?>

Opinião

Os venezuelanos irão votar nas próximas eleições brasileiras?

Os venezuelanos irão votar nas próximas eleições brasileiras?

Artigo por RED
02/06/2023 05:25 • Atualizado em 04/06/2023 14:41
Os venezuelanos irão votar nas próximas eleições brasileiras?

De LUCIANO FEDOZZI*

Nas últimas eleições municipais em Porto Alegre, um caminhão de som circulou nos bairros anunciando que em caso de vitória da candidatura de Manuela e Rossetto (PCdoB/PT) a cidade iria virar uma Venezuela, “onde se come cachorro para não passar fome”. Essa farsa não será evitada nas próximas eleições, porque já sabemos o que a extrema-direita e seus agregados liberais autoritários são capazes de fazer, mas é de se perguntar: está correta a linha de fornecer de peito aberto argumentos a estes inimigos da democracia? Quais são os ganhos nacionais e locais dessa estratégia? Isto ajuda a tarefa primordial que é derrotar a extrema direita e o projeto neoliberal no país e nas cidades? Afinal, hoje em dia, com as mídias sociais, se pode dicotomizar o nacional e o internacional, adotando uma estratégia distinta para cada plano onde se dá a luta pela hegemonia?

Sem entrar no mérito da discussão sobre o que se passa na Venezuela, apesar dessa questão ser muito importante para definir as relações normativas e práticas da esquerda socialista em relação a democracia, é urgente debater a atual estratégia internacional do governo Lula, a fim de contribuir para seu sucesso e em consequência para a consolidação da democracia no Brasil e o prosseguimento das reformas populares que são necessárias à reconstrução da nação.

Nesse sentido é preciso firmar na direção do projeto democrático-popular, que a tarefa internacionalista primeira é derrotar politicamente em cada país a extrema-direita conservadora e a direita neoliberal do capital, correntes aliadas que constituem uma das coalizões mais poderosas e em crescimento no mundo hoje. Esta é a maior contribuição que as forças de esquerda podem e devem dar ao mundo na atual quadra histórica do capitalismo, marcada pelo crescimento dos neofascismos e todo o tipo de assombro anticivilizatório, negacionista e destrutivo.

Esse imperativo político e moral não deve se limitar ao plano interno, mas articular o nacional e o internacional. As ações da presidência da república em nível mundial precisam sempre ter em mente que não se pode facilitar o trabalho do inimigo interno, porque o mundo com mídias sociais mudou a forma de veicular as ações políticas e a forma de construção discursiva das hegemonias.

Isto significa medir de forma estratégica cada ato na arena internacional como sendo um ato que também se apresenta na arena nacional. Que fique claro: não se trata de renunciar a princípios que balizam a própria existência da visão de mundo da esquerda diante da atual crise estrutural do capitalismo, mas sim de medir com absoluta clareza as consequências internas das ações adotadas (com atos e palavras) sobre as questões que dizem respeito ao cenário internacional. Hoje, o nacional e o internacional estão mais ligados do que nunca na história das civilizações. Seria um erro grave achar que se pode viabilizar um governo nacional de frente ampla democrática e reconstrutiva do país e ao mesmo tempo efetivar uma política internacional balizada apenas pelas políticas que seriam próprias supostamente a um governo de esquerda. Esta divisão entre o interno e o externo é falha e vai gerar condicionantes internos ainda mais restritivos do que já o são, pelas atuais relações de força tanto nas instituições da democracia representativa como na sociedade em geral.

As dificuldades da disputa institucional e societária são suficientemente grandes para justificar a prudência e o cuidado que o projeto político reconstrutivo em curso no Brasil precisa ter, a fim de se viabilizar com sucesso. Engana-se quem acha que o problema da imagem pode ser uma Folha de São Paulo ou a Globo, conhecidas agências neoliberais, apesar de antibolsonaristas e nos últimos anos defensoras da democracia. Sim, a disputa das camadas médias é chave, para o qual boa parte dessa mídia tradicional é representativa. Todavia, o advento das TICs e das mídias sociais tornou a disputa pela hegemonia muito mais difícil, por uma série de razões que especialistas e
pesquisas multidisciplinares vêm mostrando. Esta realidade material não pode ser considerada apenas nos períodos eleitorais, mas sim no cotidiano, onde são construídas versões e narrativas, factuais e/ou fake que moldam a opinião e a vontade de um grande contingente da cidadania. Nessa questão o projeto de comunicação é tão importante quanto às próprias ações governamentais.

Por outro lado, a ideia de que no plano internacional o governo Lula III está liberado para dizer e fazer o que quiser, como se nessa dimensão o que vale é o projeto da esquerda hegemônica que governa o Brasil, é equivocado e potencialmente danoso. Não interessa à complexa reconstrução do país – ainda que hegemonizada pelo PT no governo – que supõe aliados, demonstrar dubiedades em relação à forma do regime democrático, por mais legítima que seja esta questão. Aliás, isto não é tema pacífico mesmo no campo das esquerdas, e provavelmente nuca o será. E não deve ser nesse momento, já que a opção do PT foi pela defesa intransigente das regras que sustentam nossa democracia liberal, que, apesar de tudo e dos abusos, permitiram a vitória e a posse de Lula.

Sabemos dos limites da democracia liberal e do quanto esse modelo vem sendo questionado a partir das reformas neoliberais nos anos 1980 no mundo capitalista. Mas também sabemos das suas virtudes, atestadas por exemplo nas cinco vitórias petistas dentre os nove pleitos realizados no Brasil desde a redemocratização. Por isso, a discussão internacional sobre modelos de democracia e o exercício da soberania popular que se dá em cada país não deve ser um tema prioritário, sob pena de eleger pautas que tem somente a perder no bloco de forças que precisam sustentar o governo e no conjunto da sociedade em geral. A disputa estratégica que realmente precisa e merece atenção, além da defesa de nossa democracia e da ampla participação popular para aprofundá-la, é a que diz respeito à construção da alternativa ao projeto neoliberal e rentista, que sufoca a nação e impõe pesados sacrifícios às classes trabalhadoras e aos segmentos mais empobrecidos. Toda a energia prática e discursiva precisa ser direcionada ao campo interno no que diz respeito à melhoria da vida da grande maioria da população. Reconstrução do Estado e da capacidade de desenvolver políticas públicas redistributivas e atinentes aos direitos identitários, assim como a retomada do desenvolvimento econômico, inclusivo e sustentável, precisa ser o Norte. Isto define a necessidade
histórica da luta de classes e pelos direitos humanos básicos no país e no mundo, e é ao mesmo tempo a maior contribuição que podemos dar ao internacionalismo nas lutas contra o neoliberalismo e as antigas e novas formas de colonialismo num mundo em efervescência e transição.

Evidentemente, ações em favor da paz, do desarmamento, de relações de cooperação mais justas entre Sul-Norte, da escolha de parceiros estratégicos fora do campo de influência dos EUA e da unidade latino-americana sempre são importantes no papel que o Brasil deve desempenhar. Devemos prosseguir fortalecendo os BRICS, o Mercosul e a América Latina, além de lutar pela reformulação das instâncias da ONU. Como vemos, já são muitas as tarefas para dar conta em nossa política internacional. Elas não precisam de polêmicas desnecessárias ou atitudes típicas de congresso estudantil, com todo o respeito que essas instâncias merecem, porque a decisão nas próximas eleições sobre quem deve governar será dos cidadãos e das cidadãs brasileiras.


*Professor de Sociologia da UFRGS. Pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.