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Reflexão sobre a polarização e as eleições de 2024
Reflexão sobre a polarização e as eleições de 2024
Por JOSÉ FORTUNATI*
Mesmo que as eleições municipais de 2024 não representem a verdadeira correlação de forças da política nacional, pela forma como o eleitor costuma olhar para os candidatos e as suas
preocupações com a rotina que o cerca, normalmente votando no que lhe parece ser o que possui o melhor perfil de “síndico” da sua cidade. Prova disso é que 82% dos atuais prefeitos(as), que
estavam concorrendo, foram reeleitos, independentemente da sigla partidária. Mas não podemos deixar de destacar que a questão partidária e a próxima disputa nacional também tiveram uma grande importância em muitas cidades.
Ao participar de campanhas em duas cidades (Porto Alegre e Canoas) e conversando com pessoas que não fazem parte das “bolhas” partidárias, e não têm a “política” como sua preocupação
cotidiana, ficaram patentes algumas questões que retiraram o voto nos partidos de esquerda. Quero refletir sobre duas delas:
A primeira, diz respeito ao profundo desgaste que o PT ainda sofre numa parcela considerável da população em função dos processos do “mensalão” e da “lava-jato”. Sabemos que a “vaza-jato” elucidou as artimanhas ilegais da denominada “República de Curitiba”, quando membros do Poder Judiciário mancomunados com membros do Ministério Público Federal articularam para impedir que Lula concorresse nas eleições de 2022 e, contando com a cumplicidade de uma parcela expressiva de membros da grande imprensa, tentaram inviabilizar a existência do PT de tal forma que a aguerrida militância chegava a temer sair às ruas portando a estrela no peito ou qualquer vestígio que possibilitasse o seu reconhecimento como um petista.
Naturalmente, não estou aqui desconhecendo os desatinos e desvio de dinheiro público levado a cabo por alguns, e não posso generalizar. Certamente, levaremos ainda muito tempo para
entender todo o processo, especialmente envolvendo os atores da “Lava-Jato” e as reais responsabilidades do desvio de recursos públicos para o enriquecimento privado. Mas, destaco, o papel de
muitos formadores de opinião e de grupos de comunicação, que não só denunciaram e combateram a corrupção, mas que, inegavelmente, tentaram de todas as formas matar na raiz o Partido
dos Trabalhadores.
A verdade é que ainda estamos vivenciando os resultados dessa verdadeira chacina política que se praticou contra todo o PT, que de forma inegável terminou por ser um dos fatores determinantes do processo eleitoral de 2024. Muitas pessoas foram convencidas de que o Partido dos Trabalhadores é formado por pessoas de índole duvidosa e por isso seus candidatos, não mereceram sequer serem ouvidos ou receber o mínimo de atenção, em função das denúncias generalizadas e focadas no PT de casos de corrupção.
Em Porto Alegre, participei da coordenação da campanha majoritária e desde então tem-se falado da rejeição da candidata Maria do Rosário. Percebe-se claramente que uma parcela do
eleitorado, influenciados pelas “fake News” distorceram propositadamente o que considero a justa defesa dos Direitos Humanos, feita com muita competência e garra pela nossa candidata. À medida que a campanha se desenrolava, esse estigma construído pela extrema-direita foi sendo destruído com a participação direta e presencial da Maria nas comunidades. Certamente não desconstruímos a totalidade da rejeição da nossa candidata, mas o que chama a atenção hoje, é o fato de muitos analistas da esquerda depositarem toda a responsabilidade nesse particular, sem levar em consideração a forte rejeição do PT em função da corrupção, da falta de um diálogo maior dos partidos que formavam a frente “Unidade por POA” com setores mais amplos da
política e da organização social e, principalmente, não buscaram aproximação com as comunidades de classe média e da periferia, sobretudo aquelas ligadas às Igrejas Evangélicas Pentecostais.
Das reflexões que proponho, a primeira delas, infelizmente uma parcela considerável da esquerda continua tratando de forma despolitizada, grosseira e agressiva os mais de 58 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro e os mais de 400 mil porto-alegrenses que votaram em Sebastião Melo. Em nada ajuda transformarmos o debate político numa lista de impropérios
chamando nossos adversários de “gado”, “fascistas”, “minions”, “negacionistas” e outros grosseiros adjetivos. O maior equívoco é transformar o debate político numa troca de adjetivações pesadas
que visam unicamente atacar todas as pessoas que tenham uma posição distinta da nossa, numa clara demonstração da soberba intelectual que se espalhou por uma boa parcela da esquerda.
O segundo equívoco é não compreender que num universo de 58 milhões ou de 400 mil pessoas existe uma enorme pluralidade de compreensões, posturas e entendimentos da política, razões essas que nos afastaram de uma parcela considerável de pessoas que poderiam terem sido “captadas” para o nosso projeto através de argumentos sólidos e consistentes, de um devido e respeitoso
debate. Antes de me rotularem de ingênuo, devo salientar que não desconheço que existem na extrema-direita os fascistas, os negacionistas, os golpistas etc. Mas generalizar para todo este
universo que não vota na esquerda, reflete um sectarismo que não nos ajuda a dialogar com outros setores da sociedade que estejam fora do nosso círculo.
Aprofundo minha reflexão a um segmento da comunidade que conheço muito bem e com ele tive a melhor das relações durante os oito anos à frente do Paço Municipal: os membros das igrejas
evangélicas pentecostais e neopentecostais. Neste período frequentei inúmeras igrejas de várias denominações, prestigiando as atividades sociais, culturais e religiosas, em comunidades
vulneráveis da cidade. Sistematicamente participava de encontros com o CIMEPA – Conselho Interministerial de Pastores de Porto Alegre; apoiei, institucionalmente, a realização da Marcha para
Jesus, entre outras atividades das igrejas de todas as denominações.
Há uma parte da esquerda que demoniza essas comunidades sem fazer qualquer distinção entre elas, cujas ofensas de forma despolitizada aumentam o fosso de um possível debate com uma
parcela delas. É preciso salientar que quando nos referimos às igrejas pentecostais e neopentecostais estamos tratando de uma pluralidade enorme de grupos. Mesmo que em todas elas a Bíblia
sagrada seja o livro fundamental das pregações, importa perceber que a rotina dessas igrejas têm variações enormes, sendo algumas pragmáticas na busca de recursos financeiros e atuam como
empresas privadas; algumas comandadas por pastores sem qualificação religiosa. Porém, a maioria das igrejas que professam a fé, realizam atividades inclusivas, ações sociais louváveis e criam
com os seus membros um sentido de pertencimento, de comunidade, equidade, onde o estado está longe de garantir e de propiciar, especialmente nas comunidades carentes, das vilas
populares de Porto Alegre e de todos os outros municípios de nosso Rio Grande e país.
É hora da esquerda compreender que o vertiginoso crescimento das igrejas evangélicas está diretamente ligado ao fato de que o Poder Público não conseguiu dar as condições necessárias para
que as pessoas socialmente vulneráveis se sintam bem, seguras, acolhidas e esperançosas de uma vida melhor. São pessoas que não conseguiram estudar além do ensino fundamental e no máximo
alcançaram o ensino médio ou profissionalizante; que trabalham de sol a sol para dar o básico para os seus filhos; famílias comandadas por mulheres com mais de três filhos e agregados (RS de acordo com o CadÚnico tem mais de 2 mil mulheres chefes de famílias); pessoas que se sentem completamente desamparadas pelo Estado. Aproxima-se então o pastor e os convida a participar da
igreja onde são recebidos pelos seus “iguais” e passam a ser respeitados. Tarefas são delegadas e cidadão e cidadã sente-se partícipe: ele ou ela passa a ser “um membro” da igreja! Em pouco
tempo o indivíduo se sente empoderado, assumindo pequenas funções, passando a ser reconhecido na congregação, a ter a condição de “pertencimento” de um grupo social, o que reflete na
elevação da sua autoestima. Nos momentos de dificuldades, quer com o desemprego ou doença de um familiar, ele encontra amparo neste grupo comunitário. Durante a pandemia do COVID e do
período da enchente que assolou o RS, foi a igreja que amparou a família com cestas básicas e com palavras de conforto, dividindo a tristeza e as preocupações com o futuro. Diante desta nova
realidade ele/ela fará o possível para absorver os valores e princípios defendidos pela sua nova comunidade, que em épocas eleitorais, opta por aceitar a indicação e tendo um resultado prático
na hora da escolha dos seus candidatos, normalmente indicados pelo pastor.
São pais e mães que não aceitam a tese da liberação da maconha pois a experiência prática vivenciada na comunidade é que os jovens terminam sendo capturados pelo tráfico e muitos perdem a
vida antes da maioridade. Se rebelam com o professor que tenta em sala de aula impor a linguagem neutra, na medida em que esta linguagem não é encontrada na Bíblia ou utilizada pela comunidade. Defendem a família tradicional porque normalmente vivem em locais onde os núcleos familiares não são consistentes, o que termina causando dores e dificuldades, além do conceito bíblico sobre o tema. Não aceitam a diversidade de gênero pois sabem o quanto os seus filhos serão discriminados na comunidade se um deles se apresentar enquanto assumindo sua condição e opção sexual fora dos padrões preconizados pela religião. Por terem dificuldades de conseguir um bom emprego, com um salário razoável e com carteira assinada, embarcam com fervor nas teses
da “Teologia do Empreendedorismo” e, terminam sendo contaminados pelas fake news do “kit gay”, da “mamadeira de piroca”, do “kit drogas”, entre outras baboseiras inventadas pela
extrema-direita para desgastar a esquerda.
O problema é que parcela da esquerda, do alto da sua soberba e prepotência, simplesmente procura rotular essas comunidades de forma ofensiva possibilitando que os setores conservadores
naveguem isoladamente por estes mares bravios, turvos e incertos.
Se o resultado das eleições americanas nos assustou e criou a incerteza e o desconforto de que em 2026 poderemos perder as
eleições no Brasil, ele deve servir de alerta para que os democratas defensores do Estado Democrático de Direito comecem, desde logo, a dialogar com setores que estão fora da bolha, que não
sejam socialistas ou revolucionários, mas que sejam tratados com as devidas idiossincrasias que a boa política exige.
Sem enfrentarmos estas premissas, entre outras, ficará difícil antever construir uma vitória eleitoral em 2026.
*José Fortunati, foi Prefeito de Porto Alegre (2 mandatos), Deputado Federal e Secretário de Estado da Educação do RS
Foto da capa: Salvador Dali – Filadélfia Museu de Arte: Construção macia com feijão cozido (Premonição da Guerra Civil Espanhola)
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