Curtas
O Coringa Venceu a Mulher Gato. E Agora, José?
RED
Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
A eleição de Trump não se deu porque o povo confia nele. Ela se deu porque Harris não trouxe nada além de críticas a Trump. Há quem tente explicar o fracasso de sua candidatura pela misoginia. Ora, convenhamos: até o México tem uma mulher presidente! A questão é muito outra: a eleição era um plebiscito entre mais do mesmo ou o risco do caos. Quando “mais do mesmo” parece horrível, é preferível o risco do caos. Norman Finkelstein, Entrevista ao The Middle East Eye
Introdução
A vitória de Donald Trump caiu como uma bomba de dispersão sobre a quase totalidade dos “liberais e progressistas” do mundo contemporâneo, que sonhavam com mais quatro anos de gestão do Partido Democrata (PD) nos EUA. Nas bombas de dispersão, o artefato principal carrega consigo artefatos menores – as bomblets - que, lançadas à grande distância, explodem ao atingir novos alvos. A bomba principal – Donald Trump – explodiu sobre o PD, nos EUA. Mas também impôs enormes estragos em seus Avatares Europeus: o Partido (nem tão) Trabalhista de Starmer, no Reino-Unido; o Partido (nem tão) Social-Democrata de Scholz, coligado com o (nem tão) Verde de Analenna Baerbock, na Alemanha; o Renascimento (algo moribundo) de Macron, na França; e a coalizão centrista que sustenta (“balança, mas não cai”) Ursula von Der Leyen na Presidência da Comissão Europeia.
Em suma: a bomba principal atingiu em cheio os partidos e organizações políticas que (até a posse de Trump, em 2025) estão no comando das principais economias ocidentais. Partidos, organizações e governos que – em luta diuturna pela preservação da ordem mundial baseada em SUAS regras - vêm sustentando, com armas, recursos financeiros e apoio tecnológico, informacional e logístico, o morticínio na Ucrânia e o genocídio em Gaza. Em uma entrevista extremamente esclarecedora dada ao The Telegraph, o embaixador norte-americano John Bolton, ex-assessor dos Presidentes Reagan, Bush (pai), Bush (filho) e Trump, esclarece por que decidiu apoiar Kamala Harris no pleito desse ano. Segundo Bolton, não há dúvida de que Harris daria continuidade à política externa norte-americana, e não pouparia recursos em apoio à Ucrânia e a Israel. Diferentemente, Trump é uma incógnita. Não é possível prever o que fará. Ele é até capaz de impor um cessar fogo na Ucrânia e na Palestina. Pior! De acordo com Bolton, Trump seria capaz de até mesmo romper com a OTAN, inviabilizando financeira e militarmente este pilar da “segurança e da paz” (sic, coff, argh, irc) no mundo. .... Pois é. I intão?
[1] Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Por sua vez, as bomblets se espraiaram mundo afora. Na Argentina, Milei comemorou a vitória de Trump, afirmando que, doravante, a Argentina não terá dificuldades em obter novos empréstimos junto ao FMI. As redes sociais no Brasil foram tomadas pelos festejos dos bolsonaristas, confiantes de que Trump usará de sua influência para conquistar a anistia do Mito. Políticos, jornalistas e “influencers” conservadores do mundo todo comemoraram a derrota de Kamala Harris, pretendendo que ela representaria a derrota do esquerdismo identitário (veja aqui, aqui e aqui). Até a usualmente ponderada (e sempre centrista) Mônica de Bolle caracterizou a campanha de Kamala Harris como “esquerdista”, porquanto demasiadamente apegada às pautas identitárias.
O mais interessante, contudo, foi assistir à explosão das bomblets de esquerda. Fazendo eco às críticas de conservadores e centristas, parte não desprezível da esquerda encampou o discurso de que o apego às pautas identitárias teria sido uma das causas centrais da derrota de Kamala (para um exemplo extremo, veja-se a análise do PCO). Do meu ponto de vista, isso é pura bull shit. Finkelstein destrói com esse argumento na entrevista donde extraímos a epígrafe. No Brasil, Luis Felipe Miguel, foi na mesma linha:
o problema da campanha de Harris não foi seu excessivo identitarismo, mas a ausência de um projeto capaz de falar ... à multidão de perdedores da “América”. Trump falou a eles — mentiras, mas falou. Os democratas tentaram mascarar sua falta de qualquer projeto transformador com os atributos identitários da candidata”.
O bom é que toda a desgraça tem seu lado cômico. E esse lado ficou sob a responsabilidade dos defensores mais ardorosos do “wokismo”. Tal como seria de se esperar de todes que apostam no poder revolucionário dos pronomes, a esquerda identitária assumiu a defesa da derrota. Seu argumento principal é que o mundo vive uma “onda conservadora”; o que torna ainda mais urgente e relevante a defesa militante des minories. E não ouse questionar as determinações de tal “onde conservadere”. Só deterministas são capazes de colocar uma tal questão. O culturalismo woke é pós-tudo e abandonou o determinismo marxista. As ondas políticas e culturais caem do céu. Na dúvida, leia Nostradamus. Ou ouça Tetê Espíndola: estava escrito nas estrelas, tava sim.
2.Os dados e os números: estes “estraga-certezas”
O Missouri não é um Swing State, mas um “curral” do Partido Republicano (PR). Tal como seria de se esperar, Trump foi o vencedor nas eleições de 2024, superando Kamala Harris por quase 20 pontos percentuais (60 x 40). Mais: o PR elegeu o governador, o vice-governador, o senador e 75% dos deputados federais. Haja conservadorismo! ... Será?
Em 2022 a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que a legislação sobre aborto caberia aos Estados. Tal como em outros dez Estados norte-americanos, o pleito de 2024 foi utilizado no Missouri para a realização do plebiscito acerca do tema. E o direito das mulheres por optarem pelo aborto até o momento em que o nascituro pode sobreviver fora do útero foi consagrado no Missouri, Arizona, Nevada, Montana, Maryland, New York e Colorado Os quatro primeiros Estados deram maioria a Trump. Na Florida (trumpista), exigiu-se 60% dos votos para a flexibilização da lei vigente sobre o aborto, que o limita às primeiras seis semanas de gestação. Apesar de ter obtido folgada maioria, os votos pró-flexibilização não atingiram 60%. Em Nebraska, a flexibilização também foi perdedora: aprovou-se a manutenção da lei vigente, que garante o direito ao aborto até a décima-segunda semana de gestação. O único Estado que deliberou pelo fim do aborto (exceto em caso de estupro, risco de vida para a mãe, anencefalia) foi South Dakota; onde Trump obteve quase dois terços dos votos totais. “Detalhe” nada trivial: a população de South Dakota não chega a 1 milhão de habitantes e – em função do contínuo êxodo da população mais jovem – a maioria da população não está mais em idade reprodutiva.
E o Missouri não aprovou apenas o direito ao aborto. O “curral do PR” também aprovou a elevação do salário-mínimo por hora trabalhada, que passou de US$ 1,25 para US$ 13,75. ... Será mesmo que o voto no PR (em geral) e em Trump (em particular) é sinônimo de voto reacionário e expressa a recusa radical das pautas identitárias? ... Observemos os resultados globais das recentes eleições nos EUA.
Na primeira linha do Quadro acima (a linha A), temos os dados da votação de Trump em 2020 (quando foi derrotado por Biden) e em 2024 (quando derrotou Kamala). O crescimento da votação em Trump foi de 2,45 milhões de votos; 3,3%% acima dos votos obtidos em 2020. A maior diferença percentual e absoluta encontra-se na segunda linha (B) do Quadro 1: em 2024: Kamala angariou 7,2 milhões de votos a menos que Biden em 2020; uma queda de -8,84%. Na terceira linha (C), temos a soma dos votos no PR (em Trump) e dos votos no PD (em Biden e Kamala) em 2020 e em 2024. Ela mostra uma queda expressiva – de 4,73 milhões - no número de eleitores dos dois principais partidos norte-americanos. Na quarta linha (D) temos a evolução dos votos nos demais candidatos: uma queda de 150 mil (-3,04%). Na quinta linha (E) temos a evolução do voto total nos EUA nas duas eleições, revelando uma queda de quase 5 milhões de eleitores.
Mas a linha realmente reveladora é a linha F. O que ela nos informa? Em primeiro lugar, que a vitória de Biden sobre Trump foi de 7 milhões de votos, enquanto a “incensada e magnificada” vitória de Trump sobre Kamala foi de apenas 2,57 milhões. Só que essa diferença é maior do que o acréscimo dos votos de Trump (última célula da linha A: 2,45 milhões). O significado desses dados é muito claro: não foi Trump que ganhou a eleição; foi Kamala (e o PD) que a perdeu. A vitória do PR está integralmente baseada na expressiva queda de votos recebidos pela candidata do PD e pelos “candidatos alternativos”. A eleição de Trump é a expressão da desesperança com a política em geral e da perda de confiança dos eleitores progressistas com o PD. Por quê?
3. A “evolução” da Economia Norte-Americana
Em setembro de 2024 John Mearsheimer e Jeffrey Sachs participaram de um debate no All-In Summit de Los Angeles. A primeira pergunta dirigida aos debatedores foi se eles haviam se surpreendido com o apoio de Dick Cheney (do PR e ex-Vice-presidente dos EUA, nas gestões de Bush-filho) a Kamala Harris. O primeiro a responder foi Sachs, que disse:
Não me surpreende de forma alguma. Existe basicamente um único partido nos EUA e ele é o Partido do “Estado Profundo”. Este é o Partido de Cheney, de Harris e de Biden. É o Partido de Victoria Nuland que ... é a cara desse Partido. Ela participou de todos os governos norte-americanos nos últimos 30 anos. Ela participou do governo Clinton, destruindo todas as políticas de aproximação com a Rússia. Ela participou da gestão de Bush Júnior, como assessora de Cheney, minando os compromissos de contenção da OTAN em direção ao Leste Europeu. Ela participou da gestão Obama como porta voz de Hillary Clinton, quando orquestrou o golpe de Estado na Ucrânia em 2014. No Governo Biden ela se tornou Secretária de Estado Adjunta e esteve à frente da articulação da Guerra na Ucrânia. ... Não existem dois partidos nos EUA, mas um só.
John Mearsheimer foi mais suscinto em sua resposta. E afirmou: “Eu gosto de me referir aos partidos Republicano e Democrata como Tweedledee e Tweedledum (os irmãos gêmeos de Alice Através do Espelho).
Ao longo do debate, ambos foram trazendo à luz a evolução recente da Economia e da Diplomacia norte-americana. E anteciparam a derrota de Kamala Harris e os motivos da mesma. Que não tem qualquer relação com o “compromisso” do PD com as políticas identitárias. Mas, isto sim, com o privilegiamento do complexo militar-industrial e com as guerras imperialistas em detrimento do atendimento das demandas populares de emprego, salário, renda e assistência social. Vejamos a questão mais de perto. Quer nos parecer que um bom ponto de partida seja a evolução da distribuição da renda nos Estados Unidos ao longo do últimos cem anos. A Figura 1, abaixo, apresenta a participação na renda dos 1% mais ricos (linha vermelha) e dos 50% mais pobres (linha azul).
O gráfico foi extraído de um artigo publicado na Real World Economics Review (número 107) sintomaticamente intitulado Back to the Past. Tal como se pode observar a participação na renda da parcela mais rica da população em 1913 era pouco superior a 20%; um patamar similar à participação desse estrato em 2021. Por outro lado, a participação dos 50% mais pobres era de aproximadamente 15% na segunda década do século XX e, atualmente, gira em torno de 13%. O gráfico de barras (em verde) nos informa quantas vezes a renda média do estrato mais rico supera a renda média e do estrato mais pobre. Sua escala está representada no eixo vertical à direita. No início do século XX e no início do século XXI esta relação gira em torno de 70 vezes.
Mas se a estrutura distributiva atual é similar àquela do início do século XX, ela é radicalmente distinta da estrutura distributiva de meados do século passado. A transição se deu nos anos 30, na gestão de Franklin Delano Roosevelt. E se consolidou no pós-Segunda Guerra, nas gestões de Truman, Eisenhower, Kennedy e Johnson. Com exceção de Eisenhower, todos esses presidentes eram filiados ao PD. É só a partir dos anos 70 que a participação dos 50% mais pobres na renda volta a cair. A inflexão tem início nas gestões de Nixon e Ford. Mas persiste na gestão Carter, do PD. E se aprofunda nas gestões Republicanas de Reagan e Bush pai. O retorno do PD à Casa Branca com Clinton, em 1993 não altera a tendência. Pelo contrário: será nos anos Clinton que se dará a “volta para o passado”, quando a participação dos 1% mais ricos volta a superar a participação dos 50% mais pobres. A tendência persiste nas gestões de Bush filho e Obama. Mas – surpreendentemente! – se estabilizará nos anos Trump.
A questão que fica é: qual foi o papel dos Republicanos e dos Democratas nesse processo de concentração de renda? Será que Tweedledee e Tweedleldum “contribuíram” da mesma forma? Ou será que – tal como no texto de Lewis Caroll – os irmãos gêmeos se complementam e um conclui a frase iniciada pelo outro?
4. Tweedledee e Tweedledum não são iguais: apenas se completam
De acordo com o “bom senso comum”, o processo de concentração de renda que emerge nos anos 70 nos EUA e no Reino-Unido e, com um pequeno retardo, na totalidade das economias capitalistas centrais, seria filho do neoliberalismo. A tese não está errada, mas é insuficiente. Seu lado correto encontra-se no reconhecimento de que os cortes nos gastos sociais implementados por Nixon no início dos anos 70 e a nova política tributária de Reagan no início dos anos 80 (assentada em cortes expressivos dos impostos sobre rendimentos superiores e sobre o lucro das empresas) encontram-se na base da inflexão das linhas azul e vermelha do gráfico acima.
Mas há uma contribuição específica do PD para o processo de concentração de renda. Essa contribuição encontra-se na forma particular como os EUA (em especial, nas gestões do PD) abraçou e promoveu o processo de globalização a partir do último quartel do século passado. Mais exatamente, encontra-se nas consequências da estratégia adotada: a desindustrialização da economia norte-americana e, por extensão, na perda de expressão econômica e política daquele segmento social que havia sido a principal base de apoio do PD desde as gestões de Franklin Delano Roosevelt: o operariado industrial. O Quadro 2, abaixo, apresenta a evolução do emprego por segmento produtivo na economia norte-americana entre 1979 e 2019. Vejamos o que ele nos informa.
x'
Em 1979, a participação do emprego industrial no emprego total nos EUA era de aproximadamente 28%, sendo que quase 1 em cada 4 cidadãos eram operários da Indústria de Transformação. Em 2019, a participação do emprego industrial caiu para 14%. E só não caiu mais porque houve elevação na Construção Civil. Afinal, ainda não podemos importar residências e edifícios. Mas a queda do emprego manufatureiro foi brutal: quase 7 milhões de postos deixaram de existir. E mesmo o emprego na Construção Civil cresce abaixo da média nacional. Por oposição, as ocupações nos serviços privados mais que duplicam, com ênfase nas áreas de gestão, consultoria, educação, saúde, hotelaria, gastronomia e lazer. Não há como superestimar o impacto social, político e cultural de uma mudança tão radical na estrutura de ocupação. Pois ela vem associada a uma depressão relativa dos salários industriais (que, historicamente, eram mais elevados que os salários pagos nos serviços não especializados) e a uma crescente insegurança com relação à preservação do emprego.
Para que possamos entender a contribuição específica do PD para esse processo, precisamos, primeiro, entender o que diferencia a “visão de mundo” e o horizonte político-programático dos filiados ao PD e ao PR. O mapa abaixo, com a votação dos dois partidos em 2024 por condado, nos ajudará a captar essa diferença. O mapa foi extraído do site de Cyrus Janssen; mais exatamente do vídeo cujo título encontra-se na parte superior à esquerda do mapa.
O que vemos é um mar vermelho com algumas ilhas azuis. Porém, a geografia física pode ser enganosa se a tomamos literalmente. Sabemos que Trump obteve pouco mais da metade dos votos válidos; mais exatamente, obteve 50,85% soma dos votos dos dois partidos competitivos, e Harris obteve 49,15%. Ocorre que Harris venceu nos centros urbanos mais populosos. Mire o Texas, no centro-sul do mapa: os pontos azuis são os municípios de Dallas, Houston, Austin, El Paso e condados do entorno. Em Nebraska, Harris obteve a maioria apenas na capital, Lincoln, e na cidade mais populosa, Douglas. Já o voto Republicano é predominantemente interiorano e rural. Esta diferença vem acompanhada de outra: o voto no PD é predominantemente “costeiro”. Harris venceu em todos os condados costeiros da California (exceto El Norte) e perdeu em todos os condados interioranos (exceto Nevada, Al Pine e Mono). E também conta com uma inflexão étnica: seus votos interioranos no Novo México e no Arizona são, predominantemente, latinos. Enquanto os votos interioranos na porção leste do “Cinturão do Sol” (Carolina do Sul, Georgia, Alabama, Mississipi, Arkansas e Lousiana) são, predominantemente, oriundos da população negra. Por fim, há uma grande mancha azul no Nordeste dos EUA, na região chamada de Nova Inglaterra (Maine, Vermont, New Hampshire, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island), que faz divisa, à sudoeste, com New York, um Estado “quase novo inglês”.
A despeito do Mapa 1, acima, estar referido à eleição de 2024, a informação que ele traz tem dimensões estruturais. Não é gratuito que boa parte do debate sobre prognósticos eleitorais nos EUA se refiram aos “Swing States”, vale dizer, àqueles POUCOS Estados que “balançam” entre os dois partidos. A grande maioria dos Estados Norte-Americanos é fiel ao mesmo partido. Por quê? Porque há uma forte conexão entre o território e o horizonte sociopolítico do eleitor típico dos dois partidos.
O eleitor padrão do PR é aquele sujeito que hierarquiza sua vida e suas relações na seguinte ordem: a família vem em primeiro lugar, seguida pelo seu negócio, a sua igreja, a comunidade de fiéis, a sua comunidade política (condado e município), o seu Estado natal, os EUA e, por fim, o “resto do mundo”. A visão de mundo do Democrata padrão é invertida. Tal como os ingleses do século XIX, os novo-ingleses entendem que os EUA carregam um destino manifesto: civilizar e democratizar (sic, cof, argh, irc) o mundo. Esta conexão com o mundo é reforçada pelo caráter costeiro-portuário e urbano-metropolitano do eleitor do PD. Sua base no século XX era composta por operários e assalariados urbanos das áreas de comércio, e dos serviços privados e públicos. A desindustrialização acelerada dos EUA nas últimas décadas ceifou o eleitorado industrial. E impôs uma rotação (bastante perversa) da base social do PD em direção aos trabalhadores do setor de serviços com alta qualificação.
Apesar dos maioria dos líderes das organizações sindicais norte-americanas ainda manifestarem apoio aos candidatos do PD, emergem exceções importantes (como a Teamster Union). Além disso, a influência das lideranças sindicais sobre o voto de suas bases é cada vez menor. De acordo com pesquisas realizadas às vésperas das eleições, a vantagem de Harris sobre Trump entre trabalhadores sindicalizados era inferior à margem de erro. Além disso, a percentagem de trabalhadores sindicalizados vem caindo ano após ano nos EUA. Atualmente é de apenas 10% do total; em 1983, correspondia a 20,1%. E mesmo esta percentagem de 10% é enganadora: a sindicalização é relativamente expressiva entre funcionários públicos (32,5% do total), mas apenas 6% dos trabalhadores na iniciativa privada estão vinculados a algum sindicato.
Não podemos nos surpreender, pois, com os resultados da pesquisa do Economic Innovation Group (EIG) sobre o perfil dos eleitores de Trump e Harris: a maioria dos apoiadores do Republicano são trabalhadores manuais (blue collars) sem nível superior, enquanto a maioria dos apoiadores de Harris são trabalhadores de escritório (white collars); e cerca de 50% dos eleitores de Harris contam com nível superior (esta percentagem é de 37,7% para o conjunto da população adulta dos EUA). O que ajuda a entender os resultados expostos no Quadro 3, oriundo da mesma pesquisa do EIG. O Quadro mostra a avaliação que os eleitores e Kamala (K) e Trump (T), com nível superior (C, de College) ou sem nível superior (nC) fazem do impacto previsível sobre seu emprego e renda da sustentação e/ou aprofundamento de 4 tendências presentes na economia atual: 1) introdução de novas tecnologias; 2) liberação da importação de bens e serviços; 3) ingresso de imigrantes legais; 4) ingresso de imigrantes ilegais.
Quadro 3: Avaliação dos Eleitores de Kamala e Trump e Kamala acerca do Impacto de Distintas Tendências da Economia Contemporânea sobre sua Renda e Emprego
O primeiro a observar é que o eleitor de Trump sem nível superior (T-nC) é o mais refratário a todas estas tendências. Veja-se a última coluna do Quadro acima. Ela diz que: 1) 32,5% dos T-nC acreditam que as novas tecnologias podem deprimir seu mercado de trabalho e sua taxa de salário; 2) 54% temem o aumento de importações; 3) 51,5% temem novos imigrantes legais; e 4) 74%acreditam que a imigração ilegal é funesta para seus rendimentos e estabilidade. Quem é esse sujeito? Ele é o trabalhador fabril (que teme os impactos da automação); o vendedor no comércio (que teme os impactos do débito automático via celular quando o consumidor atravessa as portas da loja com a mercadoria); é o motorista de Uber, que teme o desenvolvimento de automóveis inteligentes; é o entregador de pizza que teme a concorrência do drone. Ele teme que o aumento das importações e da venda por catálogo lhe tire do chão de fábrica e do comércio. Ele teme o imigrante – seja legal, seja ilegal – pois vive acossado pelo desemprego, e não quer novos concorrentes. Mas ele teme, acima de tudo, o ilegal. Pois este é tão pouco qualificado quanto ele próprio e vai concorrer diretamente consigo.
De outro lado o “típico” eleitor de Kamala, o K-C, encontra-se representado na primeira coluna do Quadro 3 e tem o espectro oposto. Ele atua em atividades vinculadas ao P&D e vê o progresso técnico (o robô, o carro inteligente, o drone entregador, etc.) como uma oportunidade de melhorar sua inserção profissional; ele é um profissional do setor de serviços não-importáveis, e percebe uma vantagem nas importações de bens de consumo baratos, opondo-se à elevação de alíquotas aduaneiras; ele não teme o imigrante legal (que pode colaborar consigo no desenvolvimento de P&D, nas bancas de Advocacia ou no sistema financeiro) e tem pouca resistência ao imigrante ilegal (que pode, até, vir a se tornar seu motorista ou faxineiro).
Quem tem razão? ... Ambos e nenhum. Não se trata de uma questão científica, mas de uma questão de interesses e temores. Não se trata de debater a emergência – ou não! – de novos nichos de trabalho com o aprofundamento do progresso técnico. Não se trata de analisar - com apoio de 200 economistas e dez megacomputadores - quais serão os impactos da imigração ilegal sobre o salário e o emprego do norte-americano “braçal” daqui a 15 anos em 5000 cenários distintos. Não se trata de um exercício teórico ou da disputa da “modelagem mais elegante”. Trata-se de se ter medo ou não.
A única contribuição “científica” ao debate seria: o medo dos eleitores T-nC é paranoico ou é sensato e racional? E a resposta à essa pergunta é inequívoca: o trabalhador que vem assistindo à depressão de seu mercado de trabalho (o operário industrial) e/ou à depressão de seu salário médio e de seu bem-estar; o trabalhador que teme perder sua casa cada vez que o Secretário do Tesouro (ou Ministro da Fazenda) decide “acalmar os mercados”; o sujeito que “opta” por ficar em casa quando doente, tratando-se com ervas e rezas, para não abrir falência após receber a conta hospitalar, tem todos os motivos do mundo para ter medo. E tem inúmeros motivos para não acreditar que os Democratas, hoje, estejam efetivamente preocupados e comprometidos com a mudança das condições políticas e econômicas que os fazem ter medo.
Em duas entrevistas que têm que ser vistas, Michael Sandel e Norman Finkelstein tentam nos explicar o que a vitória de Trump diz sobre a sociedade norte-americana atual. Não vou reproduzir seus argumentos. Seria ocioso: qualquer leitor pode assistir suas exposições com grande vantagem para si. Mas reproduzo o que me parece ser a ideia principal. Segundo os dois pensadores, mais do que uma guinada à direita do PD, assistimos a uma mudança radical do padrão de trabalho e de estratificação social nos EUA e no mundo nos últimos 40 anos. No novo padrão de estratificação social, os neo-winners (por oposição ao “ever-winner”, o burguês) são os trabalhadores altamente qualificado, que atuam em serviços de TI, saúde, educação, P&D, jurídicos, logística, marketing, finanças, etc. As políticas do PD tendem a promover e a qualificar a inserção socioeconômica desse sujeito. ... Ok. ... É um direito do PD tomar a nova elite cultural e econômica como sua principal base eleitoral. Só não tem o direito de acusar os eleitores da base da pirâmide que se voltaram para os PR de traidores, caipiras, misóginos, ignorantes e fascistas. MenAs, pliss. Bem menAs.
5. Querid@s, precisamos falar sobre Jimmy
Dissemos acima que a contribuição especificamente Democrata para a concentração de renda nos EUA foi a promoção da desindustrialização do país. Não há como tratar desse tema de forma exaustiva. Vamos deixá-lo para um próximo artigo. Mas não podemos deixar de dedicar um brevíssimo comentário à questão.
Eric Hobsbawm costumava dizer que poucos homens na História da Humanidade conquistaram tanta admiração (no limite da idolatria) com contribuições tão modestas quanto John Kennedy. Estou de pleno acordo. Mas creio que o desnível entre “political appeal” e “political effectiveness” não é uma exclusividade de JFK, mas uma característica difundida entre as lideranças do Partido Democrata.
Bill Clinton destruiu o acordo de Reagan e Bush pai com Gorbachev e Ieltsin de preservar as fronteiras da OTAN sem perder o sorriso nos lábios e a pose de galã. Ele conseguiu transformar a OTAN em uma organização ofensiva – ao bombardear a Sérvia – com olhos lacrimejantes pelos muçulmanos mortos na Bósnia-Herzegovina. Hilary não faria melhor. Um líder do PD não precisa ser humanista e/ou pacifista; basta parecer.
Obama venceu Hilary nas prévias e recebeu o Nobel da Paz em avant-première. Ele tem a devida aparência. E governou os EUA por 8 anos sem um único dia de paz. Com o apoio de Hilary Clinton e Victoria Nuland, bombardeou a Síria, a Líbia, o Iraque e o Afeganistão, articulou “revoluções alaranjadas” mundo afora, promoveu o golpe de 2014 na Ucrânia com cookies feitos em casa por tia Victoria, e chamou Lula de “o cara” enquanto seu governo patrocinava a Lava-Jato.
Biden não é charmoso como JFK, Bill e Barak. Seu political appeal está no seu papel de Uncle Joe: 100% Teflon. Não há escândalo sobre uso de drogas, negócios escusos, corrupção, uso de informações privilegiadas de seus filhos que fira sua imagem de Tiozão. O amor da mídia pelo bom velhinho é tamanho que levou ao racha do The Intercept às vésperas das eleições de 2020, quando Glenn Greenwald insistiu em publicar um artigo denunciando a corrupção de Hunter Biden (filho de Joe) e foi censurado para “não atrapalhar as eleições”. Durante seu mandato, a imprensa “livre e liberal” dos EUA incensou seu apoio a Zelenski (e aos neo-nazistas do Batalhão Azov) e a Israel (que perpetra um genocídio em Gaza com bombas e bomblets norte-americanas).
Mas há uma figura fora da curva nesse grupo. Jimmy Carter não está, nem no time dos charmosos e cultos (Roosevelt, JFK, Clinton e Obama), nem no time dos tiozões (Biden, Truman e Johnson). Ele é a expressão mais pura do (pretenso) “bom mocismo” Democrata. Apesar de ter rompido com a détente de Nixon e reiniciado a Guerra Fria ele ainda hoje é incensado como inimigo das ditaduras e defensor dos direitos humanos. Ninguém parece lembrar de seu boicote às Olímpiadas de Moscou, das sanções impostas à URSS (com o embargo comercial), do fracasso do SALT II, de seu apoio ao Xá Palehvi e aos governos ditatoriais e/ou conservadores do Oriente Médio com vistas a criar uma aliança Anti-Irã após a revolução islâmica, ou do apoio aos Talibãs no conflito do Afeganistão. Mas deixemos estas questões “polêmicas” de lado. O que nos importa entender é sua “contribuição” particular para a desindustrialização dos EUA.
Com o fim do lastro ouro e a transformação do dólar em uma moeda estritamente fiduciária em 1971, sua taxa de câmbio com outras moedas passou a variar. Mas os EUA continuavam a apresentar déficit nas Balanças Comercial e de Transações Correntes, e os pagava com “papel pintado”. Após o primeiro choque do petróleo (1973) a inflação voltou a subir nos EUA. E estes dois fatores – excesso de dólares no mercado internacional e inflação interna – levaram a um conjunto de desvalorizações da moeda americana, o que colocava mais pressão sobre os preços domésticos pela elevação dos preços dos importados. Com o segundo choque do petróleo associado à Revolução Iraniana a situação tornou-se insustentável, e Carter optou por indicar um economista ultra ortodoxo para o Banco Central - John Volcker –, que impôs um brutal choque nos juros pagos pelos títulos da dívida pública: eles passaram de algo em torno de -2% a.a. para algo em torno de 10% reais ao ano. O resultado foi a ampliação da demanda por dólares (que volta a se valorizar) e a canalização de todo o excesso de liquidez mundial para os EUA. Com a revalorização do dólar, caem os preços dos importados e a inflação doméstica é posta sob controle. As medidas de Carter-Volker tiveram, contudo, dois “efeitos colaterais” importantes: a taxa de desemprego nos EUA elevou-se abruptamente (chegando a 10%) e os países endividados da periferia tiveram crescentes dificuldades para rolar suas dívidas externas. No plano interno, as medidas levam à derrota do PD nas eleições de 1980, com a consagração de Ronald Reagan. No plano externo, os custos de rolagem das dívidas dos países do Terceiro Mundo levaram à suspenção de pagamentos e à capitulação ao FMI, que impôs a adoção de políticas ortodoxas e ao encerramento dos programas nacional-desenvolvimentistas.
Com o recrudescimento das relações com a URSS, Carter se aproximará da China de Deng Xiao Ping (vista como um polo de resistência aos soviéticos), dando início ao processo de extroversão industrial norte-americana com direção à Ásia (Coca-Cola, em 1978; IBM e GE, em 1979, etc.). Esses dois movimentos de Carter/Volcker – apoio à instalação de plantas industriais na China e a política de dólar forte e importados baratos – estão na base do movimento de desindustrialização dos EUA e ganharam dimensão estrutural nas gestões subsequentes de Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e Obama. A melhor expressão é a evolução do número de empregados na indústria norte-americana, cujo ápice histórico ocorreu em 1979. Desde então, este número vem caindo de forma sistemática (a despeito de raras, honrosas e fugazes recuperações).
6. E agora, José?
A esquerda amante do PD não para de chorar a derrota de Kamala Harris. Ora, a sobrinha de Biden obteve 92,4% dos votos “populares” na capital federal, Washington - Distrito de Columbia. Trump obteve apenas 6,7% dos votos do DC. Será que isso nos diz algo sobre as preferências do deep state norte-americano? Será que nos diz algo sobre os limites estruturais da contrarrevolução proposta por Trump?
Segundo Max Weber, modernização, racionalização, normatização e burocratização são sinônimos. Mas a esquerda intelectualizada, que ama o Partido Democrata e seus avatares europeus, só esgrime Max Weber quando lhe convém. Ela não reconhece esta sinonímia. No fundo, acredita que os Presidentes eleitos têm um poder que, de fato, eles não têm. E sempre que seus partidos charmosos, modernosos, wokistas e (pseudo) reformistas sucumbem em pleitos eleitorais, ela chama a patuleia de burra e anuncia o retorno do fascismo.
Não se trata de negar essa possibilidade. O mundo não vai nada bem e o desespero é crescente. Porém, mais até do que na Alemanha de Weimar, qualquer retomada do fascismo tem de ser integralmente imputada à capitulação da esquerda. Nos idos anos 20 e 30 do século passado, a Alemanha se encontrava sufocada pelos trágicos termos do Acordo de Versalhes (que deveria se chamar “Imposto de Versalhes”), pela hiperinflação e pela crise global dos anos 30. Nada disso está posto, hoje, nos EUA, na Europa ou no mundo. De sorte que as chances de Trump impor uma ditadura nos EUA são tão grandes quanto as chances de seu programa econômico ser bem-sucedido: praticamente nenhuma.
Não se trata de negar os enormes desafios e riscos postos à frente; é preciso ser cego para não ver que estamos destruindo o planeta enquanto as redes sociais disseminam fake News e imbecilizam as massas. Trump, Milei e Bolsonaro não são mais do que expressões tragicômicas dessa imbecilização global. Mas a dimensão mais preocupante do emburrecimento global é aquela que diz respeito ao nosso campo: encontra-se na subserviência aos ditames do mercado de uma esquerda envelhecida e desdentada, que se mostra totalmente incapaz de levantar palavras de ordem minimamente consistentes com as demandas populares contemporâneas. De uma “eXquerda” que taxa de antissemita qualquer protesto contra o genocídio em Gaza. De um eXquerda que privilegia o equilíbrio fiscal ao enfrentamento da fome. De uma numa eXquerda que finge acreditar que o avanço conservador é fruto de uma “onda misógina, racista e homofóbica” que caiu sobre a Terra porque estava escrito nas estrelas. De uma eXquerda que não se olha no espelho para não ver o óbvio: que seus projetos não são apenas velhos: são elitistas. Na dúvida, volte ao Quadro 3 acima e veja onde você, leitor, se situa. Se você está na primeira coluna, no Kamala-College, você é um winner. Parabéns! Seja bem-vindo à nova elite! Você é um privilegiado! Mas, pliss, reconheça-se como tal e tente ter alguma empatia com as demandas do andar de baixo. Caso não consiga, assuma-se neoconservador. Um neoconservador woke, chic e descolado. Tem coisa mais up to date?
Se conselhos fossem realmente valiosos, não seriam dados, mas vendidos. Infelizmente, sou um péssimo negociante e não consigo resistir a distribuir graciosamente meus conselhos; mesmo os que reputo mais valiosos. E gostaria de dar um conselho ao seu José: pare de se preocupar com o Coringa e trate de observar melhor o que a Mulher Gato e o Tiozão Joe fizeram de errado. No limite, siga a dica de Brizola sobre a Globo:observe o caminho tomado pelo PD nos últimos 40 anos. Desde a financeirização desindustrializante de Carter até o belicismo genocida de Biden. E tente o caminho oposto. O caminho de Roosevelt. Vitória garantida ou seu dinheiro de volta!
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa: Reprodução
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.