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O homem invisível
O homem invisível
Por DENISE F. JARDIM*
A primeira denúncia contra Alberto Fernández ocorreu semana passada e já avistamos um longo caminho pela frente. Ele deve seguir um script bem conhecido: a denúncia da vítima, a descredibilização da vítima, o cálculo das consequências da denúncia sobre a vida ordinária do agressor, novas arenas de culpabilização da vítima pelo dano à imagem pública do agressor até o processo seguir para outras arenas e encontrar, ou não, novas denúncias de pessoas agredidas pelo mesmo agressor. Aquelas que só se revelam no momento de gritar diante da descredibilização da vítima, para não testemunhar mais uma vez, um silenciamento da violência de gênero, perdidas em uma espiral de ponderações sobre os “danos acumulados” na dolce vida do agressor.
Apenas começamos esse longo caminho.
O que sabemos no momento, e desde os anos 90, é que a vida da pessoa agredida que busca a via judicial se desdobra na arena jurídica e pouco pode falar em sua própria defesa usando os meios midiáticos. Esse é um momento sensível em que a voz do agressor se eleva, esperneia em praça pública, e sobre o que ele diz se forma uma densa nuvem de comentários, e faz desse homem até então invisível alcançar uma hipervisibilidade.
No caso de pessoas públicas, o assunto toma outras proporções. É de se perguntar se justo um homem em situação de vida pública e de poder pode se imaginar um homem invisível? Imaginar que não é avaliado moralmente a cada pleito eleitoral a ponto de chegar nas manchetes também por “deslizes” em sua vida privada.
Eu deveria perguntar isso a Bill Clinton. Ele deve ter sido surpreendido com o “escândalo Monica Lewinsky”. Sim, porque frente a seu abuso de uma situação de poder e fazendo uso da sedução do poder, nomeia-se o escândalo com o nome de uma mulher e não o seu próprio. Para dar a volta por cima, Monica Lewinsky redirecionou sua vida silenciada e reconstruiu sua trajetória e o controle de sua autoimagem através de uma causa internacional, contra cyberbullying em 2014. Ela era jovem e tinha muito ainda o que trilhar pela frente. Até a década de 90, o poder blindava os deslizes, os casos que abalariam carreiras políticas. Mas esse “caso Bill Clinton” mostrou uma virada de página que foi identificada com o interesse dos “tablóides”, que reverberou em todos os campos da vida política dos Clinton. Bill Clinton saiu do poder e ainda teve que ser resgatado por sua esposa Hillary Clinton em um país, que como sabemos, até aqui nunca teve uma presidenta mulher em sua história.
Bill Clinton sabe e François Holland também sabe, que a “vida privada” de uma pessoa pública é de interesse público. Tanto François Holland sabe que seus encontros extraconjugais, no início do século XXI, eram em intervalos do horário de trabalho. Aparentemente, fiel a um exercício de consciência do dever, sem ferir suas atividades profissionais como presidente. Bastava uma bicicleta para um encontro fortuito diário. De bicicleta, François Holland era um outro modelo de si no poder, mas mais um homem invisível.
Quem olha o wikipedia de François Holland não entende que com tantos feitos na sua vida política e liderando o partido socialista no governo da França de 2012 a 2017, tenha chegado no final da presidência com tão pouca popularidade, míseros 4% de aprovação pouco antes de deixar o governo. O wikipedia o poupa dos tablóides. Deveríamos perguntar as razões de sua “pouca popularidade” (ou impopularidade mesmo) para Valérie Trierweiler, sua ex esposa, que se separou dele em 2014.
No filme “O Capital” de Costa Gravas (2012), há boas anedotas do que é o mundo dos capitalistas do sistema financeiro. Ele nos apresenta um comentário comparativo entre o capitalista francês e o capitalista americano e boa parte de sua explanação sobre o capitalismo financeiro é um jogo em que mostrar poder se dá através de formas próprias de colocar em movimento as demonstrações de virilidade. Entre essas, o tema das mulheres amantes e esposas não é algo periférico, é o idioma por excelência do poder “que possui”.
É interessante pensar que a violência doméstica muitas vezes é associada a pessoas fracas ou com “poucas luzes”, comportamentos “irracionais” ou que “perderam” o controle. Quem trabalha com violência de gênero ou violência doméstica, quem a viu acontecer, sabe que a violência ocorre cotidianamente “nas melhores famílias” e tem uma relação direta com o exercício do controle e do poder sobre outros corpos. Corpos de outros que são troféus do poder.
Então, me parece muito estranho continuarmos debatendo os efeitos indiretos da violência de gênero ou a violência doméstica na vida de políticos. Em pleno século XXI, é como se não tivessem aprendido nada com os mais recentes episódios do século XX, e eu nem vou falar de Donald Trump que ainda está lutando para puxar a corda e não ser enforcado por seus próprios atos. Neste caso, um misto de político e jogador do sistema financeiro, um personagem perfeito para Costa Gravas, que esse diretor nem precisou inventar.
Entretanto, continuemos observando este “homem que tenta ficar invisível”, e que nem precisa mobilizar palavras sobre si pois já se deu ao trabalho de mobilizar palavras sobre sua esposa e seu olho roxo, dar um perfil de usuária de álcool, etc. e segue o script da desacreditação da vítima. Ainda vamos ouvir muitos absurdos.
Por último, me soa interessante essa hipervisibilidade de Alberto Fernandez. Não o julguemos prematuramente. Quem passou pelo Cyberbullying como Mônica Lewisnki sabe que o pior ainda está por vir, para sua esposa. Mas a essa altura do século, um político não avaliar que carreiras políticas são desmontadas vigorosamente pelos atos cometidos, ou não, em praça pública, me parece um bom atestado de obsolência.
E nós? Qual o script seguiremos? Aquele que considera o político uma vítima de um sistema, de uma direita que o persegue, ou de uma esquerda que não é coerente? Faremos um longo exame de “um discurso feminista” o considerando mal-usado? Buscando as responsabilidades em atos alheios? Eis a dificuldade de compreender a violência doméstica. Não se trata de avaliar moralmente o agressor, se trata de compreender o que é uma situação em que a pessoa se acredita em um lugar de poder, inatingível.
O drama de Alberto Fernandez hoje é de não conseguir se manter invisível. O século XXI chegou para alguns, e pega de surpresa aqueles que o poder continua fabricando como homens que se pensam invisíveis e inimputáveis em suas vidas “privadas”.
*Denise F. Jardim é Antropóloga e Professora do Departamento de Antropologia da UFRGS.
Foto da capa: Homem Invisível. Pinterest.
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