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TEMPOS MODERNOS

TEMPOS MODERNOS

Artigo por RED
30/09/2024 09:00 • Atualizado em 29/09/2024 22:07
TEMPOS MODERNOS

De LINCOLN PENNA*

Apesar do título não vou me ater ao grande filme de Charles Chaplin, o insuperável personagem Carlitos do grande ator e diretor britânico, mas me referir a outro filme no qual interpreta o papel principal, denominado Monsieur Verdoux, ou O Barba-Azul, como foi traduzido no Brasil. Lançado em 1947 o seu conteúdo explora uma das grandes contradições de nosso tempo, moderno e tecnologicamente avançado, que consiste na condenação de indivíduos por crimes, alguns horrendos, mas silencia diante da escalada de guerras e da socialização de armamentos os mais sofisticados para o incremento de crimes não menos horrendos.

Contradição que reveste o perfil e a lógica de uma civilização que deixou de lado o sentido dos valores alcançados em nossa trajetória na Terra como seres sociais para a perpetuação das mais agudas e criminosas desigualdades entre os seus semelhantes. Sim porque ao longo de sua história se formaram modos de vida que a despeito de produzirem elevados e requintados meios de produção reproduziram as mais profundas exclusões sociais.

E em toda a história, a lógica perversa de criminalizar indivíduos sob a suposta proteção do Estado leva a ações criminosas para a manutenção de estruturas de poder, cujas classes ou grupos instalados nessas estruturas dominantes além de praticarem crimes estimulam o cometimento de outros, amparados pelos mesmos poderes. Tudo em nome de valores duvidosos porque nem sempre do interesse popular. Assim, são as guerras.

Por outro lado, quando vozes se expressam em defesa dos direitos humanos, daqueles que buscaram em atos ilícitos os meios de subsistência, configurados como crimes perante a lei, essas vozes são imediatamente associadas à defesa de criminosos, como se os grandes criminosos detentores de poder, não fossem os maiores responsáveis.

O que ocorre com o emprego da violência em nosso cotidiano é bem significativo para exemplificar a fúria de quem não admite repartir a riqueza produzida por toda uma coletividade. Ela decorre do que o padre Hélder Câmara chamava de espiral da violência, isto é, há uma violência original, que é representada pela opressão dos que detém o poder e não admitem repartir os bens aferidos, em geral pelo trabalho de todos. Diante dessa primeira violência existe a segunda, a dos que respondem através da luta por direitos de poderem usufruir o básico para a sua sobrevivência, cuja reação das classes dominantes se faz via repressão. É a terceira e continuada série que se mantém até presentemente.

Com essa descrição, padre Hélder fornece a mais lúcida, dura, e pedagógica lição do conceito de Karl Marx, o de lutas de classes. Logo, não precisa ser marxista ou militante revolucionário para compreender essa equação política. Ela é tão cristalina que explicita uma relação entre seres humanas que esbarra no que os puristas chamariam de irracional. Afinal, querer entender que existem marginais no sentido pejorativo a conviver em sociedades onde se pratica o bem, garantido pelas instituições estatais, é tornar as massas desassistidas como agentes do mal, quando é o mal-estar produzido pelo poder dominante que responde pelos atos violentos instados exatamente pela ordem injusta existente.

Aos que retrucam se opondo a essa reflexão afirmando que não são mais e apenas criminosos isolados, os punguistas do passado não tão remoto assim, mas sim as organizações voltadas para o crime, não se espantem se souberem que parte dessas verdadeiras empresas do crime se instalaram no âmbito do Estado e de suas instituições. Portanto, operam com a conivência e omissão de agentes dos poderes públicos. Representam a parte podre do poder que deveria zelar e cuidar de seus cidadãos.

Ao final do magnífico filme de Charles Chaplin, cujo personagem aguarda a execução da pena de morte, é interrogado indagado do porquê de tanta violência cometida por aquele cidadão que ao perder o seu emprego seduziu mulheres ricas para dela tirar-lhes os seus bens. E o senhor Verdoux responde: o que dizer de uma sociedade que se arma para matar povos inteiros, mulheres, crianças e fabrica todo tipo de meios de destruição? Depois, ao receber a extrema-unção do padre, Verdoux responde: eu não temo Deus. Eu temo o ser humano (que se faz de senhor).

Como a arte busca refletir e em alguns casos especiais reproduzir a vida em suas dimensões dramáticas, a fala do personagem do filme é tão atual no que se passa em nossos dias que apesar de beirar oitenta anos de sua filmagem ele retrata com fidelidade valores tradicionais de uma estrutura social hipócrita, injusta, e arrogante na defesa de seus privilégios. Socializar essa fala tão bem representada por Chaplin é um dever de cidadania. Não é por acaso que o cinema, como as manifestações culturais em geral, sofreu censura e ainda sofre dos regimes antidemocráticos, cuja presença entre nós também é tão atual.

Compete as vozes da razão, dos adeptos da transformação em prol de um novo mundo, não se desiludirem com a política e com as pautas que historicamente fizeram da esquerda uma corrente fundada na defesa dos indefesos e explorados nas sociedades desiguais, avessas a toda e qualquer mudança que levem dignidade ao ser humano. Creio que mais do que um apelo é a constatação de que não resta outro caminho do que a luta coletiva, a socialmente organizada, que foi e deve ser o meio capaz de conduzir a humanidade para a construção de uma nova ordem social.

*Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Imagem em Freepik

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