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Opinião

Pomada Minâncora para todos os tempos

Pomada Minâncora para todos os tempos

Artigo por RED
10/12/2022 04:00 • Atualizado em 12/12/2022 08:33
Pomada Minâncora para todos os tempos

De EDELBERTO BEHS*

Menos divulgada hoje no circuito farmacêutico, a Minâncora era presença quase obrigatória nas farmácias caseiras da geração de jubilados, aposentados, reformados que se postam em frente a quartéis pedindo intervenção das Forças Armadas. A pomada tem uma ação antisséptica, antipuriginosa, analgésica e cicatrizante, aplicada sobre feridas, frieiras e picadas de inseto.

O jornalista Sebastião Nery detectou que no Brasil a pomada também tem aplicação simbólica. Na cassação dos direitos políticos do ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK), acusado de corrupção pelo regime militar, mas nada encontrado nas investigações do Conselho de Segurança Nacional que o incriminassem, Castelo Branco aplicou a Minâncora ao caso: aproximação com o comunismo.

“Se Castelo [Branco, primeiro presidente do regime militar de 64] não podia dizer que cassou por corrupção e se jamais confessaria que foi porque o FMI não admitia a candidatura JK-65 [porque seria o provável vencedor], só havia uma desculpa: o comunismo, a pomada Minâncora da época. Servia para tudo”, escreveu Nery no livro Grandes Pecados da Imprensa.

Embora a nova geração pouco conheça as atribuições curativas da Minâncora, ela continua sendo aplicada no Brasil, no campo terapêutico e simbólico. A pomada apareceu com força na campanha do candidato Jair Messias Bolsonaro, em 2018. Profissional conhecido meu da área da biomedicina, com lá seus cinquenta e poucos anos, gay, justificou o voto no mito porque o Brasil estava às portas do comunismo. “Eu não quero que isso aqui vire uma Venezuela”, justificou.

É impressionante a vascularidade simbólica da Minâncora no decorrer da história do país. O deputado liberal no tempo do Brasil Império, Antônio Alves de Sousa Carvalho, antiabolicionista, argumentava que a libertação dos escravos era “a naturalização do comunismo”, “o suicídio da nação”.

A Minâncora rolou solta antes do golpe civil-militar de 1964. Simplesmente abjeto como a aplicaram no governo de João Belchior Marques Goulart, o Jango, presidente do Brasil de 8 de setembro de 1961 a 1º de abril de 1964. Católico fervoroso, que portava medalhinha de Nossa Senhora no pescoço e mandava rezar missas na Capela do Palácio, e que, mediante decreto de 8 de dezembro de 1963, consagrou a data ao Dia de Nossa Senhora da Conceição e Dia da Família, foi taxado de comunista. Jango era vice-presidente da gestão Jânio Quadros. Quando Jânio renunciou ao cargo, Jango estava em viagem oficial na China, assim como Bolsonaro já o fez em menos de dois anos de mandato.

Em 25 de março de 1994, a mulher de Jango, Maria Thereza, escreveu um artigo para o Jornal do Brasil, lembrando os 30 anos do golpe, sob o título A queda de todos nós:

Fala-se no Partido Comunista. Jango queria uma autêntica e ampla reforma agrária? Sim, para isso criou a Supra [Superintendência da Reforma Agrária]. Ele queria que o Brasil fosse dono de suas riquezas? Sim, por isso anunciou a nacionalização das refinarias de petróleo. Sem sombra de dúvida, meu marido tinha um projeto de Brasil. Um projeto moderno, socializante, cujas propostas coincidiam em muitos pontos com as dos comunistas. A verdade é que Jango tinha uma única preocupação: melhorar a vida do camponês sem terra, do operário das cidades, dos desvalidos e desassistidos. Por isso, naquele momento, fala a língua do povo.

A língua do povo eram as tais reformas de base, apresentadas em discurso na Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março de 1964, reformas ainda hoje necessárias ao país. Reforma agrária! Coisa de comunista! Simplesmente ridículo. Uma das primeiras medidas que os americanos introduziram assim que ocuparam o Japão no término da Segunda Guerra Mundial foi promover uma reforma agrária num país que ainda apresentava uma estrutura agrária medieval.

Mas as tais reformas eram demais para a elite dominante. Então ela recorreu à pomada milagrosa, com o apoio de setores empresariais, militares, imprensa e até mesmo de parte da Igreja Católica, uma das promotoras da famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu milhares de manifestantes no dia 19 de março de 1964, Dia de São José, padroeiro da família, nas ruas de São Paulo.

“As marchas contribuíram na construção de um discurso legitimador do golpe civil-militar, segundo o qual ele representaria um desejo da sociedade civil”, apontou a historiadora Aline Pressot em entrevista concedida ao IHU On-Line. O governo Jango “caminhava para o comunismo e a consequente destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade”, foi a Minâncora do golpe.

Até mesmo a Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil de 1964, contra o voto de uma minoria que se opôs, agradeceu publicamente os militares por terem “salvado o país do comunismo”. Substituam as lideranças e parte do povo católico de então por pastores neopentecostais e suas greis e teremos um quadro semelhante em 2022.

Até mesmo o indicativo que Jango perdia apoio popular com o anúncio das reformas foi uma deslavada mentira na época. Pesquisa do Ibope realizada em São Paulo às vésperas do golpe indicavam que ele tinha amplo apoio para as reformas de 70% da população, que aprovavam as medidas do governo.

Em entrevista ao programa Ponto de Vista, em março de 2014, o professor Luiz Antônio Dias, da PUC-SP, lembrou o papel da imprensa na articulação do golpe, entre eles Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. “Eram recorrentes matérias ou editorais vinculando o governo aos comunistas. Não me lembro de ter visto nenhuma afirmação direta de que Goulart fosse comunista, mas era muito comum, por exemplo, atribuir ao Ministério da Educação um programa comunista, como a criação de cartilhas para doutrinar nossos jovens”, comentou.

Com a ajuda da imprensa a Minâncora age muito melhor. Foi tão diferente assim em 2018? E agora, para os patridiotas em frente aos quartéis? A grande mídia instaurou o ódio ao PT, ajudou a eleger Jair Messias Bolsonaro e, ao que parece, mostra-se hoje arrependida, assim como o fez com a eleição de Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”.

A Minâncora ainda foi e é útil. O teólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff, em entrevista ao IHU, classificou boa parte da população brasileira – diga-se, eleitores de Bolsonaro – de “burros trágicos”, num duplo sentido da palavra:

Num primeiro sentido, “burro trágico” é aquele que facilmente se deixa enganar por candidatos que suscitam falsas promessas, com slogans apelativos meramente propagandísticos, como “Deus acima de tudo e o Brasil acima de todos” (lema nazista), “fora PT”, “combate à corrupção”, “resgate dos valores tradicionais” “escola sem partido” contra a “a ideologia de gênero”, “combate ao comunismo”, contra “a cultura marxista”. Essas duas últimas bandeiras são de uma “burrice trágica” e palmar única, num tempo que nem mais comunismo existe e que ninguém sabe o que significa exatamente “cultura marxista”. Esse primeiro tipo de “burro trágico” é fruto da ignorância, da falta de informação e da maldade contra quem pensa diferente.

Entende-se, pois, porque o Ministério da Educação esteve preocupado com cursos na área das Humanas. Em 26 de abril de 2019, o presidente Messias anunciou a pretensão de descentralizar investimentos neste campo. “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, a escrita e a fazer conta, e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”, alegou Bolsonaro. Nada de atividades que levem à reflexão!

Ainda nos anos 1500, Martim Lutero anunciava:

Agora, o progresso de uma cidade [de um país] não depende apenas do ajuntamento de grandes tesouros, da construção de grandes muros, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armas. … Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando ela tem muitas pessoas bem instruídas, muitos cidadãos sensatos, honestos e bem educados.

Se pensarmos nas autoridades que foram delegadas à área federal… esse governo quer profissionais que não pensem. Na verdade, pessoas enxergam o mundo de acordo com a sua bagagem cultural, vivências, conhecimentos acumulados, a inserção no tempo e no espaço. Como dizia o filósofo, jornalista e ativista político espanhol José Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias.”

Mas para tanto é preciso estudar, pensar, circular, relacionar, analisar – tudo o que não importou ao Ministério da Educação. Pelas redes sociais, Jair estava mais preocupado em enfatizar o seu messianismo, com o apoio do fanatismo neopentecostal. Interessante analisar a semântica de fanatismo, que vem do latim fanum. Fanático é, portanto, aquele que busca as suas certezas no templo, tornando-as inquestionáveis. Tudo o que esse governo necrófilo pretendeu.

Está passando da hora de o povo brasileiro conhecer melhor essa tal pomada Minâncora! O resultado das eleições de outubro resultou no renascimento barulhento do “burro trágico” que, parado em frente a quartéis, diz “não ao comunismo”, e diz que o povo é soberano, mas não aceita a vitória de Lula.


*Professor, teólogo e jornalista.

Imagem – reprodução da internet.

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