Opinião
Zanin surpreende e decepciona?
Zanin surpreende e decepciona?
De ALDO FORNAZIERI*
Grupos de esquerda e movimentos sociais expressaram sentimentos de surpresa e decepção com os votos do ministro Cristiano Zanin proferidos até agora no STF. Destacam-se três votos: Votou contra a descriminalização do uso da maconha para uso pessoal, contra a equiparação da homotransfobia ao crime de injúria racial e a favor da atribuição de funções de segurança pública às guardas municipais.
Pessoalmente, não me surpreendi e nem me decepcionei, talvez porque não tenha manifestado simpatia pela indicação de Zanin ao STF. Mas cabe perguntar: aqueles que manifestaram apoio têm razão de se surpreenderem e de se decepcionarem com os votos de Zanin? Penso que não, por várias razões.
A primeira razão diz respeito ao perfil histórico de Zanin. Ele nunca foi um ativista de causas progressistas. Pelo contrário: no seu périplo para conquistar votos de senadores, as sinalizações que ele emitiu foram as de que, em termos de costumes e de direitos civis, tendia a posições mais conservadoras.
O ultraconservador Silas Malafaia elogiou o pretendente. O pastor viu o que a esquerda não viu e matou a charada: “Primeiro, que é um cara família, que eu sei. Advogado é advogado. Uma coisa é advogado militante e Zanin não é advogado do PT. É um advogado contratado por Lula”. Quer dizer: o principal qualificativo de Zanin foi ter sido advogado contratado por Lula.
Lula não deixou claro os motivos e os critérios para indicar Zanin. Parecem ter sido de três ordens: 1) critério personalíssimo, por Zanin ter sido seu advogado; 2) por ser um advogado garantista; 3) por, de alguma forma, ter triunfado sobre Sérgio Moro. Note-se que aqui não há nenhum critério de natureza ideológica, de visão de mundo ou de visão de direitos civis e individuais.
Note-se também que quando alguém assume o assento de uma cadeira no STF ganha uma carta de alforria em relação ao presidente que o indica, aos senadores que o aprovam, aos padrinhos que o patrocinaram e em relação a qualquer grupo político, movimento social etc. Essa alforria é ainda mais ampla se o novo ministro não tinha compromissos pregressos de ordem política e ideológica com nenhum grupo, como é o caso de Zanin. Ficará no STF até os seus 75 anos, se quiser, e o único compromisso é com sua consciência, com a sua visão de mundo e com sua preocupação de como quer ser visto nas páginas da história.
Por outro lado é preciso considerar que nenhum ministro do STF votará de forma coerente e sempre alinhada com o campo progressista ou com o campo conservador em todas as matérias. Mas o que é ser progressista no âmbito jurídico de uma Suprema Corte? Certamente não é ser garantista. Um juiz de direita pode ser garantista, quanto um de esquerda. Ambos podem usar o garantismo para absolver políticos de direita e de esquerda.
O que parece estabelecer o critério mais universal da clivagem progressista/conservadora num tribunal constitucional é a questão dos direitos. Dos direitos civis, individuais, de liberdade e sociais. Ao menos é neste terreno que se definem os dois campos na Suprema Corte dos Estados Unidos, que tem uma configuração institucional assemelhada com o nosso STF. Zanin poderá ser ambíguo nesse terreno. Poderá ser progressista em direitos sociais e conservador em direitos individuais e civis.
Ao invés de se promover um julgamento prematuro acerca dos votos de Zanin é mais produtivo discutir, neste momento, os critérios de indicação de um ministro para o STF. O critério existente é vago e genérico: a escolha deverá considerar alguém que tenha “notável saber jurídico e reputação ilibada”. A “reputação ilibada” até pode ser verificada pelo histórico do indicado. Já o “notável saber jurídico” carece de uma definição mais precisa. Três critérios poderiam ser assumidos como definidores do “notável saber jurídico”: 1) títulos (doutorado, por exemplo), 2) experiência na magistratura judicial com ingresso por concurso público e, 3) obras publicadas relativas ao direito público e ao direito constitucional, campos precípuos da atuação do STF.
Há também um quarto critério que não pode ser escrito na Constituição: é o critério político e este é da alçada exclusiva do presidente da República que indica o candidato. Aqui deveria ser considerado o perfil ideológico, a concepção de mundo e os compromissos do indicado. Um presidente progressista indicaria um candidato mais progressista e um presidente conservador indicaria um candidato mais conservador.
Considerando que a função principal de um tribunal constitucional consiste em ser guarda da Constituição e considerando que o fundamento de uma Constituição democrática-republicana consiste na garantia dos direitos dos cidadãos (civis, individuais, de liberdade, sociais) a escolha de um ministro do STF deveria considerar o quadro geral de direitos na sociedade brasileira.
O quadro geral de direitos da sociedade brasileira não deixa dúvidas: dois grupos majoritários – o negros e as mulheres – são os que mais carecem dos vários tipos de direitos. O sistema de representação política, o sistema Judiciário e o sistema de Polícia têm grande impacto negativos sobre os direitos desses dois grupos.
A defasagem de direitos do grupo étnico dos negros e do grupo de gênero das mulheres se entrelaça com uma defasagem de direitos a partir de uma clivagem socioeconômica e de outra regional. A categoria socioeconômica diz respeito aos pobres das periferias e a categoria regional se refere ao Nordeste.
Negros, mulheres, pobres e nordestinos têm uma franca sub-representação no STF e são vítimas do Estado e do sistema econômico em relação à inefetividade de direitos. O STF, até hoje, só teve três negros e três mulheres como ministros e ministras. O Nordeste vem sendo historicamente sub-representado no STF em relação ao Sudeste e ao Sul.
O Nordeste concentra 47,9% da população pobre brasileira, o Norte 26,1%, o Sudeste 17,8%, o Centro-Oeste 5,7% e o Sul 2,5%. O Nordeste, contudo, tem 26,9% da população brasileira. Dos atuais 11 ministros do STF, 7 vieram do Sudeste, 2 do Sul, 1 do Nordeste e 1 do Centro-Oeste. Uma representação equânime por região indica que o Nordeste deveria ter 3 ministros e o Sudeste deveria ter de 4 a 5 ministros.
Pelo conjunto dos critérios aqui apontados e pelo quadro geral das defasagens de direitos na sociedade brasileira, a única indicação coerente e criteriosa para substituir a ministra Rosa Weber, que logo se aposentará, deveria recair em uma mulher negra e nordestina. Uma mulher que, além dos critérios qualificadores do notável saber jurídico, tivesse um histórico e uma sensibilidade ativa coerentes com a necessidade de efetivar direitos aos grupos mais necessitados.
*Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor de Liderança e Poder (Editora Contracorrente, 2022).
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
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