Opinião
Primeiros lampejos depois do susto
Primeiros lampejos depois do susto
De JURANDIR MALERBA*
O golpe foi bruto. Principalmente pelo fator surpresa. Um sentimento de perplexidade doura o de frustação. Os resultados gerais do primeiro turno das eleições de 02 de Outubro surpreenderam institutos de pesquisa (que agora correm o risco de criminalização), a própria classe política e os analistas (dentre os quais o intelectuais, sediados sobretudo na universidade). Um primeiro movimento é o de minimizar a estrondosa derrota do “campo progressista”. Lula colocou 5 milhões de votos na frente de Bolsonaro. A bancada do PT aumentou, Boulos teve a maior votação no Estado de São Paulo, duas candidatas transexuais foram eleitas, perfil inédito na Câmara. Uma lista de candidatos de direita ou extrema-direita não conseguiram se eleger. Blá, blá, blá. Sim, tudo isso é importante. Porém, contrariando projeções de véspera, Lula perdeu em todas as regiões, excluindo-se o Nordeste. Nos maiores colégios, como São Paulo e Rio de Janeiro, derrotas largas e amargas. A Federação Brasil de Esperança fez 80 deputados, mas o PL sozinho fez 99 (maior bancada desde 1998!); junte-se União Brasil (59), PP (47), PSD (42), Cidadania (18), Podemos (12), são 277 congressistas à direita, mais da metade do parlamento. Com uma quirela de orçamento secreto, se modifica em dois tempos a Constituição ou se faz um impeachment. Boulos foi o candidato mais votado de São Paulo, mas seguido de perto por Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Ricardo Salles e Delegado Bruno, entre os cinco mais votados.
O fator surpresa precisa ser explicado pelos institutos de pesquisa, que não captaram o movimento subterrâneo de consolidação do perfil conservador do eleitorado brasileiro manifesto em 2018 e cravado agora. A classe política, à esquerda, se surpreendeu porque há muito tempo perdeu o sentimento das ruas. Setores muito minoritários do campo progressista ainda mantêm dois dedos na testa para sentir a temperatura do povo oprimido das comunidades periféricas que cercam as grandes cidades, onde as milícias, o tráfico e grupos evangélicos ocupam os vazios deixados pelo Estado. E nas brenhas dos sertões sem fim, onde manda o agro (a plantation escravista high-tech) e a ignorância.
O susto dos intelectuais, como o dos políticos, também está na distância abissal que mantêm (que nós mantemos!) da realidade. Nos iludimos respirando o ar da bolha, entorpecidos na leitura das teorias importadas, que replicamos e fazemos repicar nos grupos de estudo, em conferências doutas, nas monografias e artigos que nos esforçamos para publicar em revistas de altos extratos, extasiados com nossas performances nas avaliações de curso de graduação e PPG’s. Aí somos atropelados por um trem-bala eleitoral que joga na nossa cara que a realidade – insisto na palavra, a REALIDADE – é muito mais complexa do que conseguimos ver em nossas bolhas institucionais e virtuais; que os grandes problemas das Ciências Sociais e das Humanidades a serem encarados para tentarmos sair desse labirinto deveriam ser tópicos como a relação entre religião e sociedade, e entre religião e política e, ainda, o conflito capital e trabalho; que a maioria esmagadora do povo brasileiro, de todos os extratos sociais, é pobre, cristã e muito conservadora. O que me faz pensar que os objetos e bandeiras progressistas perseguidos nos guetos universitários estão longe, muito longe, de atender às demandas da grande maioria do povo brasileiro. Mas a extrema direita entendeu isso. Quando o líder protofascista regurgita conceitos como “Deus, pátria, família, liberdade”, (embora não acreditando em nada disso), ele sabe que atinge a grande maioria. Ele entendeu e domina o campo simbólico melhor que nós, intelectuais do gueto.
A “esquerda” precisa discutir seriamente o que define esse conceito. Sobretudo nós, dentro da universidade pública. Pautas e grupos setorizados, por mais legítimos e urgentes que sejam para nós, no universo ideal das coisas justas e belas, no mundo real não aglutinam. Talvez esteja na hora de voltar a pensar e buscar pautas universais, afeitas aos direitos dos cidadãos, como trabalho, renda, seguridade social, saúde, educação, moradia, transporte –direitos que compete a um Estado laico perseguir e prover. Enquanto ainda houver Estado laico para defendermos. Enquanto houver universidade pública.
*Historiador, Professor Titular Livre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Imagem em Pixabay.
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