ponto de vista dos custos das instituições bancárias. Vergonha alheia completa! Além de não ser verdadeira, a orientação do setor público adota a narrativa da banca privada. A seguir nessa toada, é bem capaz assistirmos a gente do governo argumentando que não existe espaço para reduzir tampouco para diminuir os tresloucados spreads cobrados nas operações de cartão de crédito ou as elevadíssimas tarifas cobradas pela banca. Afinal, sempre alguém vai encontrar um “estudo técnico isento” escondido o fundo da gaveta para justificar essas práticas espoliativas absurdas. Caso as taxas debatidas pelo CNPS sejam anualizadas, elas representam uma redução de 29% para 22%. Ora, frente a uma SELIC de 13,75%, os bancos não teriam nenhum problema em se acomodar no novo limite. É importante levar em consideração que o crédito consignado do INSS apresenta risco zero para a instituição bancária. Não existe possibilidade de inadimplência nesse caso, uma vez que o pagamento da mensalidade do empréstimo contratado pelo cliente/beneficiário já sai direto do Tesouro Nacional para as contas do banco. Ao contrário do jogo de cena montado contra Lupi, caberia ao governo apoiar a medida e orientar o BB e a CEF a adotarem a linha de frente da modalidade, caso o financismo privado opte mesmo pelo boicote. O próprio BC oferece respostas para esse ponto em sua página na internet. Há um conjunto de instituições bancárias que já estavam oferecendo crédito consignado a taxas inferiores ao novo limite máximo decidido pelo CNPS. E, obviamente, não estavam perdendo dinheiro com tais operações. Na verdade, o financismo, receia que a medida seja um teste para eventual conjuntura mais à frente, onde os bancos federais possam eventualmente ser orientados pelo governo a operar com spreads mais reduzidos do que seus concorrentes privados em todas as suas modalidades de empréstimo. Esse movimento ocorreu durante o governo Dilma e agora a banca resolveu se antecipar e cortar a mal pela raiz (sic). Lula já disse mais de uma vez que só teria aceitado o desafio de um terceiro mandato pois deseja fazer mais e melhor do que nos outros dois. O Presidente sabe que para cumprir tal missão não pode ficar, de novo, refém do financismo. Pois agora precisa dar mostras de que está disposto a tanto. Caso sua intenção seja mesmo a de deixar um legado de desenvolvimento e de redução das desigualdades em nosso País, ele precisa romper, desde já, com as amarras que pretende lhe impor esse pessoal da finança. Para que Lula 3.0 seja mesmo aquilo que os setores da base da sociedade aguardam dele, é preciso deixar de apenas agradar ao sistema financeiro e à tecnocracia que pensa como a banca. O governo precisa se voltar de forma urgente aos desejos e às necessidades da maioria. *Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Imagem em Pixabay. As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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Marcelo virou Priscilla

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Marcelo virou Priscilla
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De EUGÊNIO BORTOLON* Priscilla nasceu Marcelo há quase 70 anos. Magrinho, cabeludo e chorão. Foi crescendo e nunca se achou, se via ou sentia ser Marcelo. Parecia que estava vivendo só um personagem, dentro da sua mente se via como alguém diferente, com outra postura diante da vida e das figuras que o rodeavam – pai, mãe, coleguinhas, primos, o vilarejo onde morava no interior de Caxias do Sul. Ele era um ‘estranho’ naquele ninho da infância. Ninguém imaginava para onde iria aquela criança que crescia e era avesso a tudo e a todos. Vivia em estado de angústia e desespero, não sentia atração por nada. Nem por questões de gênero ou por qualquer profissão que pudesse lhe garantir a sobrevivência. Queria ser outra coisa, mas não sabia definir e nem vislumbrar como deveria se apresentar para o mundo. Foi vivendo aqui e ali, quase sempre com recursos da família, que achou que Marcelo não ia dar em nada e seria um fardo pesado demais, mas como pais deveriam dar suporte para ele seguir em frente com a sua existência atribulada. Tentou se reinventar várias vezes depois que seus pais partiram. Construção civil, encanador, eletricista, jardineiro, cabeleireiro, designer, e enfim aposentado por doença. Com a cabeça sempre a mil, ‘me sentia um vulcão prestes a entrar em erupção’, diz ainda, perplexo, com tudo que a humanidade lhe reservou, e confessa que nunca abraçou uma causa definitiva para embasar o seu conteúdo perante as pessoas que o cercavam. Também não tinha rumo algum a seguir. Disse-me certa vez que lia tudo que aparecia na sua frente, até bula de remédio, e repetia seguidamente algumas frases que gostou muito e que guardou ‘de cabeça’ vista em algum livro da escritora Isabel Allende: ‘A linha que divide a realidade da imaginação é muito tênue. A memória é sempre caprichosa, fruto do vivido, do desejado e da fantasia’. Falo do Marcelo porque não o vejo nas ruas do meu bairro há vários meses. Os zeladores dos prédios vizinhos de Porto Alegre também não o viram mais. ‘Ele vivia conversando com um doutor da cabeça (psiquiatra) que mora naquela casa amarela’, me disse uma auxiliar de serviços administrativos e sua conhecida de longa data, também surpresa com o seu súbito desaparecimento. Marcelo morava num ‘puxadinho’ de uma outra casa, cuja dona tinha vários inquilinos, inclusive um ex-jogador do Inter de relativa fama nos anos 70/80, ex-colega de Falcão, Figueroa, Carpegiani, e até hoje um bom analista das coisas do futebol e com quem converso eventualmente. Na época que ele jogava, trabalhava como setorista do Inter pela Folha da Manhã e muitas vezes o entrevistei. Durante o grosso da pandemia em que todo mundo andava escondido de todo mundo, encontrei Marcelo sentado no muro da rua. Saudei-o e o chamei de Marcelo. ‘Oi senhor, queria pedir um favor: Não me chame mais de Marcelo. Agora sou Priscilla. Finalmente médicos, juízes e assim por diante acabaram com minha angústia. Consegui meu registro no cartório. Sou outra pessoa. Pobre, mas outra pessoa. Aquilo que estava escondido lá no baú da minha cabeça finalmente destranquei.’ Parecia feliz e relembrou, outra vez, Isabel Allende: ‘Agora sou mulher, mas não uma mulher de virtude negociável’. E me contou histórias e mais estórias de sua vida, sempre ressaltando que a memória é sempre uma baderna sem lógica. Priscilla só lamentou neste breve diálogo que tivemos que passou toda a vida entre dois mundos – o mundo de Marcelo e outro mundo , que era o de um fantasma. Só lamentou que já estava velho, sem fôlego, não conseguia caminhar muito porque o ar lhe escapava, mas que era simplesmente Priscilla. Visualmente não mudou nada, não tinha dinheiro para ser uma dama, mas que era Priscilla e pronto. O interessante é que ele falava, extasiado, para todos os conhecidos e desconhecidos da rua e das vizinhanças sobre o processo da sua mudança. Não queria mais esconder. Passou tanto tempo dividido, agoniado, que agora era hora de extravasar e mostrar a face que não existia e que arduamente foi conseguida. ‘Agora não largo mais a minha mão. Seguro as duas porque não posso mais viver em sofrimento e para me convencer de que estou feliz. Demorou, mas a minha cabeça está em paz. Não sabia o que era, mas agora sei.’ Lamentável mesmo é que sumiu misteriosamente. Era a chance de ver e participar da felicidade e ver ela compartilhando o seu status democrático de que encontrou a paz, aliviou a cabeça das torturas que a atormentavam e foi viver os seus momentos mais alegres depois de uma conturbada vida de 70 anos. ‘Isabel Allende disse certa vez que no transcurso da vida embelezamos algumas lembranças e procuramos esquecer outras, cada um é livre para contar como achar melhor’, voltou a reafirmar palavras da sua escritora favorita. E assim segue a vida de Priscilla. Não se sabe onde foi parar, se está viva ou morta, mas um dia há de reaparecer pela vizinhança. É o que esperam muitos dos seus conhecidos e amigos. Mesmo que o seu ‘puxadinho’ esteja prestes a ser demolido por uma dessas incorporadoras para fazer surgir um prédio gigantesco. *Jornalista com mais de 50 anos de trajetória. Destaque na editoria de economia. Imagem em Pixabay. As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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Rita Lee, memórias

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Rita Lee, memórias
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De MARA TELLES* O inconsciente nos leva a sonhar com coisas que não entendemos. Parece que nossa memória é rastreada para nos dar respostas, esclarecer ou mesmo nos dar forças. Sonhei com Rita Lee. Como se sabe, ela está velha e passando por um tratamento de câncer. Recentemente voltou a ser internada. E pode morrer. Pois bem. Sonhei com ela. Careca, ela vestia uma peruca Lilás muito bonita e me ensinava como era "morrer”. Entregou-me um molho verde e pediu que eu o colocasse na vagina. Aos poucos, sem notar, eu morreria sem perceber. Sonho maluco, porque a Rita Lee me mostrava a casa dela e seu prédio, que estavam sendo invadidos por água de um vazamento no condomínio. Indignada, Rita Lee se queixava que a água entrava até no elevador. Me mostrou o elevador, onde a água invadia o solo. Água que escorria e era um obstáculo desagradável, porque para subir ao seu andar, ela tinha que pisar sobre a água. Tem muito significado nesse sonho. Muitos. Rita me falando sobre “morrer” num momento em que alguns querem assassinar minha reputação. Rita me dizendo que a morte começa por salsas verdes que são colocadas na vagina. A morte das mulheres? Mas, ele deve dizer mais de mim do que da Rita Lee. Despertei imediatamente com uma letra de música que eu mal me lembrava, mas que foi muito cantada pelas mulheres para se projetarem como sujeitos na sociedade. Era uma canção que lembrava, a nós mulheres, quem éramos e “por que” éramos: a Cor de Rosa Choque. A moçada mais jovem não deve sequer saber de Rita Lee e a luz que ela irradiava em tempos da ditadura. Apagar a memória das mulheres é padrão. Para muitos vintianeiros (em español, vintiañeros), o mundo começou 20 anos atrás. Nada mais existe além “deles” e de um narcisismo que está sendo exacerbado nos últimos anos. Mal sabem os Peter Pans que muitos morreram para que eles hoje estivessem vivos, usufruindo de direitos que foram conquistados por gerações e gerações anteriores de anônimos. Então, deixo aqui a lembrança de Rita Lee que, nos tempos atuais de obscurantismo, sectarismo e ideologias usadas como se fossem dogmas, ela, a Rita Lee, teria seu vinil jogado na fogueira pelos iluminados que não admitem divergências. Cor de Rosa Choque (Rita Lee) Nas duas faces de Eva A bela e a fera Um certo sorriso de quem nada quer O sexo frágil Não foge à luta E nem só de cama vive a mulher. E, eis que Rita Lee foi ainda mais maluca, essa que hoje se tornou uma véia: Mulher é bicho esquisito Todo mês sangra. Pau na Véia da Rita Lee! *Cientista política, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e presidenta da ABRAPEL (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais). Foto de Rita Lee em 1972, disponível em Wikipédia. As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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