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Opinião

Racionalidade deliberativa e o “momento de ouro para nós”

Racionalidade deliberativa e o “momento de ouro para nós”

Artigo por RED
06/10/2023 05:30 • Atualizado em 09/10/2023 09:32
Racionalidade deliberativa e o “momento de ouro para nós”

De DOMINGOS ALEXANDRE*

O cotidiano é feito de avanços e recuos e as mudanças, do que quer que  seja, podem se dar para frente e para trás, para melhor e para pior, meio que  contrariando o filósofo quando afirmou que “tudo tende ao bem”. Não podemos  ignorar o que Darwin ensinou sobre a seleção natural em sua obra A Origem das  Espécies, conteúdo cujo conhecimento deveria ser pré-requisito para todo aluno  com intenção de concluir um Ensino Médio de respeito. Segundo o genial inglês  do século dezenove, a natureza vai propondo, através de centenas de milhares  de anos e de processos físico-químicos e genéticos, criações novas que,  submetidas à seleção natural, acabam se consolidando, fato que explica o  comprimento do pescoço da girafa, o chifre do rinoceronte, a orelha em formato  de parabólica dos felinos, por exemplo.

No século vinte, o filósofo norte-americano John Rawls, no livro Uma  teoria da justiça, ensinou que no dia a dia da vida em sociedade, nossas atitudes  e ações ocorrem de tal modo que guardam certa semelhança com os processos  da natureza, ou seja, tendo em mente a justiça, empregamos em nossos planos  de vida o que ele chamou de Princípio Aristotélico, que, entre outras coisas, diz:  “…presumindo-se que desejamos obter o respeito e a boa vontade das outras  pessoas, ou pelo menos que queremos evitar sua hostilidade e desprezo,  tenderão a ser preferíveis os planos de vida que promovem não só os nossos,  mas também os objetivos delas”1. Apenas essa observação já favorece o  entendimento da nossa predisposição para a mudança. 

Convém lembrar que, até meados do século dezoito, o Regime Feudal  estava tão arraigado no Ocidente que era impensável qualquer mudança significativa. Havia os senhores feudais, grandes proprietários de terras, e os  servos da gleba, até que, com o surgimento da máquina a vapor, dos teares  mecânicos e de outros equipamentos, teve início a Revolução Industrial e, com  ela, o surgimento da burguesia e do Capitalismo. 

Hoje a situação é tão absurda quanto era no Feudalismo. Muitos  filósofos, historiadores, sociólogos e pensadores têm denunciado a inadmissível  concentração da riqueza, como é o caso, para exemplificar, de Noam Chomsky,  Thomas Piketty e Michael J. Sandel. Dizem esses pensadores que o acúmulo de  capital é tão grande que o poder econômico desses potentados rivaliza com o  poder dos Estados. Diante disso, há razões para otimismos? Podemos deliberar  com racionalidade e acreditar que “um outro mundo é possível”? A resposta é  sim. Já há evidências que apontam nessa direção e, de quebra, podemos estar  nos livrando do que seria a última Guerra Mundial, afinal Adam Smith transita  livremente por entre agentes econômicos da República Popular da China. 

Outro forte indício de que a mudança já está em curso é o acordo firmado  entre Estados Unidos da América e o Brasil, visando ao fortalecimento dos  movimentos sindicais e à valorização do trabalho. O principal país capitalista não  estará tomando consciência de que precisa absorver e aplicar alguma coisa da  doutrina marxista? Os responsáveis pela outrora viçosa economia dos EUA não  estariam de acordo com a prática de equidade do marxismo? Já não seria tempo dos irmãos do norte imitarem a humildade (e o tirocínio) dos chineses e  admitirem a procedência da isonomia para todos os seres humanos? Assim como a posse da terra no período do feudalismo, hoje a concentração de grandes fortunas financeiras caracteriza o capitalismo. E qual  seria o bem que ocuparia a função que hoje é do dinheiro e que serviria para  identificar um novo período econômico, político e social? Olhemos à nossa volta  e analisemos tudo o que existe e que possui valor econômico, ou seja, todos os  objetos que compõem a riqueza. Constataremos que tudo é feito de minérios  (ferro, aço, ouro, lítio, etc), de madeira, de vidro, de tecido, de plástico, de  produtos químicos, tudo disponível na natureza. Há praticamente quatro séculos, Thomas Hobbes garantia que todo ser humano deveria ter direitos iguais para  usufruir dos bens presentes na natureza. Toda a riqueza patrimonial é feita da  matéria-prima encontrada na natureza e de trabalho. Não estamos questionando  a importância do lucro como ganho legítimo de quem empreende, de quem tem  iniciativa e como fator que motiva e promove o desenvolvimento. A conta que  não fecha é que o trabalhador, por mais especializado e sofisticado que seja,  terá que trabalhar toda a sua vida para garantir apenas uma situação econômica  modesta, se tudo correr como se espera. Já o detentor do capital aufere seu  lucro da mais-valia extraída do tempo de vida de um, de centenas, ou de milhares  de trabalhadores, gerando a atual perversa e indefensável concentração da  riqueza. Tal como Deng Xiaoping teve a grandeza de reconhecer algumas  virtudes do Capitalismo, é chegado o momento das grandes lideranças e dos  Estados constituídos reconhecerem o valor do Trabalho. 

Há, ainda, outros indícios a testemunharem que o capitalismo, assim  como hoje é praticado, não se sustenta. Há poucos dias um importante veículo  de imprensa dos EUA divulgou que o número de mortos na guerra da Ucrânia é  por volta de cento e noventa mil. Cento e noventa mil vidas. Cento e noventa mil  seres humanos e a possibilidade de piorar é grande. A disputa por poder, por  riqueza, por hegemonia, nos dias atuais, está fora de controle e reúne os  principais elementos com potencial para outra guerra planetária que, provavelmente, seria a última.  

Importantes e perspicazes lideranças globais têm defendido mudanças  na Organização das Nações Unidas, como ampliação do Conselho de  Segurança, e têm deixado clara a necessidade daquela entidade ter uma governança eficaz. São propostas válidas, importantes, necessárias, mas  insuficientes. 

A maior parte da humanidade talvez não perceba, mas a mudança está  ocorrendo. Se quisermos evitar o desastre de um mundo conflagrado,  precisamos permitir que viceje um novo sistema econômico, político e social no  qual isonomia, equidade, democracia e justiça social sejam uma realidade. Um  mundo onde o trabalho seja reconhecido e a ele seja dado o seu justo valor. 


*Bacharel em história pela UFRGS.

1 Uma teoria da justiça. John Rawls. Martins Fontes. Trad. Jussara Simões. 1997. P. 526.

Imagem da tela “Operários”, pintada em 1933 por Tarsila do Amaral.

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