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Opinião

Procurei um velho amigo na Avenida Paulista e ele não estava mais lá. Registro aqui a sua existência

Procurei um velho amigo na Avenida Paulista e ele não estava mais lá. Registro aqui a sua existência

Artigo por RED
30/05/2023 05:30 • Atualizado em 01/06/2023 09:17
Procurei um velho amigo na Avenida Paulista e ele não estava mais lá. Registro aqui a sua existência

De MARIA RITA KEHL*

Recentemente, fui visitar meu amigo na Avenida Paulista e ele não estava lá. Ninguém, ao redor de seu endereço, sabia seu paradeiro. Tinha desaparecido daminha paisagem tão familiar.

Acontece que seu endereço não era o de um prédio ou de uma loja. Era uma barraca na calçada, dessas que uma ONG teve a excelente ideia de distribuir para moradores de rua. Meu amigo, cujo nome nunca me ocorreu perguntar, não morava só. Como também acontece com moradores de rua, vivia com seus cachorros. Cinco. Só me lembro do nome de uma delas: Vaquinha. Hoje, percebo, consternada, que também nunca perguntei o nome do próprio dono dos cãezinhos! Quando eu passava por ali, pedia dinheiro apenas para comprar comida para os bichos. Mas, além de ajudá-lo com a ração barata dos seus bichinhos, eu também comprava, no bar atrás de sua barraca, um pastel de carne e um de frango. A exclamação de prazer com que ele recebia o lanche – ôôÔ dona! – evidenciava que, apesar de pedir ajuda apenas para alimentar seus cachorros, ele também tinha fome.

Na triste ocasião em que não o encontrei, perguntei do seu paradeiro ao dono do bar. Me disse que a policia tirou a barraca e levou os cachorros para um abrigo da prefeitura, porque o rapaz os tinha deixado três dias trancados na barraca, sozinhos. Por alguns dias, sumiu.

Não acredito que fosse descaso. Para mim, era óbvio o apego aos cachorros. Pode ter adoecido e ido parar em um hospital público – onde, talvez, tenha ficado alguns dias num corredor à espera de assistência, não por desleixo dos médicos, mas por falta de leitos disponíveis. Pode ter sido preso, por puro preconceito da polícia. Imaginei a desolação de voltar para “casa” e não achar nem a barraca nem sua família canina.

Não subestimemos o apego dos moradores de rua por seus cães. São sua companhia, seus defensores e, nas noites de
inverno, também são capazes de aquecê-los. Entendo que seu pedido de ajuda para comprar comida para eles fosse sincero, não apenas um truque para pedir esmolas. “O estômago roncava, mas não deixou de dividir o pastel com aquele cachorro que era a desgraça de sua vida”, diz um lambe-lambe fixado em um poste da Vila Madalena. Assim é.

Tomei um táxi e passei bem devagar, na ida e na volta, debaixo do viaduto que liga a Doutor Arnaldo à Paulista. As calçadas ali estão todas ocupadas pelos moradores de rua que se protegem do frio e da chuva. Ele não estava lá. Fiquei triste como se tivesse perdido contato com um parente próximo, com um velho amigo.

Faz pouco soube que o desmonte das barracas dos moradores de rua tornou-se uma política oficial imposta pelo prefeito-coxinha Ricardo Nunes. Uma crueldade gratuita. Que mal fazem eles? Os moradores de rua não são bandidos. Por que o prefeito filiado ao MDB optou por uma “limpeza étnica” na cidade?

Étnica, sim, pois a maioria dos muito pobres costuma ser de negros, descendentes dos escravos que, no Brasil, foram jogados nas ruas sem nenhum recurso para refazer suas vidas, depois da abolição.

Os Estados Unidos têm uma considerável parcela da população composta de negros de classe média – um deles chegou a presidente da república – por conta da política que, em alguns estados do Sul, concedeu um pedaço de terra e um animal de tração para as famílias libertas. Aqui, foram simplesmente jogados nas ruas. O senhor de escravos que mantinha, sob uma dieta de fome, cem africanos trabalhando para ele sob açoite, ao ser obrigado a contratá-los escolheu os mais fortes e despejou o “resto” na rua.

Não por acaso, a maior parte da população pobre é composta de descendentes de africanos. Não são vagabundos. São os órfãos da abolição.

Volto ao prefeito. Será que pensa que roubando – esse é o termo – as barracas legitimamente concedidas aos moradores de rua, eles desaparecerão das calçadas? Para onde iriam? Continuarão nas calçadas, evidentemente. Só que com frio. Debaixo da chuva, que, quando vem forte, não tem marquise que proteja.

Por que me valho deste espaço para contar a história de um morador de rua anônimo? Bem, como escreveu o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin em suas Teses Sobre o Conceito de História, a história oficial refere-se, invariavelmente, aos fatos e bravuras cometi- dos pelos vencedores. Os reis, os vencedores de batalhas, os heróis. É com estes que os historiadores, que ele chama de “historicistas”, se identificam. “Os que num dado momento dominam”, escreveu, “são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia, sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que es- tão prostrados no chão.

Quem contaria a história dos vencidos? É necessário contar a história deles, pois a dos vencedores está nos livros, nas teses, nas homenagens, nas salas de aula. Se meu amigo sumiu- talvez eu nunca mais o veja-, que ao menos sua existência anônima fique registrada aqui. Uma vida anônima e injustiçada. Imagino como estará triste longe de seus cachorros. Imagino como os cãezinhos estarão tristes longe dele. E não perdoo, como espero que os leitores desta coluna também não perdoem, a insensibilidade “limpinha”, cheirando a eugenia, do prefeito Ricardo Nunes.


*Psicanalista, ensaísta e crítica literária.

Foto: Rovena Rosa

Artigo publicado originalmente em Carta Capital, cedido pela autora.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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