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“O outro é sempre uma possibilidade de violência”
“O outro é sempre uma possibilidade de violência”
Por NUBIA SILVEIRA*
Camila nasceu num corpo errado. Num corpo em que não se reconhecia. Ele pertencia a Cristian Omar. E como tal, este corpo deveria se mostrar másculo, forte, viril, como os irmãos mais velhos, filhos do primeiro casamento de seu pai. Desde a infância o corpo de Cristian expunha a feminilidade de Camila. Queria ter o amor, os carinhos e o sexo dos meninos. Ainda criança descobriu que sua vida seria marcada pela violência. Não só de seu pai, mas dos homens que o menosprezavam por ser “bicha”, mas o procuravam para uma transa. O efeminado Cristian viveu a infância e parte da adolescência numa cidade do interior de Córdoba, província argentina.
Quando pôde, Camila fugiu da família e da cidadezinha preconceituosa que a abafava. Foi para Córdoba, capital, onde começou uma vida dupla: o rapaz que frequentava a faculdade durante o dia, tentando imitar colegas e professores, quando o que queria mesmo era viver como as colegas: usar seus vestidos, sapatos de salto, maquiagem. Camila, porém, só aparecia quando o sol se punha. Para sobreviver, prostituiu-se. Andava pelas ruas em busca de clientes. Com medo, lembrava-se, constantemente, do que seu pai lhe dizia em tom de ameaça: que ele e sua mãe um dia a encontrariam morta em alguma sarjeta.
Na capital, uma noite, Camila resolveu enfrentar o medo e ir até o Parque Sarmiento, onde as travestis se reuniam, em busca de clientes. Lá elas encontravam, também, proteção e carinho da líder Tia Encarna, dona da pensão em que a maioria vivia. Camila foi bem-aceita pelo grupo, começou a trabalhar com suas irmãs e foi morar na pensão. Todas as madrugadas, quando chegava em casa, cansada, Camila anotava em seu diário o que acontecera com ela e suas companheiras em mais uma noite de trabalho.
O Parque das Irmãs Magníficas, publicado pela Tusquests Editores S.A., em 2019, é o testemunho da atriz trans Camila Sosa Villada sobre os anos em que sobreviveu prostituindo-se. Hoje, sente ter-se afastado da comunidade, que a apoiou. No livro, permeado pela violência, estão histórias vividas por ela e suas companheiras. Um dos relatos mais doloridos trata do amor de Tia Encarna pelo menino que ela encontrou abandonado num dos cantos mais escuros do Parque, entre plantas cheias de espinhos. A velha travesti ficara rica com a prostituição e decidiu, contra o voto de Maria, a travesti surda-muda, que já previa os problemas e o sofrimento futuros da amiga, que criaria o menino como seu filho.
Outra lembrança violenta é a da noite em que uma delas chegou à pensão ferida de morte pelo noivo. Ele descobrira que a travesti estava com aids e atacou-a com toda a violência de que era capaz. O medo era o companheiro fiel de todas elas. Quando um cliente as tratava com carinho, se apaixonavam. A escritora afirmou à revista Veja, quando participou da FLIP, em 2022, que a primeira violência que as travestis sofrem é a da linguagem. Esta violência estará sempre presente na sua literatura. É impossível não falar do que conheceu, do que sentiu, do “perigo que os outros significam, o perigo que é se ligar com alguém”. Camila acredita que as travestis vivem “tendo a consciência de que o outro é sempre uma possibilidade de violência”.
Recomendo a leitura de O Parque das Irmãs Magníficas. Ele nos mostra um mundo de sofrimento, que a maioria de nós desconhece. O livro está à venda na Amazon por R$ 46,44. O exemplar está por R$ 39,13, na Estante Virtual.
*Nubia Silveira é jornalista.
Ilustração da capa: Capa do livro O Parque das Irmãs Magníficas – Divulgação.
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